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Fratelli Tutti: convite ao amor que ultrapassa barreiras
Reportagem Especial

Fratelli Tutti: convite ao amor que ultrapassa barreiras

Convidados de vários credos e experiências religiosas refletem sobre a Carta Encíclica Fratelli Tutti, lançada pelo papa Francisco em outubro de 2020. O documento aconselha o mundo ao exercício da fraternidade e amizade social para além das diferenças e doutrinas.

Fratelli Tutti: convite ao amor que ultrapassa barreiras

Convidados de vários credos e experiências religiosas refletem sobre a Carta Encíclica Fratelli Tutti, lançada pelo papa Francisco em outubro de 2020. O documento aconselha o mundo ao exercício da fraternidade e amizade social para além das diferenças e doutrinas.
Tipo Análise Por

Lançada em outubro de 2020 pelo papa Francisco, a Carta Encíclica Fratelli Tutti reflete sobre a fraternidade e a amizade social. Inspirada em São Francisco de Assis, o documento aconselha pessoas de todos os credos em todo o mundo a exercitarem um amor que ultrapassa barreiras geográficas e espaciais.

Na Carta, o papa Francisco lança mão de fatos históricos da vida do santo italiano para fundamentar a possibilidade de um amor que é capaz de substituir doutrinas por uma amizade que une povos, ideias e ideais distintos. Ele relata a viagem que São Francisco fez ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito há 800 anos. Na ocasião e em meio a conflitos de toda ordem, Francisco, o santo, pôs em prática o princípio ensinado aos seus discípulos: “não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus”.


O mesmo princípio norteou Francisco, o papa, a escrever a Encíclica que segundo ele, “sempre esteve” entre suas preocupações. E afirma que além de São Francisco e de suas convicções cristãs, pessoas do mundo inteiro, nos diversos países que visitou influenciaram a Fratelli Tutti.

“Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”, afirma o papa.


Para refletir sobre a Encíclica papal, O POVO convidou pessoas de credos e experiências religiosas distintas a dialogarem sobre o amor despretensioso e capaz de unir humanos diversos. 

Atenderam ao convite, o professor e jesuíta Élio Gasda, a pastora metodista Nancy Cardoso, o pastor Jamieson Simões, a biblista Maria Soave Buscemi,  o sócioantropólogo mulçumano, Abdoul Hadi Savadogo e o líder rabínico Pablo Schejtman.

 

 

 

Por uma cultura da fraternidade

Por Élio Gasda*

 

 

Élio Gasda, jesuíta e professor da Faculdade Jesuíta, em Belo Horizonte(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Élio Gasda, jesuíta e professor da Faculdade Jesuíta, em Belo Horizonte

Fratelli Tutti situa a dignidade (n. 8, 39, 68, 85, 106, 124) como um valor de primeira ordem. Sua origem está em Deus, fonte de nossa irmandade fundamental.

Somos todos irmãos: imigrantes, refugiados, indígenas, trabalhadores, desempregados, sem teto, sem-terra, presos, doentes, vítimas das guerras, LGBT, vítimas do racismo, da pandemia, do feminicídio, da fome. Descartados, desnecessários, invisíveis.

 

"A fraternidade é o caminho pelo qual as barreiras geográficas, étnicas, culturais e religiosas podem ser superadas. Se trata de resgatar aquilo que a civilização perdeu de mais valioso: sua humanidade. Dependemos mais do outro do que ele de nós. Além de cuidar do outro, a compaixão nos salva a nós mesmos".

 

Fraternidade é o contrário da indiferença, do egoísmo, do narcisismo, do desprezo pelos humildes. “Reconhecendo a dignidade de cada pessoa, podemos resgatar entre nós o desejo universal de irmandade, uma só humanidade, filhos desta mesma terra que nos protege, cada um com sua própria voz, como irmãos” (FT, 8).


Papa Francisco fundamenta a fraternidade na pessoa de Jesus Cristo. Uma fraternidade iluminada por uma das páginas mais perturbadoras da literatura universal, a parábola do Bom Samaritano (Lucas 10, 25-37). Este relato é chave para ver a realidade mundo: “a inclusão ou a exclusão da pessoa que sofre à margem do caminho define todos os projetos econômicos, políticos, sociais e religiosos” (FT, 69).

