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O jornalismo engajado de Luciano Carneiro
Reportagem Especial

O jornalismo engajado de Luciano Carneiro

"Luciano Carneiro – fotojornalismo e reportagem (1942-1959)" é um manual de como um repórter, entre as décadas de 40 e 50, aliou imagens e textos na insistência por um reportar humanizado, próximo do jornalismo literário sem perder a objetividade dos acontecimentos

O jornalismo engajado de Luciano Carneiro

"Luciano Carneiro – fotojornalismo e reportagem (1942-1959)" é um manual de como um repórter, entre as décadas de 40 e 50, aliou imagens e textos na insistência por um reportar humanizado, próximo do jornalismo literário sem perder a objetividade dos acontecimentos
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Finalmente parte do precioso legado do fotojornalista cearense Luciano Carneiro ganha as páginas de um livro. Nem o gap de 61 anos no vão da desmemória coletiva tirou a perenidade das imagens e dos textos do repórter para a história do jornalismo e da fotografia engajada. O biscoito fino "Luciano Carneiro – fotojornalismo e reportagem (1942-1959)", organizado por Sergio Burgi, é fruto de uma parceria entre o Instituto Moreira Salles (IMS), a Fundação Demócrito Rocha (FDR) e a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult).

O rapaz de vida breve e de produção intensa quis ser testemunha da transformação do mundo, e dele mesmo, principalmente entre os anos de 1948 a 1959. Temporada em que atuou, freneticamente, nas páginas da histórica revista "O Cruzeiro" e outras publicações.

Luciano Carneiro, fotógrafo cearense, cobriu os fatos mais importantes do mundo entre as décadas de 1940 e 1950(Foto: Acervo Jornal Estado de Minas e Revista O Cruzeiro)
Foto: Acervo Jornal Estado de Minas e Revista O Cruzeiro Luciano Carneiro, fotógrafo cearense, cobriu os fatos mais importantes do mundo entre as décadas de 1940 e 1950

Era ele e uma Leica no centro dos acontecimentos e a obstinação por um olhar humanizado dos fatos. O cearense, que hoje leva o nome de uma avenida em Fortaleza, fotografou e escreveu, por exemplo, sobre a entrada “triunfal” de Fidel Castro e suas colunas revolucionárias em Havana.

Carneiro, paraquedista e aviador civil, entrou em Cuba pelos céus com as tropas norte-americanas dias antes da derrota de Fulgencio Batista. “Depois de três anos de ausência, desde a famosa carta de 7 de julho de 1955, combatendo nas montanhas, vivendo existência de “maquis”, Fidel Castro, de barba lendária, voltou à sua querida Havana. Foi um “rentrée” que teve moldura de apoteose”, descreve em "O Cruzeiro" na fotorreportagem “As duas faces da libertação de Cuba”, de 31 de janeiro de 1959.

O fotógrafo, que deixou Fortaleza aos 22 anos de idade para se instalar no Rio de Janeiro, foi um passageiro do mundo por causa do jornalismo. Profissão que encarava como um ofício para “gente descente. O repórter deve ser necessariamente um idealista, colocando o bem-estar geral acima dos interesses particulares”, definiu Carneiro em uma entrevista à revista "Manchete", em janeiro de 1956.

Acervo Luciano Carneiro Filho/IMS(Foto: Luciano Carneiro era também aviador. Foto em Fortaleza no ano de 1949)
Foto: Luciano Carneiro era também aviador. Foto em Fortaleza no ano de 1949 Acervo Luciano Carneiro Filho/IMS

Sergio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles, define Luciano Carneiro como um expoente de uma geração de fotorepórteres comprometido com a objetividade da narração dos fatos. E, ao mesmo tempo, construtor de uma narrativa humanizada próxima ao jornalismo literário sem empolação.

