“Em meio a grandes festividades, foi inaugurada sábado último, pelos ‘Diários Associados’, a Televisão Ceará, presentes as mais altas autoridades do Estado, bem como dezenas de convidados especiais”. A matéria do O POVO de 28 de novembro de 1960 registrava um evento importante para a Cidade, que acontecera dois dias antes: a implementação da TV Ceará, a primeira emissora de televisão do Estado. A magnitude de sua fundação não estava somente nos notáveis nomes que compareceram à solenidade - que foi o principal destaque do jornal há seis décadas. A instituição desse veículo de comunicação trazia também uma perspectiva de modernização para a Capital que tentava se desvencilhar de seus aspectos provincianos para se tornar uma metrópole.
O canal surgiu como extensão da Rede Tupi, pertencente ao empresário Assis Chateaubriand. Ele foi o responsável por trazer a televisão ao Brasil dez anos antes, em 1950, com o início da TV Tupi Difusora em São Paulo. Por algum tempo, essa conquista estava restrita ao Sudeste. Entretanto, o projeto do jornalista era mais ambicioso. Não bastava conquistar apenas uma região, era necessário alcançar outros lugares. E o campo de expansão já estava sendo preparado. O oligopólio de Chateaubriand, os Diários Associados, chegou ao Ceará, por exemplo, ainda na década de 1940, quando a Ceará Rádio Clube (1934), os jornais impressos 'Unitário' (1901) e o 'Correio do Ceará' (1915) foram incorporados ao grupo.
Para se estabelecer em novos territórios, porém, era preciso conquistar a população. Segundo O POVO destacava na edição de 24 de novembro de 1960, a “realização dêsse sonho dos cearenses” contou com a colaboração do próprio povo do Estado, “com a tomada de ações da emprêsa, no total aproximado de doze milhões de cruzeiros”, tal como escrito à época.
Além dessa participação, anunciantes e empresários também eram estimulados pelo empreendimento. “Os jornais Associados (Unitário e Correio do Ceará) estimulavam os anunciantes. Grupos de empresários eram levados para ver o ritmo de construção. O parâmetro para comparação era Brasília, erguida do nada, em pleno Planalto Central”, explica o professor Gilmar de Carvalho, autor do livro “A Televisão no Ceará (1959/1966)”, lançado originalmente em 1985 e depois reeditado em 2004 e 2010.
Neste universo de novidades e de possibilidades ainda inexploradas, o pesquisador define o ambiente da época: “o clima era de festa”. “A TV Ceará começou com uma campanha junto aos grandes empresários de Fortaleza para que eles contribuíssem para a construção do prédio e a compra de equipamentos”, lembra Narcélio Limaverde, um dos pioneiros do canal, primeiro apresentador de televisão Estado. “Foi um acontecimento importante para Fortaleza, para o Ceará, para o Nordeste. No dia da inauguração, esteve a Hebe Camargo, além de outros artistas da nossa terra”, recorda.
“Fortaleza era uma cidade em busca de crescimento, que recebia várias pessoas do interior que procuravam qualidade de vida longe da seca. A ideia era de que a chegada da televisão era a chegada também da modernidade”, explica a docente Ana Quezado, autora da dissertação “Fortaleza nos primeiros tempos da TV: cotidiano, memória e cultura (1958-1965)” em 2007. De acordo com a autora, porém, a infraestrutura ainda era precária. Não havia videotape, que registra as imagens televisivas, e a energia elétrica era escassa.
Além disso, no Ceará, até então não havia equipes e profissionais preparados para a lida televisiva, e por isso nomes do rádio foram alçados à nova linguagem. “A TV Ceará se beneficiou da atuação e liderança da Ceará Rádio Clube, no ar desde 1934. Claro que era necessária uma adequação. Grandes vozes não significavam rostos bonitos, e a tevê se ancorava na imagem”, aponta Gilmar.