 

O que é ser humano? É aproximar-se dos feridos. Todas as divisões são superadas quando nos aproximamos como irmãos. “Aproximar-se, expressar-se, escutar-se, olhar-se, conhecer-se, compreender-se, buscar pontos de contato, tudo isso se resume no verbo dialogar.

 

A fraternidade é o caminho pelo qual as barreiras geográficas, étnicas, culturais e religiosas podem ser superadas. Se trata de resgatar aquilo que a civilização perdeu de mais valioso: sua humanidade. Dependemos mais do outro do que ele de nós. Além de cuidar do outro, a compaixão nos salva a nós mesmos.

O que é ser humano? É aproximar-se dos feridos. Todas as divisões são superadas quando nos aproximamos como irmãos. “Aproximar-se, expressar-se, escutar-se, olhar-se, conhecer-se, compreender-se, buscar pontos de contato, tudo isso se resume no verbo dialogar. Para encontrar-nos e ajudar-nos mutuamente necessitamos dialogar” (FT 198).

 

Este é desafio: colocar o ser humano em primeiro lugar, sem desculpas. A proposta de Jesus é para toda pessoa de boa vontade! O amor humano tem a dimensão do universo, é aberto a todas as criaturas

 

Uma nova consciência de humanidade exige novos vínculos entre as pessoas, povos e nações. A fraternidade é horizontal, “onde cada um sente espontaneamente o dever de acompanha e ajudar seu vizinho” (FT, 152). A fraternidade rompe o esquema vertical-autoritário de organização social. A fraternidade favorece a gestação de um mundo aberto a todos, sem distinção, com criatividade para enfrentar os obstáculos.

Quem poderá construir essa “cultura da fraternidade”? Todos nós. Não é um otimismo ingênuo, mas um realismo carregado de esperança em um planeta que assegure terra, moradia e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz” (FT, 127).


Este é desafio: colocar o ser humano em primeiro lugar, sem desculpas. A proposta de Jesus é para toda pessoa de boa vontade! O amor humano tem a dimensão do universo, é aberto a todas as criaturas (FT, 6). É urgente “voltar a levar a dignidade humana ao centro e sobre este pilar construir as estruturas sociais alternativas que necessitamos” (FT, 168).

Essa é a mensagem do fundador do Cristianismo. Que nos amemos uns aos outros. O amor é a única Lei. Porque Deus é amor (1 Jo 4, 8). O amor é única religião. “As religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião” (FT, 285). Fratelli tutti é uma declaração de amor pela humanidade. All we need is love! (John Lennon).

 (*)Elio Gasda, teólogo católico, professor de Ética Teológica e Social da Faculdade Jesuíta , em Belo Horizonte, pesquisador e autor de vários livros, entre eles Trabalho e capitalismo Global: atualidade da doutrina social da Igreja. 

 

 

 

O Amor místico-político

Por Maria Soave Buscemi*

 

Soave Busceme, educadora e biblista popular(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Soave Busceme, educadora e biblista popular

Sou uma mulher errante sem medo de errar entre a Vida mais ameaçada e a Bíblia. Hoje todas as ciências que trabalham com formação afirmam que as inteligências são múltiplas e eu respiro outras inteligências possíveis, não só a “racionalidade”. Quero propor uma leitura da encíclica do papa Francisco “fratelli tutti” em uma perspectiva de inteligência de Amor místico-político. A inteligência racional e patriarcal obriga a separar e colocar em conflito a palavra “mística” e a palavra “política”. Uma inteligência de Amor abraça as duas palavras em um mesmo respiro. As duas palavras que são práticas “co-spiram”, respiram o mesmo respiro.

 

“'Cinco´, na espiritualidade dos números pode indicar o eixo, a coisa mais importante. Nos nove mandamentos escritos no Primeiro Testamento, o quinto indica o coração da lei. Não matarás! Defenda sempre a Vida, sobretudo toda a forma de Vida mais ameaçada!"

 

A carta encíclica de Francisco “fratelli tutti” necessita de uma leitura de inteligência de Amor místico político. A inteligência de Jesus de Nazaré, a inteligência de seu movimento de mulheres e homens errantes sem medo de errar no meio das pessoas, nas periferias existências do mundo daquela e desta nossa época.