Quando Luciano Carneiro chegou à redação do O Cruzeiro, do todo-poderoso Assis Chateaubriand e seus Diários Associados, a escola dominante era a do controverso David Nasser e do fotógrafo francês Jean Manzon. Os dois seguiam o manual da espetacularização e do sensacionalismo nas páginas da importante revista ilustrada. O repórter sênior, que tinha um texto primoroso apesar do caráter miúdo, seguia a linha do “pior para os fatos”. E contava ainda com fotos, na maioria das vezes, “montadas” pelo parceiro Manzon.

“As fotografias de Luciano diferenciavam-se claramente também das produzidas por Jean Manzon, fotógrafo francês convidado para reformular O Cruzeiro na década de 1940, que introduziu a fotorreportagem como base para o novo produto editorial cujo objetivo era a circulação da revista”, lembra Sergio Burgi.

Imagem da primeira matéria que Luciano Carneiro publicou em O Cruzeiro sobre a vitória da revolução cubana, Arde uma ditadura na chama de Fidel Castro, em 24 de janeiro de 1959, registrando a tomada do poder em Havana pelas forças de Fidel em 8 de janeiro de 1959(Foto: Acervo Jornal Estado de Minas e Revista O Cruzeiro)
Foto: Acervo Jornal Estado de Minas e Revista O Cruzeiro Imagem da primeira matéria que Luciano Carneiro publicou em O Cruzeiro sobre a vitória da revolução cubana, Arde uma ditadura na chama de Fidel Castro, em 24 de janeiro de 1959, registrando a tomada do poder em Havana pelas forças de Fidel em 8 de janeiro de 1959

Na contramão da linha editorial, em flancos que muitas vezes significavam conflitos com editores da revista e com a área de publicidade, Luciano Carneiro, José Medeiros e Enrico Bianco formaram outra linha de pensamento na Redação. Eram parte de um grupo que valorizara o reportar com imagens, textos e uma diagramação miradas no jornalismo “estritamente comprometido com a ética” e fora dos “interesses ideológicos do grupo de comunicação e de seus dirigentes”.

Nem sempre seria assim em todas as pautas da revista, mas Luciano Carneiro e alguns conseguiram assinar um idealismo reporteiro. Documentaram fatos de forma objetiva e, também, costurados por nuances de olhares críticos. É que tinham o credo pela “contribuição para a formação da opinião pública” e até mesmo o idealismo de influenciar nas políticas sociais no Brasil e no mundo.

Refugiados e soldados norte-americanos em Seul após a retomada da cidade. Seul, Coreia do Sul, março de 1951(Foto: Acervo Instituto Moreira Salles/IMS)
Foto: Acervo Instituto Moreira Salles/IMS Refugiados e soldados norte-americanos em Seul após a retomada da cidade. Seul, Coreia do Sul, março de 1951

Carneiro foi fotógrafo e repórter de grandes coberturas arrojadas e percorreu caminhos próximos a de Henri Cartier-Bresson, da agência Magnum. Personagem entrevistado e reverenciado pelo cearense. O rapaz de Fortaleza foi correspondente de guerra aos 25 anos de idade. Pulou de paraquedas, fotografou o salto e as investidas de soldados na Guerra da Coreia e os descaminhos da população.

O fotojornalismo cultuado por Carneiro havia sido definido em palavras por Bresson, em 21 de abril de 1956, numa entrevista feita pelo cearense, em Paris, ao mestre da fotografia. “É uma operação conjunta de olhos, coração e inteligência. Você fotografa o que vê, Luciano, mas o que você vê, isso depende de quem você é”, respondeu Cartier-Bresson ao brasileiro. Conversa publicada na coluna “Do arquivo de um correspondente estrangeiro”.

