“Minha nossa senhora, eles entendem tudo, não é possível!” Quem tem algum bichinho de estimação ou já assistiu a vídeos de animais tendo comportamentos incríveis, provavelmente disse isso ao menos uma vez. Os seres humanos ficam surpresos quando vêem animais demonstrando o que parece ser luto, amor, solidariedade interespécie ou qualquer outro nome que se dá às formas de interagir com o mundo.
“Todos os dias acontecia algo que eu repetia isso”, comenta a enfermeira Daniele Vasconcelos. A tutora de duas cadelas, Thammy e Mel, viveu anos se questionando como as “filhas” - como ela gosta de chamar - percebiam e reagiam aos mínimos detalhes do cotidiano. Nos momentos de tristeza, por exemplo, elas eram as primeiras a consolar a tutora.
“De alguma maneira, eles entendem o que a gente sente, o momento pelo qual a gente está passando”, concorda Ana Vitória Reis, estudante universitária e tutora de cinco cães. E, se eles parecem entender e sentir, a pergunta que fica é: por quê? Será que há uma consciência animal?
Há mais de um século, essa é uma das perguntas que a neurociência tenta responder. Mas antes de dar a resposta “sim” ou “não” é preciso definir o que é, de fato, consciência. Isso porque a palavra pode significar muitas coisas. O dicionário dirá que ela é sinônimo de autoconhecimento, sapiência… E mais especificamente, definirá que é um atributo humano. E não é bem por aí.
Em 2012, um grupo internacional de cientistas assinou, na presença de Stephen Hawking, a "Declaração de Cambridge Sobre a Consciência". Nela, especialistas de várias áreas da neurociência declararam que todos os mamíferos e aves, e até outras “criaturas”, como os polvos, possuem consciência.
"Eles têm percepção do que acontece com eles e com o que os rodeia."
Até então, acreditava-se que apenas os humanos tinham essa capacidade por serem os únicos com neocórtex, a parte mais desenvolvida do nosso cérebro e também responsável pelos estados afetivos. No entanto, os cientistas descobriram que os animais não humanos também têm estruturas anatômicas e bioquímicas responsáveis pela percepção, pela memória e pela “capacidade de exibir comportamentos intencionais”.
“Eles têm percepção do que acontece com eles e com o que os rodeia”, simplifica a médica veterinária Glayciane Bezerra de Morais, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
“Dentre exemplos que eu acho importante lembrar está o da cientista norte-americana Irene Pepperberg”, pontua Ceres Faraco, especialista em comportamento animal do Instituto de Saúde e Psicologia Animal (Ispa). A doutora Pepperberg trabalha há mais de 30 anos com cognição animal em aves e teve uma “relação de trabalho e de amor” com o papagaio Alex.
Alex foi considerado um dos animais mais inteligentes do mundo: era capaz de falar mais de 30 mil palavras, fazia operações matemáticas simples, reconhecia cores, formava frases e identificava texturas. Ele também era um brincalhão (como Pepperberg conta no vídeo abaixo), especialmente durante entrevistas com a imprensa e com CEOs de grandes empresas.
"Existe até um projeto, chamado Grandes Primatas, em que as pessoas debatem sobre por que os grandes primatas não são considerados sujeitos de direito."
De fato, ainda é incerto se alguns animais não humanos são capazes da autorreflexão. É por isso que a Filosofia afirma que apenas os humanos são seres conscientes, explica a professora Francisca Galiléia da Silva, do curso de Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC). No entanto, a especialista do Ispa, Ceres Faraco, aponta que alguns animais - como grandes macacos, golfinhos e elefante - se reconhecem no espelho, sendo um forte indicativo de que eles se percebem como indivíduos.
"Existe até um projeto, chamado Grandes Primatas, em que as pessoas debatem sobre por que os grandes primatas não são considerados sujeitos de direito. Se a gente tem uma pessoa em estado vegetativo, e ela é um sujeito de direito, por que um grande primata não pode ser reconhecido também?", questiona Ceres.
Autorreflexivos ou não, os animais definitivamente são sencientes. Ou seja, eles têm a capacidade de sentir. Para Charles Darwin (1809 - 1882), o precursor da biologia moderna, o nível de senciência entre humanos e animais difere apenas em grau, mas não em gênero.
No livro A expressão das emoções no homem e nos animais, quase um anexo ao A Origem das Espécies, Darwin avalia que animais humanos e não humanos demonstram as emoções de maneira fisicamente similar. Em situações de perigo e raiva, por exemplo, os pelos eriçados e caninos à mostra foram comuns em cães, gatos e humanos. Veja algumas ilustrações da obra, utilizadas por Darwin para análises do livro:
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(Foto: Reprodução/Mr. T. W. Wood)"Gato em um estado mental afetuoso." Imagem escaneada da edição de 1965 por Konrad Lorenz, publicada pela University of Chicago Press
(Foto: Reprodução/Guillaume Duchenne)"Horror e agonia." Imagem escaneada da edição de 1965, por Konrad Lorenz e publicada pela University of Chicago Press.
(Foto: Reprodução/Guillaume Duchenne)"Terror." Imagem escaneada da edição de 1965, por Konrad Lorenz e publicada pela University of Chicago Press.
