Logo O POVO+
Um século sem Alberto Nepomuceno
Reportagem Especial

Um século sem Alberto Nepomuceno

Considerado um dos nomes mais importantes da música clássica brasileira, Alberto Nepomuceno morria há 100 anos, após deixar um legado que ecoa até hoje

Um século sem Alberto Nepomuceno

Considerado um dos nomes mais importantes da música clássica brasileira, Alberto Nepomuceno morria há 100 anos, após deixar um legado que ecoa até hoje
Tipo Notícia Por

Na transição do século XIX para o XX, a música clássica se mantinha afastada dos ritmos afrobrasileiros e indígenas que se estabeleciam rapidamente. Entre as composições de concerto, era possível identificar inspirações alemãs e italianas, mas o próprio Brasil não estava presente. Diversos músicos já se pronunciavam acerca dessa lacuna, mas um teve papel de destaque para introduzir a língua portuguesa no universo erudito: Alberto Nepomuceno. Considerado o pai do nacionalismo na música clássica brasileira, ele completa seu centenário de morte neste 16 de outubro de 2020.

Parte de sua trajetória podia ser percebida desde o nascimento. Cearense, natural de Fortaleza, cresceu em uma casa que hoje estaria na rua Senador Pompeu, antiga "rua Amélia". Naquele lugar, e também quando se mudou para Recife, aprendeu com o pai, Vítor Augusto, o repertório que precisava para adentrar no mercado da música. Seu patriarca, que foi violinista e organista da Catedral de Fortaleza, era uma das principais fontes de conhecimento para o compositor ainda na infância.

Alguma coisa fiz, é verdade, e mais ajude-me Deus, penso fazer. Com isso, nada mais que meu dever cumprirei, como repositório que sou de uma partícula da inteligência, dom esse que o Criador atira ao acaso sobre o mundo e que aconteceu receber eu uma parte mínima
 
Alberto Nepomuceno

Nos 56 anos que viveu, suas experiências que começaram quando era criança reverberaram durante todos os outros momentos de seu percurso. Com várias produções em seu nome, foi regente, pianista e compositor. Seu legado ainda ecoa nos dias atuais mesmo que a própria população não perceba. É fato que todos os cearenses já escutaram, pelo menos algumas vezes, uma de suas principais autorias: o Hino do Ceará. Ao lado de Thomaz Pompeu Lopes Fernandes e Zacarias Gondim, produziram essa canção destinada ao povo e aos estudantes.

Coleciona ainda várias obras de destaque. “Artemis” (1898), “Abul” (1905), “Galhofeira” (1894) e “Suíte Antiga” (1893) são algumas que podem ser citadas. Seu amplo repertório é consequência de um sentimento que diversas vezes demonstrou em entrevistas para jornais. “Alguma coisa fiz, é verdade, e mais ajude-me Deus, penso fazer. Com isso, nada mais que meu dever cumprirei, como repositório que sou de uma partícula da inteligência, dom esse que o Criador atira ao acaso sobre o mundo e que aconteceu receber eu uma parte mínima. Aproveitar pelo trabalho, valorizar este dom e dever com os amigos, para com a Pátria, para com a humanidade, e, furtar-se a esse dever ser um depositário infiel”, explica para o Jornal do Commercio em 1913.

Foto de Alberto Nepomuceno(Foto: Arquivo Musica Brasilis)
Foto: Arquivo Musica Brasilis Foto de Alberto Nepomuceno

Compromissado com seu ofício, Alberto Nepomuceno não foi importante apenas como músico. Além de ser abolicionista e republicano, transparecia em suas composições as questões sociais pelas quais lutava. Por meio da arte, defendia os ideais revolucionários de um momento de forte tensão política, econômica e social. Nada do que fez, porém, considerou extraordinário. Suas produções eram uma necessidade, uma obrigação que sentia perante aos outros. “Olhando para minha vida, retrospectivamente, vejo-me tal qual sou: um homem que tem trabalhado e no seu trabalho tem procurado pôr em contribuição alguns dos que recebeu da natureza. Tenho procurado cumprir o meu dever”, comenta.

As falas de Alberto Nepomuceno estão expostas na tese de doutorado “A ópera ‘Abul’, de Alberto Nepomuceno e sua contribuição para o patrimônio musical brasileiro da Primeira República”, de autoria de Flávio Cardoso de Carvalho.

