O poder de conexão que uma carta pode oferecer a pessoas que se encontram em lugares diferentes atravessa gerações. Para sete amigos, de 1968 a 1977, esse formato foi o responsável por aproximar laços separados fisicamente pela busca do ingresso em faculdades de capitais brasileiras. O livro “Cartas da Juventude: Crônica de Época, Recortes Autoetnográficos (1968/1977)” reúne 156 correspondências trocadas entre esses amigos durante a ditadura militar.
A ideia de desenvolver esse projeto surgiu nos idos de 1990, quando o poeta e médico cratense Assis Lima percebeu que havia conservado muitas cartas de amigos trocadas entre os anos de 1968 e 1977. Ao ler o conteúdo delas, imaginou que as missivas poderiam formar “uma espécie de crônica de época” a partir dos relatos dos autores.
Com um “garimpo trabalhoso”, em um processo que ocorreu em várias etapas “ao longo de algumas décadas”, Assis Lima selecionou as cartas que poderiam compor o livro. Ele já tinha em mente “um time de autores” para a realização dessa história compartilhada. Os cratenses Emerson Monteiro, Flamínio Araripe, José Esmeraldo Gonçalves e Tiago Araripe, o maranhense Pedro de Lima (que estudou no Crato) e o mineiro Eugênio Gomez participam da publicação.
Os primeiros registros manuscritos datam de 1968, época em que os autores naturais de Crato saíram da cidade para estudar em capitais brasileiras, sendo elas Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. “Havia vibração e muita expectativa com relação a escrever e receber cartas. Era como uma síntese de todas as redes sociais possíveis e imagináveis. Uma forma de se sentir ligado, vivo e atuante, numa continuidade histórica”, avalia Assis.
Os amigos se sentiram motivados a enviar cartas tanto pelos assuntos pessoais e culturais em comum, quanto pela ideia de publicar uma revista “com pretensão literária e ensaística”. O projeto não foi concretizado, mas o livro consegue registrar esse sonho dos autores, que tinham entre 18 e 21 anos em 1968.
As correspondências trocadas traziam os universos particulares e ao mesmo tempo comuns aos amigos, que se deparavam com questões similares, tanto pela faixa etária compartilhada, quanto pelo período histórico vivido. Quem lia as missivas encontrava discussões sobre livros, filmes, teatro, música, “a peleja com os estudos, a sobrevivência, as angústias existenciais, as vitórias”, os amores e, inevitavelmente, a política.
Quanto a esse último aspecto, havia a singularidade do medo da repressão que tanto marcava a vida no Brasil durante a ditadura militar, e algumas cartas presentes no livro expõem isso. Um exemplo é a de Pedro de Lima, escrita em Brasília em 3 de abril de 1968 e intitulada “A Revista de Vocês”. Nela, o autor menciona o receio de censura e apreensão das cartas, o que o levou a postergar o envio da remessa da que escreveu. Apesar dessas preocupações, não houve “incidentes” com o grupo, segundo Assis Lima.
Seguir com o projeto de publicação do livro exigiu de Assis um forte empenho para digitar “dezenas e dezenas de cartas, com letras por vezes hieroglíficas”, em um processo que demandou dele quase um ano de trabalho. Após esse percurso, enviou as missivas aos seus respectivos autores, e a reação de cada um diante dos conteúdos recebidos “é uma epístola à parte", segundo Assis Lima.
Ele conta que alguns mantiveram-se tranquilos, enquanto outros “sentiram um forte impacto” ao se depararem com textos escritos há tanto tempo. “No próprio livro cada autor teve a oportunidade de fazer o contraponto da passagem do tempo através de comentários intercalados ou apreciações prévias. As cartas têm valor ao mesmo tempo real e simbólico, tanto pela forma como pelo conteúdo, por retratarem um momento em movimento de vidas entrelaçadas em um contexto histórico peculiar do século XX”, complementa Assis.
A surpresa foi um sentimento que dominou o jornalista José Esmeraldo Gonçalves ao descobrir que Assis havia guardado por tanto tempo as missivas trocadas. Inicialmente, segundo José, as cartas tratavam sobre o desejo de elaborar uma revista e aproveitar as diferentes localidades dos amigos. A prática lembraria a realização de um jornal impresso quando ainda estavam no colégio e que traziam política cultural vinculada ao movimento estudantil na época. Depois, passaram a trazer as situações vividas pelos autores.
“Não é um processo confortável rever o que você escreveu, mas é interessante ao mesmo tempo, porque todos aqueles momentos que você viveu, o pessoal, o ideológico, o profissional, tudo aquilo construiu essa pessoa que está recebendo as cartas cinquenta e tantos anos depois. São registros muito documentais”, afirma José Esmeraldo.
