Terapia genética que capacita as células de defesa de pacientes com leucemias e linfomas a identificar e combater células cancerosas deve começar a ser pesquisada no Ceará em 2021. Isso será possível a partir da implantação do Instituto Pasteur de Paris na sede da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Ceará, localizada no Eusébio, prevista para o mês de setembro.
O sítio Pasteur-Fiocruz funcionará juntamente com a Plataforma de Pesquisa e Produção de Insumos para Terapia Celular, onde serão desenvolvidas, dentre outras pesquisas e insumos, a reprogramação celular utilizando a metodologia de CAR-T Cell. A terapia só é estudada no Brasil no Instituto Nacional de Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, e na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. A aplicação em humanos ainda não começou no País e é prevista para 2022.
A tecnologia consiste no uso de receptores de antígeno quiméricos para habilitar linfócitos T, células de defesa do corpo, a destruir o câncer. Para isso, as células do paciente são removidas, reprogramadas geneticamente no laboratório e infundidas de volta no organismo para que sejam capazes de reconhecer e atacar o tumor.
"Os dados nos modelos animais, camundongos, são consistentes e nos levaram a propor o ensaio em pacientes. Mas esses dados ainda têm que ser gerados nos ensaios clínicos com pacientes
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A implantação será resultado de acordo tripartite assinado pelo Instituto Pasteur, Fiocruz e Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa faz parte de uma rede envolvendo pesquisadores do Inca, Fiocruz e Universidade de Brasília, aprovado em edital de fomento para plataformas inovadoras em terapias avançadas do Ministério da Saúde.
Conforme Wilson Savino, responsável pela Coordenação de Estratégias de Integração Regional e Nacional da Fiocruz, um edital para vaga de pesquisador sênior será divulgado entre março e abril e analisado entre julho e agosto. A perspectiva do professor, que coordena projeto de instalação, é em setembro “termos a primeira atividade concreta da implantação”. O calendário, contudo, pode ser alterado pela pandemia.
“Será um pesquisador com experiência para trabalhar no campo da terapia celular. Estamos comprando uma série de equipamentos. Só para equipamentos, são R$ 10 milhões de investimento. Mais importante do que o valor é que vamos poder equipar de forma adequada os laboratórios da Fiocruz Ceará e permitir que o instituto Pasteur possa se estabelecer”, diz.
A ideia, segundo Savino, é desenvolver protocolos, gerar conhecimento científico e insumos necessários para realizar esse tipo de terapia, que revolucionou a medicina por matar o tumor de forma específica, personalizada. “É um processo que demandará um estabelecimento de protocolos seguindo as normas de terapias e processo de padronização até que tenhamos condições de boas práticas de laboratórios para que o primeiro paciente possa ser tratado”, frisa.
A tecnologia do CAR-T Cell deve ser aplicada principalmente em pacientes que não responderam a outros tipos de tratamento, como quimioterapia, anticorpos monoclonais e transplante de célula tronco. Marcos Lourenzoni, pesquisador especialista da Fiocruz que está na coordenação da implantação do Centro de Processamento Celular para CAR- T Cell no Ceará, explica o processo que será realizado no paciente, quando a pesquisa for aprovada para aplicação em humanos.
“Primeiro, é feita a aquisição do sangue do paciente para retirada dos linfócitos que vão receber a carga genética do CAR. A célula é cultivada por um período e separada. Apenas as células mais viáveis vão voltar para o paciente.
"Essa terapia já é uma realidade. Aqui no Brasil ainda tá começando, mas na esteira de um caso de sucesso"
Uma parte é congelada para o caso de o paciente precisar no futuro. A outra parte volta para o paciente que vai estar em ambiente de UTI no hospital”, explica. As células serão reprogramadas geneticamente em laboratório e depois reintroduzidas no paciente. No organismo, elas serão capazes de reconhecer células cancerígenas e atacá-las.
A terapia necessita de centros especializados para acolhimento e coleta de sangue dos pacientes em leitos hospitalares com Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Isso deve ser realizado em hospitais parceiros que ainda serão definidos pela Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). O processo de reprogramação celular, por sua vez, será realizado nos laboratórios Pasteur-Fiocruz.
Antes da fase de testes clínicos em humanos, o primeiro passo, no Ceará, é dominar a tecnologia com o auxílio dos grupos que já realizam a pesquisa no Brasil. Os Estados Unidos autorizaram a utilização da terapia genética para o tratamento de câncer pela primeira vez em 2017. A tecnologia chegou ao Brasil há cerca de três anos e tem pesquisas mais avançadas no Inca e na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
O pesquisador Martin Bonamino, especialista da Fiocruz e um dos coordenadores da Rede FioCâncer, é um dos coordenadores da pesquisa no Inca. Segundo ele, após dominar a tecnologia, o objetivo é pesquisar variações a fim de baratear o tratamento e, dessa forma, disponibilizá-la à população por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Além de mais acessíveis financeiramente, as inovações visam desenvolver células mais eficazes, com maior capacidade de cura e com resultado mais rápido.