A atriz e escritora Glice Sales, que compunha a equipe da Ceará Rádio Clube, conta que o percurso até a televisão foi natural. “O pessoal que trabalhava lá, quando o advento da televisão chegou, passou ‘de mão beijada’ para a televisão, porque não tinha gente para fazer as coisas”, divide a artista. “Fiz grandes trabalhos ao lado do pessoal, João Ramos, Emiliano Queiroz, Aderbal Freire, Ary Sherlock… Todos esses pertenciam ao cast da Ceará Rádio Clube e a gente passou juntos para a televisão”, elenca.
Junto da “migração” natural das equipes da Ceará Rádio Clube para os estúdios do canal 2, os diretores da emissora televisiva apostavam na realização de cursos preparatórios. O paraibano Péricles Leal, uma das figuras centrais do início da TV Ceará, foi o responsável pelo curso de “formação de realizadores de tevê”. “Ele se instalava nas cidades onde as emissoras seriam inauguradas e ficava até o povo do lugar ter o domínio sobre o fazer televisivo”, explica Gilmar.
Narcélio Limaverde foi um dos que passou pelo curso. “Antes da inauguração, fui levado para Recife e aprendi a me apresentar na televisão. Fui escolhido para ser o primeiro apresentador de notícias da televisão no Repórter Cruzeiro. O editor era Luciano Diógenes, mas o diretor Ciro Saraiva participava também. Comecei a treinar em Recife, cheguei em Fortaleza, e aprendi como a pessoa se portava diante da televisão”, rememora.
Após tanta preparação de profissionais e expectativa da população, a emissora transformou o cotidiano de milhares de pessoas. “Foi um divisor de águas, em muitos sentidos. Impactou a publicidade, mudou hábitos, mexeu com as tradições e criou nosso primeiro olimpo”, resume Gilmar de Carvalho. Apesar da TV ser considerada por tantos anos como uma mercadoria de elite, isso não impediu que a população mais pobre também consumisse. A sala de estar da casa da vizinhança que tinha o aparelho, por exemplo, se tornou ponto de encontro. Eram os “televizinhos”.
Com a precariedade da energia elétrica, a programação era disponibilizada apenas em alguns horários e, para que ninguém perdesse, emissoras de rádio e jornais impressos divulgavam diariamente as atrações. Era um evento. Pessoas se reuniam na casa de conhecidos para assistir aos teleteatros, programas de humor, apresentações musicais e notícias. “Um aparelho de televisão era muito caro, não havia a menor possibilidade de uma pessoa pobre ter uma televisão. Por isso, famílias que compravam viravam um ponto de encontro. Surgiam, assim, novas práticas de sociabilidade na cidade”, comenta a professora Ana Quezado.
Esse contexto popularizou o acesso às artes e artistas. “Os Diários Associados, através da Ceará Rádio Clube, já vinham desde os anos 1940 tendo uma atividade expressiva com o radioteatro ou ‘teatro cego’. Eram dramatizações, declamações de poemas. Havia um mercado para absorver artistas que se integraram à nova linguagem da televisão”, explica o dramaturgo Ricardo Guilherme.
Entre os nomes do primeiro grupo de atores, vindos da rádio, estavam João Ramos, Wilson Machado, Ary Sherlock, Laura Santos, Ângela Maria e Emiliano Queiroz. “Depois, entraram as pessoas de teatro. O ano da inauguração da televisão coincide com o da inauguração do curso de arte dramática da Universidade Federal do Ceará, que foi em março de 1960”, contextualiza Ricardo Guilherme. Muitos dos alunos foram incorporados, como Ilclemar Nunes, Almir Teles, Edilson Soares, B. de Paiva, Gracinha Soares.
Ricardo ainda observa uma incorporação de nomes já expressivos do teatro cearense, como Haroldo Serra, Hiramisa Serra e Marcus Miranda, com “prática muito expressiva e regular de atividade teatral” e que participavam de teleteatros. Outro nome central neste sentido é o do jornalista, escritor e teatrólogo Eduardo Campos, o Manuelito, que foi diretor e autor de várias dramaturgias da TV Ceará e, também, superintendente do canal.
