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Você sabe quantas leis estão em vigor atualmente no Brasil? Ninguém sabe
Reportagem Especial

Você sabe quantas leis estão em vigor atualmente no Brasil? Ninguém sabe

Mergulhado num emaranhado de leis, o Brasil não tem a noção exata do seu arcabouço normativo. Mas num aspecto, há consenso: há excesso de leis, boa parte desconhecida dos brasileiros. Especialistas e operadores do direito alertam para a necessidade das normas acompanharem as novas realidades e atenderem o cidadão

Você sabe quantas leis estão em vigor atualmente no Brasil? Ninguém sabe

Mergulhado num emaranhado de leis, o Brasil não tem a noção exata do seu arcabouço normativo. Mas num aspecto, há consenso: há excesso de leis, boa parte desconhecida dos brasileiros. Especialistas e operadores do direito alertam para a necessidade das normas acompanharem as novas realidades e atenderem o cidadão
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Não é segredo que o Brasil tem leis demais. Mas a quantidade total de leis em vigor no País, este número é sim um segredo. Isso porque, somando federais, estaduais e municipais, ninguém sabe quantas leis estão valendo no território nacional neste momento. Os números são hiperbólicos: há pelo menos 25 mil leis em vigor na esfera federal desde a Proclamação da República, em 1889, embora não necessariamente estejam funcionando.

Se adicionarmos aí os decretos, decretos-lei e as medidas provisórias (MP), que são outros tipos de atos normativos, o número supera 210 mil. São, em média, algo como 1.590 atos normativos promulgados a cada ano do Brasil republicano na esfera federal. E isto excluindo a Constituição federal, que é a lei maior do Brasil, e as emendas que ela recebeu ao longo dos anos.

Estes atos normativos não vêm só do poder Executivo, mas também do Legislativo, como lhe compete; da iniciativa popular, algo mais recente; e até, pasme, do Poder Judiciário, que através das súmulas vinculantes, tem, em termos práticos, a capacidade de “criar leis” no Brasil.

O número acima, de 210 mil atos normativos, não é totalmente preciso. Consta no portal disponibilizado pela presidência da República sobre a legislação federal, mas a própria contagem é incerta. O portal não também informa quantas foram revogadas, ainda que indique quando ela não foi “expressamente revogada”. Outro fator de imprecisão é a numeração das leis - elas dão continuidade à série sequencial iniciada em 1946.

A deusa da Justiça. Para a defensora pública, Michele Camelo, é necessário que os legisladores compreendam as necessidades reais sociais
Foto: tingey/unsplash
A deusa da Justiça. Para a defensora pública, Michele Camelo, é necessário que os legisladores compreendam as necessidades reais sociais

Mas antes de 1946, o Brasil produziu muita legislação. E algumas, surpreendentemente, nunca foram revogadas. Portanto, tecnicamente, ainda estão em vigor. É o caso da lei número 20 de 1891, na Primeira República, que concedia uma pensão ao ex-imperador Pedro II. O monarca morreu pouco mais de um mês após a promulgação da lei, mas, tecnicamente, ela não foi suspensa. Está em vigor.

A lei de Pedro II, por sinal, não é o único exemplo de uma lei para um homem só. Em 1926, um decreto do presidente da República autorizou o pagamento do que era devido pelo governo a um - único - homem, o capitão Gentil Falcão. A ordem executiva, número 5.033, ainda consta na legislação federal como não revogada.

Outro exemplo é o decreto-lei nº 4.247, de 1921, que regulamenta a entrada de estrangeiros no Brasil. Segundo o texto, o Poder Executivo pode barrar a entrada de “De todo estrangeiro, mutilado, aleijado, cego, louco, mendigo, portador de moléstia incurável” ou “de todo estrangeiro de mais de 60 anos”.

São leis, atos normativos, que caducaram ou perderam a validade no tempo. Mas estão, tecnicamente, em vigor, e ajudam a engrossar o caldo da intrincada legislação brasileira. Se ninguém sabe quantas leis com origem federal estão em vigor hoje no Brasil - e, por ninguém, lê-se Presidência da República, Câmara dos Deputados, Senado federal e Poder Judiciário -, tampouco é sabida a situação dos Estados e municípios, que no sistema federativo brasileiro, têm margem para aprovar suas próprias leis sobre determinados temas.

 

“Pesquisar legislação municipal e estadual é a coisa mais difícil do mundo. Não dá para pesquisar”, afirma a professora de direito constitucional da Universidade Federal do Ceará (UFC), Cynara Monteiro Mariano. Ao analisar a situação federal explica que, em parte, a grande quantidade de leis do Brasil se deve à Constituição de 1988.