Percurso profissional

"Não tem pátria um povo que não canta em sua língua". Não é uma certeza de que Alberto Nepomuceno exprimiu essa frase, mas os ideais proclamados em poucas palavras é exatamente aquilo que acreditou. “Ele não foi o primeiro a defender o nacionalismo, mas foi o primeiro que realmente escreveu em português peças específicas, sem ser música popular. Naquele tempo, cantava-se em italiano, em alemão e em francês. Fora isso, era estranho. Imagine então como foi a recepção do público e da crítica quando ele fez essa ousadia”, explica David Calandrine, pianista e diretor do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno.

“Ele também foi um pesquisador. Algumas obras que existem do Padre José Maurício foram catalogados por ele. Hoje, só podemos acessá-las por causa dele. Dentro da pesquisa, ainda tem enorme interesse pelo folclore brasileiro”, explica. O profissional também cita seus estudos para piano e para a mão esquerda. “Muita coisa sobre ele serve de legado, que não foi só a música. As composições que um compositor faz é um reflexo da vivência dele. Ou seja, não é a música pela música, é a música com um contexto”, comenta David.

Partitura conservada do Quarteto n°3, no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)(Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima Partitura conservada do Quarteto n°3, no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)

Durante sua trajetória, teve papel importante em outros contextos. “Foi um compositor que trouxe a brasilidade, é um dos pais do nacionalismo. Foi o primeiro a escrever com a orquestra sinfônica em ritmo que se inspira nos dos negros, pois compreendia sua importância. Teve uma forte influência como gestor do Instituto Nacional de Música (hoje, chamada de Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro)”, lembra Rosana Lanzelotte, pesquisadora e idealizadora do projeto Musica Brasilis.

Em plena produção de um Rio de Janeiro que vivia a Belle Époque, quando os costumes franceses eram valorizados, Alberto Nepomuceno defendeu seu país, sem deixar de lado a ação de outros lugares. Segundo Rosana Lanzelotte, sua contribuição extrapola os limites da cultura. “Ele tinha esse olhar político e ético para o que se passava à sua volta. Sempre foi muito admirado a seus pares”, indica. Confira parte de sua trajetória abaixo:

 

 > Entrevista

"É inegável sua dedicação e sua contribuição
para transformar o ambiente musical brasileiro"

A professora Mónica Vermes, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e entrevista ao O POVO, também abordou parte da trajetória profissional de Alberto Nepomuceno. Além de sua dissertação de mestrado Alberto Nepomuceno e a Criação de uma Música Brasileira: evidências em sua música para piano, estuda os circuitos musicais do Rio de Janeiro, principalmente, durante a Belle Époque. Confira:

Mónica Vermes mostra parte da trajetória de Alberto Nepomuceno no Rio de Janeiro(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Mónica Vermes mostra parte da trajetória de Alberto Nepomuceno no Rio de Janeiro
O POVO - Ele não foi apenas um dos mais importantes rostos do nacionalismo na música clássica, mas também foi abolicionista. De que forma essas questões sociais que defendia dialogam com suas produções?

Mónica Vermes - Uma das formas de entender esse diálogo é no próprio engajamento – pela composição de numerosas canções – com a consolidação de uma canção de câmara com texto em português. Mas isso também está presente na incorporação de melodias do cancioneiro tradicional na música sinfônica, algo que é muito claro, por exemplo, na "Série Brasileira". Entendo também que todas as iniciativas seguintes sinalizam um projeto que poderíamos chamar de nacionalista: sua dedicação à implementação de um meio musical erudito; a educação musical, principalmente no Instituto Nacional de Música; a promoção de ciclos de concertos no Rio de Janeiro; e a promoção das obras de compositores brasileiros no exterior.

O POVO - Alberto Nepomuceno foi um defensor da música erudita cantada em português. De que forma ele conseguiu revolucionar o cenário da época?

Mónica Vermes - Nepomuceno causou um grande impacto no meio musical carioca de sua época através de uma série de ações: a promoção de séries de concertos, principalmente de concertos sinfônicos; sua ação no Instituto Nacional de Música, ao pensar num projeto de escola comprometida com a formação de profissionais que pudessem ampliar e aprimorar o ambiente da música de concerto; sua composição musical, que contemplou os mais importantes gêneros musicais da época, como a ópera, a música sacra, a música para piano, além das canções, em que parte significativa são textos em português.

O POVO - Como ele estabeleceu sua carreira no Rio de Janeiro?

Mónica Vermes - Nepomuceno foi para o Rio de Janeiro em 1885, depois de terem negado um pedido enviado ao governo imperial para subsidiar uma viagem de estudos à Europa. No Rio, ele se aproximou do violoncelista Frederico Nascimento e da família Bernardelli – uma família de artistas de origem italiana extremamente importante tanto para a história das artes no Brasil, quanto para a história de Nepomuceno. Uma instituição relevante para ele (e para a música carioca) nesse momento foi o “Club Beethoven”, onde deu aulas e onde parece ter conhecido Machado de Assis. Tudo isso antes de sua viagem de estudos à Europa. Quando volta de lá em 1895, encontra um Brasil já republicano e um meio musical transformado e mais receptivo.