“Defendo a hipótese de que Eduardo Campos usou a televisão como laboratório para suas peças teatrais e levou a experiência televisiva para os palcos”, avalia Gilmar. O primeiro teleteatro “O Contador de Histórias” do canal foi “A Fúria dos Justos”, realizado por Péricles Leal e baseado no texto “Os deserdados”, de Manuelito. A adaptação televisiva chegou a concorrer a um prêmio em Barcelona.
Segundo Ana Quezado, a televisão promoveu novas tramas sociais. “Cria-se um repertório comum de partida. O teatro, até então, era muito ligado à elite. As pessoas menos privilegiadas não tinham acesso. Naquele momento, passa a existir novo tipo de repertório. Um movimento de sociabilidade”, argumenta.
Espetáculos de teatro, antes restrito às elites, começaram a ser transmitidos na programação, e os artistas teatrais ganharam outro status. “Tanto a TV incorporou as dramaturgias e os atores de teatro nas suas produções, como também ela pôde projetar gente de teatro, colocando-as em novos patamares de reconhecimento e inserção social”, avalia Ricardo Guilherme. “Por mais que tenha sido projetado, o teatro não chegou ao estrelato absoluto, mas as pessoas se desterritorializaram. Aquele teatro que tinha um determinado público passou a ter outro, muito mais popular, de outra classe social”, resume.
As limitações de tecnologia, como a impossibilidade de utilizar o videotape (gravação), levaram a TV Ceará canal 2 a uma “experiência única”, como define o pesquisador e professor Gilmar de Carvalho. Isso porque, na época, era preciso produzir tudo ao vivo, das novelas aos comerciais.
Glice Sales, uma das atrizes pioneiras da TV Ceará, explica: “A gente tinha que decorar o papel tintin por tintin. Quando não conseguia, não podia parar e aí fazia de improviso o que fosse”, lembra. A experiência prévia de quem vinha da rádio e do teatro, naturalmente, ajudava.
Houve quem entrasse no elenco do canal sem essa preparação anterior, grupo definido pelo dramaturgo Ricardo Guilherme como “o pessoal que nasceu com a televisão”. É o caso de Jane Azeredo, que começou nos comerciais ao vivo e depois foi para a teledramaturgia, no humorístico “Video Alegre”, com Renato Aragão. “A gente fazia no instinto, na prática mesmo. O que acontecesse em cena tinha que ser resolvido na hora. Era uma coisa extraordinária, não tem nem explicação, que não será feita mais em lugar nenhum”, destaca.
Apresentador do “Repórter Cruzeiro” - “versão cearense do Repórter Esso”, como define Gilmar de Carvalho -, Narcélio Limaverde destaca os “jeitinhos” que se davam nos bastidores para deixar a leitura das notícias mais natural - na época, afinal, não havia o famoso teleprompter, “que você vai lendo e as pessoas acham que você decorou tudo”, como define o jornalista.
“O suíte (diretor de TV) que trabalhava comigo, o Sebastião Belmino, achou uma maneira de ‘encontrar’ um teleprompter e era como se eu soubesse de tudo”, conta. O que acontecia era que Sebastião deixava o equipamento bem próximo dos apresentadores, o que permitia que conseguissem ver o texto. “Diziam que ‘Narcélio começou a notícia e já sabe de tudo’. Eles não sabiam que tinha gente me ajudando a ser um grande apresentador. Comecei bem por causa disso, graças ao Belmino”, reconhece.
Na dramaturgia, Gilmar de Carvalho destaca que as novelas da TV Ceará eram divididas em dois tipos: um “mais meloso”, apresentado pelo guarda-chuva da “TV de Romance”, enquanto o outro, “dentro da rubrica ‘Videorama’, apelava para a cor local”, abordando seca, cangaço e temas mais realistas. Isso sem citar o teleteatro “O Contador de Histórias”, que era “a sensação da cidade”, como aponta Jane.