“Cinco”, na espiritualidade dos números pode indicar o eixo, a coisa mais importante. Nos nove mandamentos escritos no Primeiro Testamento, o quinto indica o coração da lei. Não matarás! Defenda sempre a Vida, sobretudo toda a forma de Vida mais ameaçada!

Cinco então me parecem os passos significativos que esta encíclica respira e nos faz respirar:


1. Escrevo o teu nome, Povo, sempre com letra maiúscula!
Assim poetizava Pablo Neruda. O papa nos convida a voltarmos a ser, de verdade e cotidianamente, Povo. Necessitamos sair do estado de “indivíduo” para voltarmos a ser “pessoas” entrelaçadas entre todas, todos e Tudo.

2. Cuidar é mais do que sarar! Este tempo de capitalismo extremo nos fez indivíduos apressados e arrogantes. Necessitamos entender que desencadear processos, em tempo de respiro curto da Terra e da Humanidade, processos que necessitam de tempo, é mais importante do que a pressa de ocupar espaços. Somente uma prática humilde e cotidiana de cuidado por parte de nós, Humanidade de homens e mulheres, pode encaminhar um processo com a saúde e a cura no horizonte.


3. Mátria é mais do que Pátria!
Palavra que não entra no vocabulário patriarcal de bandeiras, sangue, guerras, exércitos e violência. Mátria é a Mãe Terra que nos sustenta e nos governa. Mátria são relações recriadas na humildade, que vem de “húmus”, Terra boa, da qual sabemos se ser feitas e feitos. Uma irmandade entre todas, todos, uma irmandade, uma amizade social com todas as pessoas, sobretudo as mais empobrecidas e a Terra.

4. Matrimônio é mais do que patrimônio! O dom da Mãe Terra, como diz a palavra matrimônio é o que nos faz respirar. Por isto necessitamos superar a prática do “domínio” patriarcal e do acumulo da propriedade: o patrimônio.

5. Pedir emprestado é mais do que possuir! Em um amor social, um amor místico-político, saímos da arrogância do querer possuir, da arrogância da relação violenta e violentadora que o patriarcado pratica contra mulheres, crianças, a maioria dos homens, com a Terra, a Água, o Ar. Não deixamos a terra em herança para as novas gerações, a Terra é Mãe, não se compra ou vende, pedimos humildemente emprestado para as gerações futuras.

Como canta Vinícius De Morais na música citada pelo papa “a alegria é como uma luz no coração”. Esta luz, estas práticas, para tua e a minha Vida, nossa Vida a Vida da Terra...assim é Natal!

(*) Maria Soave Buscemi é educadora e biblista popular. Há mais de 20 ano partilha a Vida e a Bíblia nas comunidades afro-ameríndias. Vive atualmente na Terra do Meio do Planalto Catarinense. 

 

 

 

 

Percursos de esperança

Por Jamieson Simões*

Jamieson Simões, pastor, pós-graduando em Sociologia pela UFC(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Jamieson Simões, pastor, pós-graduando em Sociologia pela UFC

O Papa Francisco repete os passos dos grandes profetas da cristandade e parece ser a voz a clamar no deserto: Fratelli Tutti! Todos irmãos e Irmãs! É inusitado e trágico que o líder máximo dos cristãos católicos no mundo, precise de uma encíclica para exortar aos fiéis sobre amizade entre os povos e fraternidade entre os corpos.

Valores que deveriam ser o legado do cristianismo são abandonados tão facilmente por corações fundamentalistas e raivosos. Sim, o Papa Francisco é um estranho entre seu próprio povo e os cristãos não se mostram muito acolhedores com os “estranhos” ultimamente.


Ao discorrer sobre a produção do medo, o apagamento cultural promovido pelos países ricos contra os países pobres, a pandemia escancarando as desigualdades, o pontífice abre uma frente dupla, de um lado faz uma denúncia contundente do sistema econômico de capital acumulativo, onde partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites (Sociedade do desperdício).

 

"Francisco é um pastor (e dos bons). Faz o que todo bom teólogo deve fazer: bíblia numa mão e o jornal na outra. Sua fala é relevante, atual, contundente. Comunica com exatidão o mínimo ético exigido dos cristãos e cristãs – Ame a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo".