O andarilho Luciano Carneiro, o segundo filho de uma família de seis irmãos em Fortaleza, esteve no cotidiano da União Soviética de Nikita Kruschev durante a Guerra Fria. Documentou o Egito na pós-revolução entre 1954 e 1956 no país comandado por Muhammad Naguib e Gamal Abdel Nasser. Registrou a reconstrução de Hiroshima. Entrevistou o médico Albert Schweitzer – Nobel da Paz. Acompanhou parte da trajetória do desaparecido político José Pórfírio de Souza. Cobriu secas no Nordeste do Brasil, reviu o cangaço, fotografou jangadeiros...

A Vmortalidade infantil e o flagelo da seca. Ceará, 1958(Foto: Acervo Jornal Estado de Minas e Revista O Cruzeiro)
Foto: Acervo Jornal Estado de Minas e Revista O Cruzeiro A Vmortalidade infantil e o flagelo da seca. Ceará, 1958

Precocemente, aos 33 anos de idade, o fotojornalista teve sua devotada vocação pelo reportar interrompida por um acidente aéreo. Deixou a vida quando retornava de Brasília, em 22 de dezembro de 1959, depois fotografar o primeiro baile de debutantes da nova capital, às vésperas da inauguração do Planalto. “O fato tem que ser colhido onde quer que se dê, com o sacrifício do conforto ou da própria vida do repórter”, declarou Luciano Carneiro.

O livro Luciano Carneiro – fotojornalismo e reportagem (1942-1959), agora, como afirma Fabiano Piúba, secretário da Cultura do Ceará, “revela um Luciano Carneiro para além de um nome de uma avenida. É uma outra leitura sobre um cearense que viajou e mirou o mundo em meio aos principais acontecimentos internacionais de seu tempo. Um fotorepórter de uma produção que extrapolou seu tempo e ganhou relevância histórica”.

 

 

O acervo do passageiro do mundo

Apesar da evidente relevância do legado de Luciano Carneiro, a produção fotográfica e o acervo de reportagens do jornalista cearense não foram, devidamente, referenciadas e pesquisadas. A observação é de Sergio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles (IMS).

O livro "Luciano Carneiro – fotojornalismo e reportagem (1942-1959)", afirma Burgi, é o primeiro passo em direção ao conjunto fotográfico e das artes visuais produzidas pelo repórter que emprestou a alma e olhos para retratar de guerras a desfiles de debutantes na recém-nascida Brasília.

Graças a uma doação da família de Luciano Carneiro, parte do arquivo colecionado do jornalista está no IMS. É um trecho da vida do passageiro do mundo em que se destacam as reportagens realizadas no exterior como correspondente de "O Cruzeiro".

Imagens realizadas em Seul após a retomada da capital pelas tropas da Coreia do Sul. Refugiados retornam à cidade destruída pelos bombardeios. Coreia do Sul, março de 1951(Foto: Acervo Antonio Carneiro e IMS)
Foto: Acervo Antonio Carneiro e IMS Imagens realizadas em Seul após a retomada da capital pelas tropas da Coreia do Sul. Refugiados retornam à cidade destruída pelos bombardeios. Coreia do Sul, março de 1951

A esse conjunto, de acordo com Sergio Burgi, soma-se a produção de 11 anos de sua atividade profissional, preservada nos arquivos da revista que hoje fazem parte do acervo do jornal "O Estado de Minas". Um vasto baú com mais de 20 mil imagens e cerca de 500 matérias publicadas.

A ideia para a publicação do livro surgiu em Fortaleza depois de conversas entre executivos do IMS e da Fundação Demócrito Rocha (FDR). “Fiz uma aproximação institucional com o IMS, há três anos, para mapear possibilidades de parceria. O Instituto havia organizado em 2018 uma belíssima exposição sobre Luciano Carneiro no Dragão do Mar”, lembra Marcos Tardin, gerente-geral da FDR.

O Instituto Moreira Salles também havia lançado o livro "As origens do Fotojornalismo no Brasil - Um olhar sobre O Cruzeiro (1940/1960)". E, claro, um destaque era para o trabalho do fotógrafo cearense pouco conhecido em sua terra natal e no Brasil.