Enquanto a estreia da faixa “Videorama” se deu com “Poeira Vermelha”, de Guilherme Neto, - com elenco formado por João Ramos, Lourdes Martins, Emiliano Queiroz, Laura Santos e Tarcísio Correia -, a partida da “TV de Romance” foi uma adaptação teatral para TV de “O Morro dos Ventos Uivantes” assinada por Péricles Leal e com Danúbio Bezerra, Cleide Holanda, João Ramos, Glice Sales, Wilson Machado, Dora Bastos, Maria José Braz e Paulo Oliveira no elenco.
Além das novelas, a programação tinha ainda outros formatos, como uma faixa voltada para o suspense, a ‘TV de Mistério’; uma “comédia de costumes” com Praxedinho e Anicetinha, o humorístico “Dois na Berlinda’; os primeiros passos de Renato Aragão no humor, com o “Vídeo Alegre”; musicais; um telecatch (gênero dedicado à luta livre)... “Não se pode reclamar muito da grade implantada. A televisão foi além das expectativas dos fruidores. Diria que surpreendeu”, avalia Gilmar.
A relação da “opinião pública” com a TV Ceará era pautada, constantemente, por embates morais, ainda que, como descreve Gilmar de Carvalho em “A Televisão no Ceará”, as contradições e inquietações culturais da época estivessem “diluídas” ou “praticamente ausentes” da programação do canal 2. “Por tudo isso”, escreve o pesquisador, “parece estranho ler sobre exibição de amores indecentes, exibição de colóquios despudorados, frases não só maliciosas, mas até ofensivas aos ouvidos de pessoas dignas” (grifo do autor) quando se falava de TV Ceará.
Era bastante comum, no entanto, que a programação do canal fosse vista como um “atentado à moral”. O jornalista Narcélio Limaverde lembra que uma das garotas propagandas da época, em um comercial ao vivo, “fez algo revolucionário: deu uma cruzada de pernas”. “Até o arcebispo de Fortaleza, o Dom Lustosa, reclamou. Ele mandou uma carta dizendo que não admitia que a televisão exibisse uma cena como essa. Mas muitas pessoas gostaram”, aponta o jornalista.
Glice também foi alvo de bravatas do tipo. Em uma das novelas do canal, um rápido beijo técnico em cena foi exibido, e um jornal católico da época, "O Nordeste", “fez um auê”, como define a atriz - que, inclusive, não era a intérprete da cena controversa, mas recebeu críticas. “Eu não me incomodava. O pessoal tinha a mesma concepção artística de querer fazer e não se incomodava com comentário, não”, garante.
É o que reforça a atriz Jane Azeredo, envolta em um escândalo por aparecer “nua” na adaptação de “Lucíola” para o teleteatro “O Contador de Histórias”. “O artista não se incomoda de estar fazendo arte”, defende. Na época, a atriz conta, ela estava vestida no set com um corpete e uma bermuda, mas um jogo de câmera sugeria a nudez. “O jornal 'Unitário' lança, no outro dia, no cabeçalho: ‘A um passo da escabrosidade: atriz dança nua na televisão’. Foi um escândalo”, lembra.
Só o fato de trabalharem na TV, ressaltam Glice e Jane, já era motivo para serem vistas como “levianas, fúteis e da vida”, como define a primeira, ou até “putas”, como atesta a segunda. Jane conta que o reconhecimento do público nas ruas era “atravessado”. “As pessoas olhavam de longe, ninguém se aproximava”, afirma.
Glice, por sua vez, lembra de abordagens mais diretas. “Quando a gente chegava numa loja para fazer qualquer compra, as pessoas identificavam. Juntava aquele bloquinho de moças que lá trabalhavam e era: ‘é a Glice que tá ali!’, cochichavam, e aí perguntavam: ‘é você mesmo?’. Eu dizia “é…”, porque tinha que fazer a compra, né?”, ri-se.
Narcélio também rememora ser reconhecido nos caminhos do ônibus que pegava até o prédio da emissora. “Eu morava na rua Padre Anchieta e ia apresentar o noticiário. Pegava o ônibus na praça José de Alencar, depois na praça Tibúrcio e ainda pegava outro. No trajeto, alguns olhavam para mim, querendo saber de onde eu era. Era uma pessoa conhecida na cidade como locutor do rádio, depois passei a ser conhecido como o apresentador da televisão”, reconta.