“A Constituição brasileira é uma das mais analíticas do mundo. Nós tratamos de praticamente tudo: calamidade pública, incremento de servidores públicos, indígenas”, analisa. Tudo que é inferior à Constituição, isto é, que veio depois, que deriva da Constituição, é chamado legislação infraconstitucional. É aí que se encaixam as leis, os decretos, as medidas provisórias.

“É natural que uma Constituição que tenha sido tão detalhista tenha dado a possibilidade de uma legislação infraconstitucional que tenha sido tão complexa e abundante”, aponta Cynara Mariano, destacando, porém, que o sistema de federação adotado pelo Brasil também contribui para o cipoal legislativo. “Diria que temos uma legislação muito vasta e isso se deve à extensão da Constituição e, sobretudo, se deve à própria sistemática da federação brasileira. Somos um país continental com competências atribuídas à União, estados e municípios”.

Portanto, as três esferas da Federação, União, estados e municípios podem criar leis, ainda que cada uma tenha suas atribuições e limitações sobre quais temas podem legislar. É difícil comparar o Brasil, por exemplo, a países como França ou Portugal, que têm um poder central que concentra maiormente a fabricação da legislação.

A título de comparação, o sistema brasileiro é mais semelhante ao dos Estados Unidos, que é um país federado, e onde há também um excesso legislativo. Lá, estados e municípios têm competência legislativa plena. Isto é, nos EUA, estados e municípios podem legislar sobre qualquer assunto, diferente do Brasil. Por isso, em alguns estados há pena de morte e em outros não. Pelo mesmo motivo, em alguns estados é possível comprar, plantar, vender e consumir maconha legalmente, enquanto o governo federal considera isso ilegal.

"O Brasil tem sim um excesso legislativo. Temos leis que rapidamente perdem sua eficácia e rapidamente são substituídas por outras. Sou jurista e mal consigo acompanhar. Isso é muito ruim e reflete um déficit de educação e cidadania" Cynara Monteiro Mariano , professora de Direito constitucional da UFC

Os fazedores de leis

Nos corredores da Câmara dos Deputados, por onde 513 parlamentares eleitos percorrem os caminhos legislativos com os textos que vão virar lei, há muito não se sabe quantos atos normativos passaram pela Casa. Há mais de uma década, uma iniciativa da Câmara, órgão responsável por fazer a legislação no Brasil ao lado do Senado Federal, tentou contabilizar o número de atos normativos no País.

O Legislativo, no entanto, precisou procurar nos arquivos da Casa Civil da Presidência da República, que em última instância promulga as leis e decretos e medidas provisórias, um número mais exato dos atos normativos no país. À época, foram encontrados cerca de 200 mil, conforme relembra Ricardo Moura Lopes, assessor técnico da Câmara dos Deputados e atual chefe de gabinete do grupo de Consolidação da Legislação Brasileira.

O grupo funciona como uma comissão temática da Casa - como a Comissão de Constituição e Justiça, que avalia se projetos são constitucionais; ou o Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, em que deputados discutem assuntos relacionados a este tema. No caso do grupo de Consolidação, a ideia é estudar dispositivos legais repetitivos, desatualizados ou conflitantes e unificá-los ou suprimi-los.

 

“Depois desse trabalho todo, a gente revoga as leis e aproveita seu conteúdo. Esse trabalho de consolidação não cria nada de novo, ele faz uma organização das leis. Portanto, é proibido dentro do nosso trabalho de consolidação alterar o alcance das leis, o mérito das leis, a gente vê o que está sobrando, o que está repetido, desatualizado, e faz um trabalho de enxugamento, de maneira que não altera nada no ordenamento jurídico”. explica Ricardo Moura.

Ou seja, se há três leis ligeiramente distintas sobre o mesmo tema, a comissão estuda, enxuga e transforma tudo em uma única lei, mas sem alterar o que cada lei anterior havia disposto. O grupo de consolidação foi criado em 1998, quando já se percebia existir no Brasil um número hiperbólico de atos normativos, muitos relacionados ao mesmo assunto. “É como se fosse uma árvore, você tem o tronco e vários galhos. A gente faz o trabalho pra tentar cortar os galhos todos, deixando só o tronco, mas aproveitando o conteúdo dos galhos”, resume o assessor.

Embora exista há mais de 20 anos e tenha o mesmo caráter das disputadas comissões permanentes, o grupo de consolidação, embora costume apresentar propostas continuamente, raramente vê seus projetos apreciados pelos deputados. Atualmente, a Câmara possui 22 projetos de lei de consolidação, ou seja, propostas para reorganizar determinados temas.