(Foto: Reprodução/Mr. T. W. Wood)"Gato aterrorizado por um cachorro." Imagem escaneada da edição de 1965, por Konrad Lorenz e publicada pela University of Chicago Press.
(Foto: Reprodução/Mr. T. W. Wood)"Rosto de um cão rosnando." Imagem escaneada da edição de 1965, por Konrad Lorenz e publicada pela University of Chicago Press.
(Foto: Reprodução/Mr. A. May)"Cão acariciando seu mestre." Imagem escaneada da edição de 1965, por Konrad Lorenz e publicada pela University of Chicago Press.
(Foto: Reprodução/Mr. Riviere)"Cão aproximando-se de outro cão, com hostilidade." Imagem escaneada da edição de 1965, por Konrad Lorenz e publicada pela University of Chicago Press.
(Foto: Reprodução/Mr. T. W. Wood)"Gato, selvagem e preparado para o ataque", diz a descrição. Imagem escaneada da edição de 1965, por Konrad Lorenz e publicada pela University of Chicago Press.
É por meio dessa senciência, diz a médica veterinária Glayciane, que os animais compartilham afetividades. Por essa habilidade de criar vínculos afetivos, a entrevista com Daniele Vasconcelos, do começo da matéria, foi triste. Thammy e Mel faleceram recentemente e o luto ainda mora na casa da enfermeira.
Ainda é difícil ver fotos e relembrar momentos com as cadelinhas, mas o amor continua. “Eles são seres que sentem, sofrem, padecem. São seres que têm depressão, vivem o luto, que amam, que sentem paixão”, reforça a tutora.
"O gato é a única espécie conhecida que desenvolve uma doença física (a lipidose hepática) pela separação afetiva do dono"
A descrição do comportamento emocional dos bichinhos não é puramente antropomórfica. Segundo Glayciane Bezerra, os animais podem até chegar a desenvolver doenças psicossomáticas. “O gato é a única espécie conhecida que desenvolve uma doença física (a lipidose hepática) pela separação afetiva do dono”, cita. Eles também podem ficar obesos por tédio, enquanto os cães podem ter comportamentos compulsivos pelo confinamento excessivo.
"Eu não sei se tenho fotos deles porque um deles é maluco. Os dois têm personalidades completamente diferentes", brinca Amanda Liara, estudante universitária e tutora de dois cães "doidos". Basta perguntar para algum amante de pet que fica fácil atestar a existência de personalidades: alguns são doidos, outros "traquinas", muitos outros carinhosos e vários brincalhões. Os adjetivos são diversos, assim como as manias - e não é de se estranhar.
“No consultório eu já vi pessoas falarem ‘aí, eu tive um poodle e ele é diferente daquele poodle’. Claro que é diferente. Não é uma marca de carro”, ri Ceres Faraco, do Ispa. Na realidade, os animais chegam a ter traços de personalidade similares aos dos humanos.
Os gatos, por exemplo, podem ser categorizados em cinco traços gerais, chamados “The Feline Five” por uma pesquisa da Universidade do Sul da Austrália. Após avaliarem a descrição de 2.802 gatos, concedida pelos tutores, os pesquisadores concluíram que os felinos podem ser enquadrados como: neuróticos, extrovertidos, dominantes, impulsivos e agradáveis.
“Os perfis de personalidade de seus gatos podem não apenas ser interessantes para os donos dos gatos, mas também podem ser usados para melhorar o bem-estar, particularmente quando um gato individual tem pontuações excepcionalmente altas ou baixas em um fator”, avalia a autora principal Carla Litchfield no estudo. Afinal, as expressões emocionais deles têm muito a ver com o ambiente em que vivem e suas rotinas.
Com os cães, existe a tendência de "refletir" a personalidade dos tutores. Por isso, é comum ver cachorros de famílias com crianças sendo super agitados, e cães de adultos mais sérios sendo mais tranquilos. Isso, é claro, não retira a individualidade deles. “Nos cães, a gente acaba ligando muito a personalidade com o comportamento. Em personalidade mesmo, ainda não temos muita coisa [em termos de pesquisa]”, explica a médica veterinária Juliana Furtado.
"Crescer com animais dá essa visão diferente de que eles também precisam ser respeitados. Eles também são seres vivos, esse mundo também é a casa deles."
Por outro lado, uma pesquisa da Universidade de Estocolmo analisou dados comportamentais de 15.329 cães de 164 raças diferentes e concluiu que eles também possuem cinco traços de personalidade gerais. São eles: brincadeira, curiosidade/destemor, propensão à perseguição, sociabilidade e agressividade.
Seja por meio de dados científicos, seja pelo convívio, é certo perceber que os animais têm alma. Muito mais que isso, eles reforçam nos humanos o que há de melhor. “Os animais são uma necessidade, uma conexão. A gente traz um pouco da nossa ancestralidade primitiva quando está com o animal”, comenta a médica veterinária Glayciane Bezerra.
“Crescer com animais dá essa visão diferente de que eles também precisam ser respeitados, mesmo que a gente não queira tê-los em casa. Eles também são seres vivos, esse mundo também é a casa deles”, completa a tutora Ana Vitória. E de afeto em afeto, eles seguem contribuindo para o bem estar humano, com todo o direito de serem reconhecidos em sua própria complexidade consciente.