O POVO - Quais foram suas principais contribuições para o Instituto Nacional de Música?

Mónica Vermes - Nepomuceno foi professor do Instituto Nacional de Música desde seu retorno da Europa e o dirigiu entre 1902-1903 e 1906-1916. Só o exercício das tarefas rotineiras dessas funções constituiria uma contribuição da maior relevância, mas é importante destacar que Nepomuceno tinha um projeto. Esse projeto, que diz respeito às mudanças que julgava importante implementar no meio musical, pode (e deve) ser criticado, pensando no seu contexto contrastado com outras possibilidades. Podemos estar ou não de acordo com ele, mas é inegável sua dedicação e sua contribuição para transformar o ambiente musical carioca (e brasileiro) do período.

Olhando para minha vida, retrospectivamente, vejo-me tal qual sou: um homem que tem trabalhado e no seu trabalho tem procurado pôr em contribuição alguns dos que recebeu da natureza. Tenho procurado cumprir o meu dever
 
Alberto Nepomuceno

Modernista ou não?

Existe uma questão que permeia a obra de Alberto Nepomuceno: ele pode ser considerado um modernista? Apesar de ter morrido dois anos antes da famosa Semana de Arte Moderna de 1922, que deu um início oficial ao movimento, o professor da Universidade Federal de Pelotas, Guilherme Goldberg, defende que sim. Em sua pesquisa de doutorado, demonstra que ele não foi apenas um participante, mas um de seus precursores. “Ele era um compositor modernista. Isso está escrito em notícias da época, modernismo eclético, da linha francesa. Nepomuceno mesmo se coloca como músico e compositor em uma função social que está além do entretenimento, além de ser extremamente ativo na própria educação. Isso não seria uma postura modernista?”, questiona.

Para o pesquisador, o cearense estava no século XIX, mas mirava nas tendências que surgiriam no XX. “A gente sempre aprende que era um pré-nacionalista, como se eles fossem os outros, como se os anteriores aos outros não fossem nacionalistas. É a ideia de que minha geração é mais verdadeira. Ou ainda considerado um pós-romântico, preso ao século XIX. A gente não pode ficar preso a essas gavetinhas”, afirma Goldberg.

Legado póstumo

O primeiro homem a introduzir a língua portuguesa na música de concerto no Brasil teve inúmeras contribuições. Foi precursor do movimento modernista, abolicionista e forte defensor da cultura de seu país. Levou todas essas características para sua obra. Confira um pouco mais sobre as influências que o compositor teve no cenário artístico da época e também atualmente.

 

Para divulgar sua memória

A História do Brasil é feita de lacunas. Nestes espaços, permanecem nomes que tiveram papel fundamental na formação do país. Entre as inúmeras renovações que visam ao futuro, documentos que registram o passado são perdidos. Mas algumas pessoas fazem da recuperação da memória brasileira uma trajetória de vida. Esse é o caso de Rosana Lanzelotte, que, em 2009, fundou o site Musica Brasilis. A iniciativa tem o objetivo de resgatar e difundir os repertórios musicais. Com mais de 270 compositores e 1.500 partituras disponibilizados, parte desse acervo on-line é dedicado ao Alberto Nepomuceno.

“Um dos grandes problemas para fazer nosso repertório no Brasil é a falta de divulgação. Quando me aposentei da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), em 2009, criei o Musica Brasilis, porque era uma lacuna que tinha que ser preenchida. Não adianta a gente ter os manuscritos bem guardados nas bibliotecas. O músico, quando vai fazer um concerto, não vai na biblioteca. Ele procura na internet”, explica Rosana Lanzelotte. Com aproximadamente 40 mil acessos mensais, considerado um número expressivo para uma temática tão específica, o portal é visitado por pessoas de diversas nacionalidades.

Dois anos depois da criação do projeto, ela estava à procura de acervos de compositores consagrados. Foi quando encontrou o pesquisador Guilherme Goldberg (já citado acima). “Ele havia acesso a trabalhos de publicação em papel e nos cedeu gratuitamente. Nessa ocasião, conseguimos cerca de 40 obras, um apanhado muito abrangente”, lembra a também doutora em Informática. “A partir desse momento, sempre estamos procurando ampliar o acervo Alberto Nepomuceno, com a preocupação de não duplicar esforços. Miramos em repertórios que ainda não estão disponíveis”, comenta. Atualmente, as produções divulgadas de Nepomuceno chegam a 46, no total.

