“Por que você está me filmando, Chantal?”
“Porque eu filmo todo mundo, mami”.
“Eu quero falar coisas para você e não quero que mostre a todo mundo, ma chérie”.
O diálogo pelo skype entre a cineasta belga Chantal Akerman – num quarto de hotel em Nova York – com a mãe, Natalia (Nelly) Akerman, na sua casa na Bélgica, talvez chega uma das cenas mais tocantes de Não é um filme caseiro, lançado em 2015, pouco antes da morte da mãe (2014) e da filha (2015). No home movie recebeu prêmios nos festivais de cinema de Locarno e Toronto. Foi exibido no Brasil no Festival de Cinema Internacional do Rio de Janeiro, em 2015, e volta ao País pela plataforma Mubi.
Não é um filme caseiro, último trabalho de Chantal Akerman, resume de forma comovente seu modo de lidar com a câmera, capturando sem pressa gestos e detalhes das personagens e esquadrinhando o espaço de forma que o espectador é capaz de sentir-se parte do ambiente. Pesquisadores da obra de Akerman consideram que a cineasta criou uma “arquitetura do espaço” no seu trabalho como cineasta. Neste filme, a personagem é a mãe, Nelly, filmada de sua casa na Bélgica, mesmo à distância.
O encontro entre elas se dá por meio da paisagem íntima da casa, da cozinha, onde as duas mulheres comem e divagam em lembranças da infância e de antes de ela – Chantal – e a irmã Sylvaine nascerem. Nelly e o marido fugiram na Polônia para a Bélgica após a invasão da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, mas foram capturados e enviados ao campo de concentração de Auschwitz.
A mãe judia, o tempo, o espaço e as opressões que cercam o feminino nortearam a obra da atriz, produtora, artista visual e cineasta que trouxe profundas inovações para a linguagem do cinema e influenciou nomes como Gus van Sant.
Em Não é um filme caseiro, Chantal mantém a câmera fixa em cômodos vazios, opera com a luz nos limites do claro e escuro, expondo e encobrindo detalhes do quarto, da silhueta da mãe doente num acesso de tosse. Sentada no chão com uma câmera, Chantal vela o sono materno. Entre idas de vindas de um festival para outro, de um país para outro, a câmera retorna com Chantal à casa de Nelly. O filme quase não tem movimento, a não ser a do olhar do espectador. Mesmo nas cenas externas filmadas com um carro em movimento que capta a paisagem, a sensação é a de se estar observando um quadro.
Em 1977, durante o Festival de Cannes, Chantal Akernan participa do programa de entrevista “Parlons Cinèma” e afirma que o pai a queria casada e com filhos, mas ela seguiu outro caminho e a mãe lhe dava suporte: “Minha mãe é a pessoa que mais me dá forças para eu fazer o que faço no momento”. Em 1975, quando Chantal tinha 25 anos, o mundo do cinema conheceria sua obra-prima Jeanne Dielman 23 quoi du commerce 1080, um drama com 3 horas e 20 minutos.
Jeanne, uma viúva, mãe de um filho adolescente é uma dona de casa esmerada que ganha dinheiro como prostituta. No filme, a personagem vive um tipo de confinamento, reproduzindo à exaustão as atividades relacionadas à casa: cozinhar, limpar, lavar, pôr a mesa, cuidar do filho. O tempo esgarçado da reprodutividade das tarefas domésticas funcionam para a personagem – e as mulheres com um todo – tal qual um vulcão prestes a emergir.
O isolamento da mulher presa no círculo de rituais caseiros que lhe parecem eternos povoa a filmografia de Chantal Akerman. E mais uma vez a experiência das mulheres judias trazidas da memória da infância chega às telas. Numa de suas últimas entrevistas, durante o lançamento de No home movie, ela explica que sempre observou o cotidiano das mulheres judias e suas tarefas sem fim, como se não houvesse mudança entre um e outro dia. Sobre o questionamento em torno do filme com mãe, Chantal explica que o real está tão presente na ficção, quanto a ficção está presente no real.
Em 2012, o Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, recebeu uma exposição com cinco instalações de Chantal Ackerman, entre elas Minha mãe ri, prelúdio. A obra é um fragmento do livro da cineasta Ma mére rit (2013), no qual Chantal aborda a iminente morte da mãe. O livro recebeu o prêmio Goncourt de Literatura, um dos mais prestigiados da França.
Saiba mais sobre a cineasta https://youtu.be/0BYbl8B0Eeg
Principais títulos da cineasta de Chantal Akerman
Exploda minha cidade (1968)
O Quarto (1972)
Eu, tu, ele, ela (1974)
Jeanne Dielman (1975)
Notícias de casa (1977)
Os encontros de Ana (1977)
Dis-Moi (1980)
New York, New York bis (1984)
Um divã em New York (1996)
O Sul (1999)
Lá (2006)
Não é um filme caseiro (2015)