“O conforto de atores, atrizes, cantores e cantoras era de que estavam em casa e não precisavam viajar para fazer sucesso. Mas era tudo muito limitado, pequeno, artesanal, caseiro”, observa o pesquisador Gilmar de Carvalho. “Criamos nosso olimpo, limitado, mas que repercutiu. Emiliano Queiroz foi para o Rio, Renato Aragão também. Ary Sherlock trabalhou muito tempo na televisão piauiense”, lista Gilmar alguns dos nomes que deixaram o Estado após o sucesso no canal 2.
Mariana Mont’Alverne Barreto Lima, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), produziu a dissertação “TV Ceará: Processo de Modernização da Cultura Local” em 2003. Em entrevista ao O POVO, a pesquisadora aborda sobre as mudanças nos modos de consumo da população e a consolidação de um cultura de massa.
O POVO: No início, a televisão era um bem voltado para a elite. Em que aspectos a TV impactou os modos de consumo dessa parcela da sociedade?
Mariana Barreto: A televisão representou um emblema da modernidade na medida em que ela expressava a ideia de moderno, assim como outros bens já tinham igualmente tido sua expressão, como cinema, rádio e publicidade. Quando cada um destes bens é introduzido em um determinado espaço social, ele altera hábitos e costumes, além de interferir nas relações sociais. No Brasil, não só no Ceará, a televisão, que é um bem de consumo originalmente de massa, pelo menos foi assim que aprendemos a vê-la, chega para um mercado consumidor incipiente, em que não há o consumo massivo de mercadorias. Isso tem implicações diretas sobre a forma como ela será feita e no modo como as apropriações pelos espectadores se darão. Um exemplo: sua programação foi montada a partir das programações teatrais e radiofônicas. Destes dois espaços, vieram técnicos e artistas que fizeram a televisão no Brasil e no Ceará. Ter o aparelho em casa nestes primórdios representou uma marca de distinção para seus poucos possuidores e alterou a dinâmica interna dos lares. Quem não tinha acesso, como mostra o trabalho pioneiro do professor Gilmar de Carvalho, assistia na casa do vizinho (“televizinho”) ou do patrão, nas plateias dos programas ao vivo e, posteriormente, na praça pública. Possuindo ou não o aparelho receptor, existiram alterações nos modos como as pessoas se relacionavam entre si, com o bem recém-lançado e com os novos produtos que ele apresentava.
OP: No Ceará, como ocorreu o processo de transição dessa cultura de elite para a consolidação de uma cultura de massa?
MB: Em 1960, ano de fundação da TV Ceará, a população do Ceará era de mais ou menos 3.340.000 habitantes, divididos entre 66% no campo e 34% nas cidades. Segundo o Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística), existiam cerca de 58 mil aparelhos de televisão naquele ano, no Estado. Era muito pouco e permaneceria assim até 1966, quando houve a inserção do videotape, isto é, de uma programação gravada. Foram modificações técnicas, observáveis tanto nas formas de fazer televisão, quanto nas relações dos consumidores entre si e com os produtos. Sua questão é interessante porque vincula um bem de consumo de massa à elite, que busca a todo custo distinguir-se da “massa” e faz com que remetamos a popularização da televisão à consolidação de uma cultura de massa. Esta contradição é marca do nosso processo de modernização cultural. Com isso, quero acentuar que é difícil pensarmos em termos de cultura de massa também pela diferença que há entre a posse do aparelho e o conteúdo da programação. Por toda uma década, quem estará nas plateias dos programas de auditório da TV Ceará? Invariavelmente a população que não poderia adquirir o aparelho. São as marcas de como nos modernizamos. A resposta sintética a essa questão seria que a televisão se populariza no mesmo momento da introdução do uso do videotape em 1966, com a prática da programação gravada, que implicará no início do fim da TV Ceará.