O Musica Brasilis também realiza um trabalho de adicionar recursos educacionais destinados, principalmente, aos professores que queiram levar o conteúdo para sala de aula. Mas as iniciativas não param no portal. Um espetáculo, por exemplo, foi elaborado em homenagem aos 150 anos de vida de Alberto Nepomuceno e 100 anos de morte de Glauco Velásquez. A apresentação contou com releituras da Orquestra Petrobrás Sinfônica e com interpretação de Mateus Solano como o compositor cearense.

O trabalho de divulgar a memória do pai do nacionalismo na música erudita, porém, é infindável. Além do Musica Brasilis e dos pesquisadores brasileiros que se dedicam aos estudos de sua obra, o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno também pratica a aproximação dos estudantes com essas produções. “Os alunos leem partituras, mas alguns preferem outros caminhos que não são o repertório erudito. Então, a gente tenta fazer com que todos participem de nossas atividades a partir de situações diversas”, afirma David Calandrine, diretor do conservatório.

Neste espaço de aprendizado, um contrabaixo pode substituir a função da mão esquerda do pianista. O aluno que gosta de harmonia faz os acordes. Todas as adaptações são feitas para trazer para os dias atuais o universo que existe há mais de um século. Nesta questão, as opiniões de David Calandrine e do professor Guilherme Goldberg convergem: para ser lembrada, a música não pode permanecer intocada. “Algo que eu gosto de falar sempre é que temos que perder o respeito pela música. Temos que colocar a música no seu papel do cotidiano, não em um pedestal. Esse é o grande ponto. Vamos fazer as músicas do Alberto Nepomuceno, o que é de de canção, vamos fazer como canção, não somente como ópera. Isso faz toda a diferença”, defende Goldberg.

Eventos do centenário

Neste ano, o Irim (Investigação em Regência e Interpretação Musical), da Universidade Estadual do Ceará (Uece) está realizando o III Sirim – Simpósio de Regência e Interpretação Musical dedicado inteiramente ao Alberto Nepomuceno. O evento, porém, foi todo adaptado para o meio virtual, devido à pandemia do novo coronavírus. “A ideia inicial seria fazer de modo presencial, porque teríamos mesas redondas, apresentações artísticas, oficinas, entre outras atividades. Com a pandemia, isso não foi possível”, explica Inez Gonçalves, professora de música da Uece e curadora. Ao lado dela, Marcio Landi, Elba Braga Ramalho, Gilmar de Carvalho e Anna Maria Kieffer também participam do processo de realização.

Com o apoio do Porto Iracema das Artes, a iniciativa acontece mensalmente nas redes sociais da escola, sempre às 20 horas. O evento tem o objetivo de revisitar as contribuições do compositor para o cenário artístico brasileiro. Até dezembro e 2020, haverá três encontros. Mas Inez Gonçalves reforça: “ele não pode ser lembrado apenas nos períodos e nas efemérides. Ele precisa ser tocado, divulgado e conhecido na produção musicológica para você entender onde ele atuou”.

Além deste evento, o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno está com duas transmissões ao vivo programadas para outubro deste ano. Nas datas, artistas apresentarão parte do repertório. O objetivo é homenagear aquele que deu nome ao espaço. Entre os convidados, estão Alvany Silva, Rodrigo Castro e Daniel Sombra.

 
Convidados: Avelino Romero Pereira e João Silvério Trevisan, com mediação de Inez Gonçalves
Quando: 19 de outubro, às 20 horas
Convidados: Luiz Guilherme Goldberg e Julio Medaglia, com mediação de Anna Maria Kieffer
Quando: 16 de novembro, às 20 horas
Convidados: Geraldo Amâncio, Guilherme de Almeida Nobre e Elba Braga Ramalho, com mediação de Gilmar de Carvalho
Quando: 14 de dezembro, às 20 horas
Onde: sempre no canal do YouTube e na página do Facebook do Porto Iracema das Artes
Concertos em homenagem a Alberto Nepomuceno
Convidados: Rodrigo Castro, Daniel Sombra, Sara Rebeca, Emanoel Belisário, Israel Alves, José Filho, Berg de Castro, Carlos Glézia, David Calandrine e Alvanes Silva
Quando: 21 de outubro, às 17 horas
Convidados: Alvany Silva e outros
Quando: 27 de outubro, às 17 horas
Onde: sempre no canal do YouTube do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno


 

O que você achou desse conteúdo?