Uma das variações para baratear é inovar na maneira de transferir o gene para as células. “Isso é feito, em geral, usando um vírus modificado geneticamente. A produção desse vírus é muito cara. Aumenta a complexidade e o custo da terapia. A gente usa um sistema que não usa um vírus, usa um pedaço de DNA, que é menos complexo e mais barato de produzir. Custa 10 vezes menos. Para formar o vírus, de qualquer maneira precisa usar o pedaço de DNA. No caso, aqui, só usamos o DNA”, detalha o pesquisador do Inca.
Outra estratégia é reduzir o tempo para gerar as células capazes de identificar e atacar o vírus em laboratório. No início, o processo demorava 30 dias. Já fazemos o cultivo entre 8 e 12 dias. “Agora, manipulamos e, de um dia para o outro, estão prontos. Isso pode fazer com que o paciente receba as células de um dia para o outro. E não precisa ter um laboratório extremamente complexo ocupado durante esses dias para preparar as células. Tem uma série de implicações de custo e tempo. Em um primeiro momento, vamos usar as células expandidas”, completa.
No Inca, a aplicação da metodologia em humanos é prevista para 2022, quando será possível obter taxas de eficácia da tecnologia. “Os dados nos modelos animais, camundongos, são consistentes e nos levaram a propor o ensaio em pacientes. Mas esses dados ainda têm que ser gerados nos ensaios clínicos com pacientes”, afirma.
"Está nesse horizonte, ser aplicado em larga escala no SUS"
A projeção é que daqui a cinco ou dez anos, uma fração importante de pacientes com cânceres de sangue sejam tratados com essa tecnologia. “Está nesse horizonte, ser aplicado em larga escala no SUS”, projeta Bonamino. Hoje em dia, o tratamento com CAR- T Cell é consolidado para alguns tipos de leucemias (linfoblástica aguda de células B) e linfomas (de células B). Além de melhorar a taxa de resposta do tratamento contra essas patologias, outros linfomas e leucemias podem ser tratados. Outros tipos de tumores de sangue vão ser aprovados muito em breve, provavelmente em 2021, segundo o pesquisador.
“O que está todo mundo correndo atrás, inclusive a gente, é a possibilidade de usar esse tipo de terapia para tratar tumores sólidos”, projeta. Tumores como mamas, pulmão e colo de útero, que são muito mais frequentes. Se essa terapia for desenvolvida para esses tipos de tumores, a metodologia poderia ser utilizada para tratar milhares de pacientes. “Essa terapia já é uma realidade. Aqui no Brasil ainda tá começando, mas na esteira de um caso de sucesso”, dimensiona.
Nessa perspectiva de otimizar o sistema para ampliar o acesso, o início da pesquisa da tecnologia no Ceará é estratégica. “É um esforço liderado pelo grupo do Inca com uma rede que a gente montou para desenvolver essas terapias da melhor maneira possível. Vamos desenvolver juntos e, depois, quando a unidade da Pasteur estiver implementada no Ceará, vamos dar o suporte para eles. Temos outros projetos em desenvolvimento”, prospecta Bonamino.
Hoje em dia, o tratamento é oferecido por indústrias farmacêuticas com custo que varia de 300 mil a 500 mil dólares só para o preparo das células. “O que a gente tá propondo de aplicação clínica é uma maneira de gerar com potencial de ser muito mais barato. Talvez entre 20 a 40 vezes menos do que já é oferecido para a população em outros países”, diz.
"É um projeto com o cunho de desenvolvimento científico, mas ao mesmo tempo de produção e de inovação direto aplicado ao próprio paciente"
Inicialmente, o estudo em ambiente acadêmico para tratar número reduzido de pacientes têm um custo alto. Ao sistematizar o processo, o custo é reduzido. “Quando faz uma estrutura dedicada a dezenas, centenas de pacientes, muda a escala. Pode ser um momento em que a iniciativa do Pasteur tenha um papel importante, em ganhar escala. Isso é uma coisa que vamos discutir e tentar dar um apoio para que as iniciativas deságuem em possibilidade para a gente oferecer para o máximo de pacientes possível”, projeta.
Segundo Bonamino, as parcerias facilitam a aplicação da metodologia em humanos mais rapidamente, após devida aprovação. “Por muito tempo a gente trabalhou em metodologias mas não tínhamos possibilidades e perspectivas de aplicação. Agora, qualquer novidade que a gente possa implementar, a gente tem uma saída muito rápida para testar nos pacientes. Esse teste clínico está desenhado para tratar 8 pacientes. Se funcionar, temos que ter estruturas que permitam ganhar escala. Por isso, é importante essa parceria”, avalia
Marcos Lourenzoni, pesquisador da Fiocruz que coordena implantação do Centro de Processamento Celular para Car-T Cell no Ceará, detalha que o projeto também é estratégico porque é o primeiro que liga os dois Distritos de Inovação em Saúde, do Porangabussu e do Eusébio. “É um projeto com o cunho de desenvolvimento científico mas ao mesmo tempo de produção e de inovação direto aplicado ao próprio paciente. Estamos produzindo e desenvolvendo novas variantes de CAR, testando e colocando no mercado”, diz.
“A Fiocruz Ceará vai fazer o desenvolvimento científico e a produção, no Polo do Eusébio, e o Porangabussu vai fazer a parte clínica. Tem esse componente muito importante de inovação e união dos distritos”, relaciona.