Por outro lado, recorre a teologia para comunicar aos fiéis, na linguagem que possam entender, lança mão da tradição citando os pais da igreja e o seu maior santo “São Francisco de Assis” mas para os corações empedernidos, apela para parábola evangélica do “Bom samaritano” no afã de os converter de seus maus caminhos.

Ousa ainda convocar as mentes cristãs a pensar e gerar um mundo aberto com sociedades acolhedoras, plurais em franca abertura para O Outro. Uma vivência de solidariedade e de reposição da função social da propriedade. O Papa faz jus ao nome e denuncia a vaidade e inutilidade da riqueza frente ao grande tesouro da abertura progressiva ao amor, aos valores do bem, do direito dos povos e numa revelação poética do evangelho denuncia as fronteiras como zonas de exclusão e violação de direitos humanos.

 

"Fratelli tutti é um convite à acolhida daqueles que nos sãos estranhos. É um caminho de esperança, mesmo que frágil, torna-se um sinal de que o sonho de uma sociedade liberdade, igualdade e fraternidade ainda encontra guarida em muitos corações".

 

Francisco é um pastor (e dos bons). Faz o que todo bom teólogo deve fazer: bíblia numa mão e o jornal na outra. Sua fala é relevante, atual, contundente. Comunica com exatidão o mínimo ético exigido dos cristãos e cristãs – Ame a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Evidentemente, todo profeta paga um preço pelo seu compromisso e denúncia, alguns pagaram com a vida.


No caso do Papa Francisco o preço é a desobediência de alguns bispos e padres que o acusam de um “discurso ideológico”, mas na verdade, estão incomodados pelo discurso que desafia seu discurso violento e a avareza (o deus deste século lhes cegou o juízo, já alertava São Paulo). Fratelli tutti é um convite à acolhida daqueles que nos sãos estranhos. É um caminho de esperança, mesmo que frágil, torna-se um sinal de que o sonho de uma sociedade liberdade, igualdade e fraternidade ainda encontra guarida em muitos corações.

(*)Jamieson Simões é pastor evangélico. Pesquisador do Laboratório de Conflitualidades e Violências/COVIO/UECE e pós-graduando em Sociologia PPGS/UFC

 

 

 

 

Sobre o risco de ter miragens - conversando com Francisco:
Uma leitura feminista da Encíclica Fratelli Tutti

Por Nancy Cardoso*

Nancy Cardoso é pastora e teóloga metodista, autora de vários livros(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Nancy Cardoso é pastora e teóloga metodista, autora de vários livros

As contribuições do Papa Francisco no atual período de crises que vivemos já são conhecidas e reconhecidamente. No ponto 108 Francisco toca numa ferida estrutural da apropriação de terra e território e os mecanismos de privatização dos comuns que geram pobreza, os casos de racismo que continuam acontecendo (ponto 20), a falta de plenos direitos humanos para as mulheres (pontos 23, 121 e 136) e como vítimas de violência (pontos 24 e 227).

Tudo está posto e bem analisado; o texto vai criando uma síntese importante… mas insuficiente e pouco corajosa porque não enfrenta a miragem mais antiga, estrutural e estruturante: o patriarcado.


“Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos” – Fratelli Tutti (ponto 6)

Mas seria demais pedir do Papa Francisco que fosse uma voz para além da voz dEle mesmo: é uma voz histórica, situada e plena de identidade patriarcal que – se considerada sozinha – pode nos projetar miragens: de um patriarcado pacificado, uma comunidade de homens-irmãos.


Precisamos de espaços de diversidade, plenos de simetria e processos de decisão democráticos. O cristianismo em geral, e a igreja católica em particular, não tem sido espaço de generosa e radical democracia. Por isso é extremamente importante não deixar Francisco, o Papa, falando sozinho: é preciso fazer ouvir as vozes que Francisco não pode pronunciar por nós: feministas populares, indígenas, comunitárias, negras, camponesas, feministas lésbicas, com diferentes capacidades, feministas socialistas, materialistas, operárias, sindicalistas.**


Perdoar com a dor alheia: não!

O perdão e a suspensão da vingança vão ser expressos de modo insistente na Encíclica (pontos 227, 241). Entretanto esta perspectiva vai ser fragilizada e descaracterizada quando um modelo de família ideal vai ser apresentado como exemplo de “projeto comum” capaz de perdoar.