São projetos que consolidam a legislação eleitoral (PL 2277/99), de saúde (PL 3343/08, apensado ao PL 4247/08), revogam dispositivos sobre cultura (PL 3757/00), normas previdenciárias (PL 4202/01), petróleo (PL 4633/01), serviços de telecomunicação (PL 6189/02), entre outros. Até hoje, nenhum foi aprovado. Na verdade, até hoje, nenhum sequer chegou ao plenário.

“Os próprios deputados não têm muito conhecimento do que significa, do que representa a consolidação das leis. E você fazer um trabalho em cima de 513 deputados que têm origem de todos os cantos do país, é um pouco complicado. Teria que se fazer um trabalho anterior ao próprio trabalho do grupo”, avalia Ricardo Moura, que é assessor do grupo há mais de 10 anos.

"É perfeitamente normal em democracias que possuem o dirigismo constitucional como característica de seu sistema normativo. A legislação deve mesmo ser alterada quando as condições sempre exigirem. Especialmente durante a velocidade de nossas mudanças nos últimos 30 anos" Marcus Renan Palácio, promotor de Justiça do Ceará

O problema é especialmente notável, segundo Moura, com deputados recém-eleitos: “O trabalho de consolidação das leis não cria nada de novo, é muito técnico, de organização. O que você faz é uma limpeza, uma estruturação nova. Então você não está modificando nada. E o deputado que chega, ele tem um trabalho muito voltado às bases, à expectativa do povo, do grupo que ele representa. Então, ele chegar aqui e fazer um trabalho de consolidação, não tem muito interesse”.

O grupo de consolidação da legislação, assim como as comissões, tem sua composição renovada a cada 2 anos, junto com a Mesa Diretora da Câmara. Neste ano de 2021, os participantes foram nomeados no dia 18 de março, e serão coordenados pelo deputado mineiro Zé Silva, do partido Solidariedade, o mesmo partido que comandou o grupo nos últimos dois anos. O chefe de gabinete do grupo, Ricardo Moura, vê poucas chances da pauta avançar neste ano, marcado pela urgência da crise econômica e sanitária provocada pelo coronavírus. 

“Temos seis projetos de consolidação no grupo, para serem apreciados”, explica, “depois daqui, vai para a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), e lá temos 4 projetos de consolidação enterrados para serem apreciados. Temos projeto de lei de consolidação de 2001. E no plenário temos 12 aguardando a ordem do dia para serem apreciados. Já conseguimos colocar 3 na ordem do dia, mas sempre eles são preteridos. É um trabalho… É uma luta inglória”.

 

 

Na linha de frente das leis

Na outra ponta da fabricação das leis, no Legislativo, está a aplicação destas. Por todo o Brasil, há cerca de 13 mil promotores, responsáveis por instaurar inquéritos, atuar perante juízes e promover ações penais ou cíveis públicas; e pouco menos de 6 mil defensores públicos, profissionais apontados pelo Estado para representar pessoas que não podem pagar por assistência jurídica.

São profissionais - promotores, defensores, juízes -, ao lado de advogados e professores da área, que lidam cotidianamente com o emaranhado de leis do Brasil. Marcus Renan Palácio, promotor de Justiça do Ceará, por exemplo, concorda que o Brasil tem muitas leis, mas não acredita que isto seja necessariamente ruim. “Isso é perfeitamente normal em democracias que possuem o dirigismo constitucional como característica de seu sistema normativo. A legislação deve mesmo ser alterada quando as condições sempre exigirem. Especialmente durante a velocidade de nossas mudanças nos últimos 30 anos”, avalia.

“Há 20 anos, não havia serviços por aplicativos, o que requer atualização trabalhista; não havia evolução da genética , o que exige renovação do direito civil; não havia a rápida comunicação que também facilitou a criminalidade financeira e tributária internacional, o que demandou nova forma de atuação do direito internacional público e privado, do direito tributário e financeiro”, enumera o promotor.

A constitucionalista Cynara Monteiro Mariano , professora da UFC, diz que a necessidade que os brasileiros têm de ver reconhecidos seus direitos na legislação é um déficit de cidadania, não só dos brasileiros como das instituições, que só cumprem as leis quando a lei prevê uma sanção
Foto: giammarco/unsplash
A constitucionalista Cynara Monteiro Mariano , professora da UFC, diz que a necessidade que os brasileiros têm de ver reconhecidos seus direitos na legislação é um déficit de cidadania, não só dos brasileiros como das instituições, que só cumprem as leis quando a lei prevê uma sanção

É uma visão semelhante à da defensora pública Michele Camelo, atuante em Fortaleza. “Existe uma necessidade social e a legislação se adapta ou então regulamenta a social. Isso vai mudando conforme o tempo. O direito representa esse turbilhão que vivemos”, afirma. Michele aponta que a quantidade de leis “não impede necessariamente que o cidadão compreenda” o funcionamento do Estado ou do ordenamento jurídico, mas revela que há sim algum desentendimento ao redor do cipoal legislativo brasileiro.