Atualmente com 73 anos, o jornalista considera uma experiência “intimista” a releitura de textos escritos há tanto tempo e a elaboração de uma análise atual sobre os conteúdos mostrados nas cartas. Ele lembra de sua ligação com o movimento estudantil e de sua chegada ao Rio de Janeiro, quando ficou detido por poucos dias com outros estudantes ao participar de uma passeata.
Os dilemas eram constantes em sua vida e o livro registra as interferências da ditadura naquela época. Para José, o formato “carta” era a ferramenta que existia para a comunicação à distância, e acredita que esse meio “favorecia a reflexão” pela lentidão do processo de se enviar e receber cartas - a espera por respostas chegava a 20 dias. Com isso, a mensagem era “mais consolidada”.
Entretanto, isso não impedia que algumas correspondências parecessem ter sido escritas “às pressas”, o que mostra outros aspectos desse período. Comparando os dois Josés - o das cartas e o dos tempos atuais -, o cratense acredita que o seu “idealismo”, ou seja, as expectativas por um país melhor, permaneceu. Assim, ele destaca que muitos dos seus ideais foram construídos durante a sua juventude.
“O convite já veio com a seleção das minhas cartas. Primeiro eu tomei um susto, porque eu não imaginava que o Assis tinha guardado essas cartas por tantos anos. Quando eu comecei a lê-las, fiquei muito espantado com a minha imaturidade, e eu tive uma certa resistência em aderir ao projeto. Aos poucos o Assis me convenceu, eu vi outros materiais do livro e resolvi encarar o projeto”. O relato é do publicitário, cantor e compositor Tiago Araripe, cujas cartas também preenchem a publicação.
Inicialmente “espantado”, Tiago mudou sua opinião em relação ao projeto e passou a aproveitar as lembranças trazidas pelas correspondências, como a de seus primeiros momentos em São Paulo e de quando conheceu o cantor e compositor Tom Zé. Araripe atuou também na revisão do livro. Cada autor tem sua biografia apresentada na publicação.
Tiago ressalta como a obra mostra o aspecto cultural do período em que as cartas foram escritas. Em meio à repressão da ditadura militar, os caminhos para alguma liberdade se apresentavam por meio da música, da literatura e do cinema. “Nosso oxigênio era por meio da cultura”, define o cantor. Composições de muitos artistas brasileiros são mencionadas durante o livro, e os autores tiveram a ideia de criar uma playlist com todas as músicas citadas na obra.
Para Tiago Araripe, as cartas funcionam como “um rito de passagem da adolescência para a idade adulta” e mostram os percursos trilhados pelos autores. No caso do publicitário, apresentam os momentos em que saiu do Crato para ir para Recife e, depois, para São Paulo. Reflexões sobre vestibular, faculdade e anseios para o futuro são transcritas nas correspondências.
Morando atualmente em Portugal, o músico enxerga que o “Tiago da juventude” foi muito importante para a construção do que o publicitário é hoje. “Todas as experiências se somam na construção de uma integralidade do ser, do que nós somos”, reflete. Ele acredita também que as cartas podem fazer outras pessoas se identificarem com situações relatadas:
“Se você pegar a trajetória desses seis jovens, eu acho que dá um bom retrato daquela época que foi vivida. Da mesma forma que nós, tantos outros jovens empreenderam mudanças de vida significativas e decidiram os rumos da sua própria história naquela época. Então, se nós conseguirmos ver por esse prisma, temos um recorte pequeno, mas expressivo da história do País. Uma juventude que estava em busca de encontrar as respostas para as suas inquietações”.
De fato, as correspondências trocadas durante o período relatam episódios e situações marcantes na linha do tempo do País no século passado. Assis Lima defende a tese de que as cartas funcionam como importantes documentos históricos, e cita um trecho da introdução do livro escrita por Ana Cecília de Sousa Bastos: “Mais do que memórias colhidas pela força da narrativa, são registros vivos, embebidos no agora de então, com toda a força da experiência e do contexto daqueles anos”.
O texto de Ana Cecília continua: “São documentos. Quando acrescidos de textos e notas escritos pelos autores das cartas na presente edição, com a riqueza reflexiva que lhes confere o tempo vivido, tornam-se documentos de caráter autoetnográfico e que alcançam, em sua verdade, jovens de qualquer geração”.
Cartas da Juventude
De Vários Autores
Confraria do Vento
400 páginas
Quanto: R$ 65
Onde comprar: confrariadovento.com/editora ou f.assislima9@gmail.com