- As brigas de família tornam-se reconciliações mais tarde… Oh, se pudéssemos conseguir ver o adversário político ou o vizinho de casa com os mesmos olhos com que vemos os filhos, esposas, maridos, pais ou mães, como seria bom! (ponto 230)

Não é nada bom! Ampliar o modelo familiar para as relações de vizinhança e disputa política é péssimo e revela a falta de escuta do que as mulheres – nas igrejas e na sociedade – vem dizendo.

Relacionar “briga familiar – reconciliação” revela mais uma vez que as igrejas não têm coragem da autocrítica. Esta família e este perdão são miragens.


Em memória dela: a Samaritana

A simbologia bíblica apresentada é a do Bom Samaritano: Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano (ponto 67). O “Samaritano” é o protagonista, ele tem a iniciativa e é o exemplo; a pessoa que sofre a agressão - (ponto 67) - e que recebe a boa ação do Samaritano é vítima! Não fala nada, não tem opinião e recebe passivamente os cuidados e ações.

Por isso fico com a Samaritana (João 4, 5 a 29): ela recebe Jesus, ela identifica os preconceitos e desigualdades; ela sabe que é mulher e não tem “palavra”: mas ela fala! ela explicita os conflitos, ela não aceita sermão pronto, ela quer interação verdadeira! Ela também sabe escutar e sabe retrucar. Ela negocia. Ela cria um espaço de entendimento e ela corre para criar as condições da boa nova.


Sem esta escuta e convivência as palavras, pastorais, encíclicas e teologias viram “miragens”. Não somos “TODOS IRMÃOS”, Francisco. Somos tutto (todo), tutta (toda), tutti (todos), tutte (todas), tanto (tanto), tanta (tanta), tanto (tantos), tante (tantas): tutte sorelle, tutti fratelli, tutta la vita!

 

(*) Nancy Cardoso, teóloga feminista, pastora metodista, assessora da Comissão Pastoral da Terra, coordenadora teológica na Christian Aid. Escreveu vários livros entre eles Palavras feitas de carne - leitura feminista e crítica dos fundamentalismos e Remover pedras plantar roseiras, fazer doces - por um ecossocialismo feminista.

(**) 14º Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe - realizado no Uruguai em 2017.https://www.awid.org/es/noticias-y-an%C3%A1lisis/feministas-diversas-pero-no-dispersas

 


Fratelli Tutti. Demos esse passo!

Por Pablo Schejtman

 

Pablo Schejtman, Líder rabinico, Sociedade Israelita do Ceará(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Pablo Schejtman, Líder rabinico, Sociedade Israelita do Ceará

Para compor a Carta Encíclica Fratelli Tutti, dedicada à fraternidade e à amizade social, o Papa Francisco se inspirou no São Francisco de Assis, em Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi, Carlos de Foucauld, em seus encontros com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e em “numerosas cartas e documentos com reflexões de tantas pessoas e grupos de todo o mundo”. Sem dúvida, as confluências potencializaram esse documento audacioso, que ultrapassa expectativas e não se limita a palavras, senão que convida à ação.

Fratelli Tutti 2020(Foto: frantisek duris/unsplash)
Foto: frantisek duris/unsplash Fratelli Tutti 2020

Faz-se substancial, portanto, reconhecer o valor da proposta, que sintoniza com aquele fervor de justiça dos profetas bíblicos. Enfim, encorajar-nos e colocar-nos ao par.

 

"Em contraste a amizade social, condição da fraternidade, não supõe a abertura geográfica, mas sim existencial. Ressoa como um chamado ao encontro, à solidariedade e à gratuidade. No oitavo capítulo, o último, a encíclica reconduz as religiões ao serviço da fraternidade no mundo".

 

No texto, Francisco começa por descrever o atual declínio dos sonhos de integração, um contratempo na celebração das raízes comuns e do regozijo com a diversidade. Em contrário, salienta alguns sinais infelizes de regressão na história. Assim, alude aos nacionalismos ressentidos, ao racismo mais ou menos dissimulado, à persistência de formas da escravatura, ao enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade e à dissolução do pensamento crítico. Em escala global, refere-se ao estado geral de desânimo induzido, de desconfiança constante, de medo ameaçador, de retirada.