“A gente tem uma falta de compreensão, inclusive da legislação que já é vigente há muito tempo. Eu sou defensora de (direito da) família e muitas pessoas acreditam que a pensão alimentícia é 20% do salário, quando na verdade não existe isso”, exemplifica a defensora. Não obstante, a própria qualidade das matérias legislativas, muitas vezes, acaba gerando mais problemas: “O que eu acho mais complicado é que muitas leis são levadas ao Judiciário por serem inconstitucionais. A lei existe, mas tem que saber como vai interpretar para não ser inconstitucional”, reprova.

Já a professora de Direito constitucional da UFC, Cynara Monteiro Mariano, é taxativa: “Independente de todos os alertas, acho que o Brasil tem sim um excesso legislativo. Temos leis que rapidamente perdem sua eficácia e rapidamente são substituídas por outras. Eu sou jurista e mal consigo acompanhar. Isso é muito ruim e reflete um déficit de educação e cidadania”.

"Parece que a gente tem um Direito que é do perfil dos legisladores e não um Direito que reflete as situações cotidianas... entendo que seja necessário que os legisladores compreendam as necessidades reais sociais" Michele Camelo, defensora pública

Quanto a um ponto, os três concordam. O número de leis no Brasil reflete, de algum modo, déficits no exercício da cidadania ou na participação do cidadão nos processos democráticos do País. Problema este que, para Michele Camelo, por exemplo, também se reflete na própria feitura das leis. “Parece que a gente tem um Direito que é do perfil dos legisladores e não um Direito que reflete as situações cotidianas", avalia.

“Eu entendo que seja necessário que os legisladores compreendam as necessidades reais sociais, o que realmente necessita de uma lei que regulamente, o que a sociedade clama por mudança legislativa,que a legislação seja oralmente em favor da sociedade, regulando situações reais, ainda que sejam temas polêmicos”, continua a defensora.

“A necessidade que os brasileiros têm de ver reconhecidos seus direitos na legislação é um déficit de cidadania, não só dos brasileiros como das instituições, que só cumprem as leis quando a lei prevê uma sanção”, aponta Cynara, indicando que a falta de investimentos massivos em educação impede, por exemplo, que o excesso de leis do País dê lugar “ao cumprimento espontâneo da Constituição”.

“Existe uma concepção, a meu sentir errônea, que o Estado é que deve tutelar toda conduta humana como crime. O cidadão às vezes vê na legislação a solução para os problemas e conflitos sociais. Não basta só a promulgação de uma lei e uma legislação tipificando uma conduta que ela vai obstaculizar o exercício da conduta humana. Não é a legislação por si só que resolve os problemas do estado democrático”, sentencia o promotor Marcus Renan Palácio.

 

De 1988 para cá

Há anos o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) contabiliza o número de atos normativos gerados pela República brasileira. Em levantamento recente sobre os 31 anos da Constituição, promulgada em 1988, o IBPT apontou que, desde então, o Brasil editou na esfera federal:

 

 

As leis mais estranhas do mundo - ou estranhas, pelo menos, para os brasileiros

Cada nação é um universo. E cada nação é uma legislação. Todo Estado nacional se caracteriza por ter fronteiras definidas, um povo e suas próprias leis. E, no oceano legislativo que existe por todo o mundo, há uma infinidade de leis que podem causar estranheza - pelo menos para nós, brasileiros.

O Brasil, por sinal, é mestre das leis. Não são muitos países que têm uma legislação tão grande, tão intricada, tão complicada como a brasileira. São leis de mais um século, que sequer têm mais uso, mas ainda estão em vigor, por exemplo. Só na esfera federal são mais de 25 mil leis. Se olharmos para estados e municípios, a conta fica impossível.

Nesse meio, naturalmente, muitas leis podem soar estranhas, absurdas, ultrapassadas. Há várias que são apenas anacronismos, dispositivos do passado que foram esquecidos e ninguém mais se importou de cumprir. Na França, por exemplo, uma lei do século XIX proibia mulheres de usar calças. No século XX, a lei foi alterada para permitir que mulheres usassem calças quanto estivessem a cavalo ou de bicicleta. A lei só foi derrubada oficialmente em 2013, mas há décadas as francesas ignoravam ou sequer sabiam que existia tal proibição.

 

 

 

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