OP: Quais as diferenças entre a programação produzida no Ceará para a programação de outros estados do Sudeste, que já tinham a televisão há mais tempo?
MB: No início, as programações foram mais ou menos as mesmas, no Ceará e nos outros estados cobertos pelo Diários Associados, enquanto foram ao vivo. A base das programações eram semelhantes: programas de auditório realizados por agências de publicidade, teleteatros, programas educativos e escolares. Era uma série de programas já testados pelo rádio ou pelo teatro. Eram programas levados no ar por técnicos e profissionais de suas regiões. De início, eles recebiam treinamento de especialistas vinculados à direção das Emissoras Associadas, como Péricles Leal, que viajava o Brasil contribuindo para a formação das programações das emissoras e que foi um diretor importante na consolidação da TV Ceará. A distância da programação será estabelecida com o advento dos conteúdos gravados. As diferenças serão muito sentidas, sobretudo se pensarmos no desenvolvimento e na circulação de um produto como as telenovelas. A integração do País via satélite também trará grandes alterações neste sentido. Penso que um aspecto pouco comentado quando se discute esta mudança diz respeito à redução do papel que tinham no recrutamento de talentos locais. Isto sempre se perde nas discussões frente à inegável mudança na qualidade das programações advindas com o uso do videoteipe, da televisão a cores, da integração vai satélite e demais inovações.
OP: O período de construção da TV Ceará foi marcado por um discurso de “progresso”. De que forma a chegada da emissora ao Estado dialogava com o contexto local da época?
MB: O aparelho em si era expressão da modernidade, do progresso a ela associado. Porém, nossa modernidade estava em outro tempo. A vida urbana era incipiente, assim como a industrialização. Se tomarmos a industrialização como expressão da modernidade capitalista, os indícios dela no Ceará aparecem somente nos dois governos de Virgílio Távora. Em seus governos, colocaram-se as bases para o processo de industrialização do Ceará. A universalização do ensino médio, por exemplo, aconteceu neste período. Em 1960, tínhamos uma sociedade eminentemente agrária. Mesmo o rádio havia se popularizado, mas os números de aparelhos ainda eram pequenos para uma sociedade que enxergava na posse dos bens culturais uma expressão de sua modernização. Nestes discursos, a modernidade e a ideia de progresso a ela associada não eram vistas como processos sociais.
OP: Quais as mudanças que podem ser identificadas acerca da relação da população com o rádio após a chegada da TV?
MB: O uso destes bens alteram os hábitos das pessoas, assim como as pessoas também alteram seus conteúdos com suas novas exigências e novas necessidades (criadas pela publicidade, por exemplo). Em um primeiro momento, podemos pensar que o ouvinte não largou o rádio, muito pelo contrário, o rádio também passou a educá-lo para a televisão, para a publicidade, para o telejornal que ia ao ar. Ele preparou o ouvinte para a posse do aparelho de televisão. Foi usado, como é até hoje, em uma estratégia de fazer convergir os bens, muitas vezes braços de um mesmo grupo. O rádio contribuiu para a popularização da TV Ceará, quer seja inspirando formatos de programas e dividindo seus profissionais, técnicos e artistas, quer seja sensibilizando o ouvinte para as novas formas de comunicação. A meu ver, o rádio emprestou seus ouvintes para os programas ao vivo da TV Ceará. Agora, não podemos esquecer que, quando a TV Ceará foi ao ar em 1960, nem o rádio podia ser visto como um bem de consumo das classes populares no Ceará.
O surgimento do videotape em 1966 facilitou a produção dos programas televisivos, mas também iniciou uma cadeia de problemas que a Rede Tupi não conseguiria superar. Era uma nova fase para a televisão e, também, o início do fim da primeira emissora do Brasil.
A primeira questão se tornou evidente desde a implementação da tecnologia: tornou-se mais barato elaborar conteúdos no Rio de Janeiro e em São Paulo para, depois, enviar às televisões de outras regiões. Com isso, programas cearenses, até mesmo seus teleteatros, foram extintos. Antes produtores, os canais passaram a ser reprodutores.