“Ficou claro que havia um ponto de interseção entre FDR e IMS, só era preciso construir a maneira de viabilização. As conversas evoluíram e em determinado momento apresentei a proposta do livro para o fotógrafo Tiago Santana. Um ano depois, voltamos mais uma vez ao IMS, no Rio de Janeiro, agora em companhia do Fabiano Piúba (secretário da Cultura do Ceará), e o projeto acabou sendo viabilizado com a Secult”, afirma Marcos Tardin.

 



Um raio de sol

Por Tiago Santana, fotógrafo

 

Quando criança, eu costumava visitar a minha avó, Maria do Rosário, que morava na avenida Luciano Carneiro, no bairro da Aerolândia, em Fortaleza. O nome Luciano Carneiro sempre esteve presente na minha vida. Acabei me tornando fotógrafo, e só muito tempo depois conheci o Luciano Carneiro fotógrafo, o mesmo que dava nome à conhecida avenida que nos levava ao aeroporto, e onde ficava a casa da minha avó. Confesso que fiquei impressionado com as imagens que vi. O humanismo que imprimia em suas fotos, aliado a uma certa ousadia em cortes e perspectivas, marcaram minha memória ao ver suas reportagens no Brasil e no mundo.

Luciano era alguém que não se contentava somente com o registro. Ele ia além, seja na estética, seja na profundidade e densidade de suas reportagens. E, acima de tudo, no compromisso social de sua profissão. Ética e engajamento político sempre pautaram o seu trabalho. Um fotógrafo com personalidade, com coragem para transgredir as regras e convenções dos modelos de jornalismo praticados na época.

Considerado um revolucionário, um homem além do seu tempo, deixou marcas irreversíveis no fotojornalismo do Brasil. Sua fotografia contribuiu para a reflexão sobre o país, mas também sobre os contextos sociopolíticos de vários países do mundo. Uma fotografia corajosa, que transcendeu os seus limites geográficos e profissionais.

Infelizmente, os fotógrafos das gerações mais recentes do Ceará, assim como eu, conheceram o trabalho do Luciano tardiamente. Pois a obra só foi mesmo difundida no Ceará na sua amplitude na ocasião da exposição organizada pelo Instituto Moreira Salles no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, no ano de 2018.

A fotografia no Ceará precisava (re)conhecer a obra desse que, até então, era apenas um nome na avenida que levava ao aeroporto. Agora temos a possibilidade de nos aprofundar no trabalho de Luciano Carneiro, de forma ampliada, por meio desta importante publicação. Um livro fundamental para a compreensão da sua trajetória na sua completude e intensidade.

A fotografia é encontro. Encontro do fotógrafo com o seu lugar, com seus afetos, suas crenças, seu desejo de conhecer o mundo e contribuir para a transformação do homem a partir da reflexão provocada pelas imagens. E esse pensamento era o que guiava o trabalho do Luciano Carneiro. Um fotógrafo apaixonado pela fotografia e pelo voo.

Aliás, um homem de muitos voos, profissionais e reais, pois, além de fotógrafo, foi piloto e paraquedista. E, em um desses voos, nos deixou ainda muito jovem. A sua amiga e parceira de reportagens, a também cearense Rachel de Queiroz, escreveu em texto publicado em O Cruzeiro sobre a morte prematura de Luciano Carneiro: “Amigos, acabamos de enterrar um raio de sol!”.

É comum dizer que o Ceará é a “Terra da Luz”. O termo deve-se ao pioneirismo na abolição dos escravos no país, mas também pode ser associado à luminosidade local, símbolo potente que faz da luz um caminho de expressão artística, de construção de memória e de transformação social. Viva a luz que possibilita a fotografia. Viva o raio de sol que foi Luciano Carneiro e que transformou o fotojornalismo brasileiro. Sua luz estará sempre a iluminar as novas gerações de fotógrafos.

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