Fratelli Tutti 2020(Foto: heike mintel/unsplash)
Foto: heike mintel/unsplash Fratelli Tutti 2020

Em contraste a amizade social, condição da fraternidade, não supõe a abertura geográfica, mas sim existencial. Ressoa como um chamado ao encontro, à solidariedade e à gratuidade. No oitavo capítulo, o último, a encíclica reconduz as religiões ao serviço da fraternidade no mundo. A respeito, transcrevo um fragmento do Discurso na Comunidade de Santo Egídio (30/09/2013) “… o mandamento da paz está inscrito nas profundezas das tradições religiosas que nós representamos. (...) Nós, líderes religiosos, somos chamados a ser verdadeiros “dialogantes”, a agir na construção da paz, e não como intermediários, mas como mediadores autênticos.”

 

"Ainda mais, justamente hoje, 23 de dezembro de 2020 - que no calendário judaico corresponde ao dia 8 do mês de Tevet do ano 5781 -, lemos que a família fica a um passo de se reunir para conviver na prosperidade de maneira definitiva". 

 

De todos os lados se nos incita a esta obra. Em parashat Vayigash - a porção desta semana do ciclo de leitura anual da Torá (Pentateuco)- Yossef e seus irmãos se reencontram depois de viver separados por décadas. Ainda mais, justamente hoje, 23 de dezembro de 2020 - que no calendário judaico corresponde ao dia 8 do mês de Tevet do ano 5781 -, lemos que a família fica a um passo de se reunir para conviver na prosperidade de maneira definitiva.

Em concordância com Fratelli Tutti e sem recriminações, “nem litigios, nem contendas”, demos esse passo.

(*) Pablo Schejtman, Líder Rabínico, Sociedade Israelita do Ceará

 


De alma aberta e da cidadania cultural 

Por  Pingréwaoga Béma Abdoul Hadi Savadogo

 

Abdoul Hadi Savadogo, socioantropólogo(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Abdoul Hadi Savadogo, socioantropólogo

Por islã, se define o Universo, seus mundos e demais almas. Que intrigante ver através quase oito bilhões de seres, parte dessa diversidade encantadora. Quantas cores! Quantas melodias! Que convite! Desse convite à irmandade despojada de tergiversação e pelo qual, amar é sempre amar os demais, preocupando-se da oportunidade que cada humano é.

A antropologia islâmica faz do "vice-regente de Deus" diante de uma parte de sua criação (a terra, seus recursos e habitantes), o responsável estabelecido para proteger a vida pelo cuidar da criação divina – o que é, portanto, a condição da plena realização de sua humanidade. Nisso, a consciência ecológica aparece como um imperativo na conjugação do viver junto, em sociedade.


A partir duma cidadania enraizada em nosso lugar existencial, trata-se de participar à luta pela diversidade dos cantos, sem jamais esquecer da suprema origem. A todos que se reconhecem nessa luta, é imprescindível assumir melhor o compromisso primordial feito ao Supremo. Construir a paz em nós é nesse sentido, dispor sua alma a, na hora certa, voltar para seu Senhor satisfeita e aprovada.


Daí a profundidade do pensamento do Mandé: "Reconhecer e respeitar a humanidade alheia / Leva ao melhor conhecimento da diversidade, da vida / É reconhecendo e respeitando a humanidade alheia que pessoas se juntam à sua causa; se entregam a ti / Sim, trata-se da delicadeza, da ternura que se dedica ao humano / Preste atenção! Perceberá que filhos até deixam de ser por falta disso / Ser anfitrião faz apelo ao mesmo princípio / E mais, vale igualmente diante dos animais / Disso, não há arrependimentos / Se acontece que ninguém o reconhece, / Pode ter certeza que Deus o fará / Vem na minha terra! / Verá casais românticos / Experimentará também o sabor da fraternidade e da irmandade / Ao chegar na minha terra, descobrirá como pessoas sabem reconhecer e respeitar o humano".**

(*) Pingréwaoga Béma Abdoul Hadi Savadogo, socioantropólogo, membro da Casa das Áfricas - Amanar. Pesquisador Associado I - Instituto de Estudos da África IEAf-UFPE

(**) Canção (em bambara/diula): "Maaladon - Oumou Sangaré". Tradução livre pelo autor.

 


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