No começo, não havia tecnologia suficiente, e os tapes vinham de avião para o território cearense. “Até que surgiu o satélite, e a transmissão passou a ser por ele, sem necessidade da peregrinação de um funcionário com as fitas - que eram enormes”, comenta Ricardo Guilherme. A Embratel, chamada de Empresa Brasileira de Telecomunicações, foi uma empresa criada pelo presidente Castelo Branco para possibilitar comunicações via satélite.
Outro fator intensificou a queda da Rede Tupi: a morte de Assis Chateaubriand, em 1968. “A partir desse momento, o modelo centralizador de tomar decisões entrou em crise. Chateaubriand não era um homem de preparar sucessores e entrou em rota de colisão com seu filho Gilberto”, identifica Gilmar de Carvalho.
Houve, ainda, uma questão regional após a implementação da TV Verdes Mares, em 1970. “Ela trazia a percepção dos erros da emissora pioneira e tratava de fazer uma gestão mais enxuta, já sem os investimentos da produção local e centrada no telejornalismo. Novelas, musicais e shows já vinham da Globo e da Record. Depois de algum tempo, o canal 10 se tornou uma afiliada da Globo”, explana o pesquisador.
Em meio a esse cenário instável, a Rede Tupi começou a enfrentar problemas administrativos e financeiros. Falta de pagamento de seus funcionários e dívidas eram os pontos principais. A situação teve desfecho em julho de 1980, quando João Figueiredo, o último presidente do regime militar brasileiro, assinou o decreto que extinguiria a Rede Tupi. Entre as emissoras que foram fechadas, estava a TV Ceará.
O POVO, em 9 de setembro de 1980, publicou uma crítica à situação: “Desde o dia 18 de julho que os funcionários da extinta TV Ceará Canal 2 não recebem um centavo dos salários a que fazem jus. A situação chega a ser de desespero para a maioria dos empregados porque não dispõem de outra fonte de renda. O governo federal, apesar da promessa, ainda não assumiu a dívida do condomínio”.
Apesar das polêmicas, um dos fundadores da TV Ceará, Eduardo Campos, defendeu seu ponto de vista também no O POVO, em 26 de novembro de 1980. “Conquanto enfrentássemos problemas financeiros, nunca deixamos de operar regularmente nos bancos e de cumprir nossas obrigações com terceiros. Mesmo o atraso de pagamento a funcionários foi situação tolerada por todos. Nunca ocorreu questão nenhuma da Justiça do Trabalho”, afirma.
Para ele, a medida do governo de fechar a Rede Tupi não acabaria com o que identificou como o real problema. “Os problemas da televisão, no Brasil, não se vão resolver com o fechamento da Rede Tupi. Se o governo não disciplinar o funcionamento das repetidoras da Globo, o que representarão, em termos de faturamento e de audiência, quatro ou cinco emissoras de outras ‘redes’? Infelizmente, os governos pensam que entendem de tudo. Não se dá assim. Faz-nos crer que tem fórmulas para solucionar crises. E elas continuam”, argumenta.
As memórias do canal 2 se mantêm vivas, hoje, mais no âmbito imaterial do que no material. Isso porque são poucos os registros de fotos, documentos e vídeos dos 20 anos de história da TV Ceará. As dissertações, livros e publicações posteriores ao fim da emissora, bem como acervos de jornais, como o O POVO, são as fontes possíveis de pesquisa documental sobre o início da experiência televisiva no Estado.
“Como não tínhamos como registrar o que foi feito, quase tudo se perdeu. Não tínhamos arquivo, acervo”, aponta Gilmar de Carvalho. “A TV Ceará fica cada vez mais longe, no tempo. Perdemos quase todos os participantes destes tempos inaugurais. Muita coisa deve ter ficado, além da saudade. Experimentamos um jeito nosso de fazer tevê. E como digo, nostalgicamente, no final do livro: ‘Nunca mais mudaremos de canal’”, finaliza o pesquisador.