Logo O POVO+
Entre medo e esperança: o pêndulo dos sentimentos em tempos de incerteza
Reportagem Especial

Entre medo e esperança: o pêndulo dos sentimentos em tempos de incerteza

Emoção natural ao se deparar com uma ameaça, o medo ajuda a decidir pelo enfrentamento ou pela fuga. Na pandemia de Covid-19, a falta de clareza quanto ao que causa medo, a constante exposição a informações e o contexto político são questões que potencializam esse sentimento

Entre medo e esperança: o pêndulo dos sentimentos em tempos de incerteza

Emoção natural ao se deparar com uma ameaça, o medo ajuda a decidir pelo enfrentamento ou pela fuga. Na pandemia de Covid-19, a falta de clareza quanto ao que causa medo, a constante exposição a informações e o contexto político são questões que potencializam esse sentimento
Tipo Notícia Por

 

Imagine-se em seu quarto, que não está nem totalmente escuro nem claro o suficiente para você ter certeza do que vê. Nele, há algo que representa um risco e te desperta medo. Uma barata voadora, talvez. Está na hora de dormir, e você sabe que ela está por perto, mas não faz ideia de onde exatamente ela se encontra. Se a visse, seria mais fácil decidir o que fazer, concorda? Como não é o caso, pode-se dizer que o medo que você sente é difuso, pouco objetivo.

"É como se fosse o coronavírus: você sabe que ele está aí o tempo todo, mas não tem clareza quanto ao que está enfrentando", compara André Faro, professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), com pós-doutorado em saúde pública e saúde mental pela Johns Hopkins University. O docente usou o exemplo em sala de aula para tentar materializar o medo que a população vem sentindo durante a pandemia de Covid-19.

O pesquisador aponta que, quando o objeto temido é difuso, essa sensação de medo é "duplicada". Isso porque, além do temer o objeto em si, há o medo "dessa sensação de não conseguir saber exatamente o que ele é". Na pandemia de Covid-19, explica Faro, o alimento principal do medo é a incerteza.

"O medo é aquele estado de tensão que, de certa forma, pode ajudar no confronto, mas, em excesso, paralisa o sujeito. Essa é uma caracterização muito mais subjetiva do que física." André Faro, professor da Universidade Federal de Sergipe

O medo é uma emoção básica relacionada ao estresse. Quando uma ameaça é percebida, ele ativa o organismo para que seja dada uma resposta: a fuga ou o confronto. "Nós ponderamos a ameaça de acordo com a intensidade e o tipo do medo", afirma o professor. No corpo, aumento da palpitação, da frequência respiratória e da sudorese são alguns dos sinais perceptíveis.

"Fisicamente, o medo vai ser muito parecido com a reação ansiosa, mas vai ter algumas características mentais diferentes. O medo é aquele estado de tensão que, de certa forma, pode ajudar no confronto, mas, em excesso, paralisa o sujeito. Essa é uma caracterização muito mais subjetiva do que física", explica o pesquisador.

Dessa forma, desde que seja temporário, o medo é uma reação biológica natural. Mas, no caso da Covid-19, o que se tem observado é que a maior parte da população nunca viveu tanto medo por tanto tempo. E são diversos os motivos: medo de se contaminar, de transmitir o vírus a outras pessoas, de sair de casa, de ser internado, de morrer, medo do isolamento, de perder pessoas que ama, de perder a fonte de renda — entre tantos outros.

"Em geral, as epidemias têm uma existência breve, apesar de arrebatadora. E como elas em geral ocorrem causadas por um micro-organismo desconhecido, ficam mais ameaçadoras ainda." Dilene Raimundo do Nascimento, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz

"A pandemia está acirrando esse sentimento porque está nos trazendo mais a consciência desse risco de adoecimento, da finitude, da morte", aponta a psicóloga Luciana Oliveira, doutora em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Jataí (UFJ). Isso se dá pela exposição constante a notícias — nem todas verdadeiras — sobre a pandemia, assim como aos números de casos e mortes, entre outros pontos.

Em epidemias passadas, esse sentimento também esteve presente — afinal, "ninguém quer morrer", pontua Dilene Raimundo do Nascimento, pesquisadora aposentada da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). "Em geral, as epidemias têm uma existência breve, apesar de arrebatadora. E como elas em geral ocorrem causadas por um micro-organismo desconhecido, ficam mais ameaçadoras ainda"

"O medo existe em toda e qualquer pandemia, sem dúvida. E ele é potencializado em função das medidas tomadas pelas autoridades de saúde, pelas autoridades políticas." Dilene do Nascimento ao abordar o impacto da pandemia na vida das pessoas

A alta transmissibilidade do patógeno, o pouco conhecimento — pelo menos inicialmente — sobre ele e o contexto político-social são aspectos que influenciam na ameaça percebida pela população. "O medo existe em toda e qualquer pandemia, sem dúvida. E ele é potencializado em função das medidas tomadas pelas autoridades de saúde, pelas autoridades políticas", afirma a pesquisadora.

Estudos sobre epidemias anteriores mostram que essa emoção aumentou os níveis de estresse e ansiedade nos indivíduos, especialmente entre aqueles com comorbidades, como sintomas de transtornos psiquiátricos. Isso faz com que o número de pessoas com saúde mental afetada seja maior que o daquelas que efetivamente adoeceram.

"Os estudos mostram que nessas tragédias — no (caso do) Ebola, principalmente — as implicações na saúde mental podem durar mais tempo do que a própria epidemia. Porque tem os impactos psicossociais, econômicos, que também estão atuando. A pessoa às vezes perde o emprego, perde o contato com a família e leva um tempo para se equilibrar. Tem essas nuances", complementa Luciana Oliveira.

Medo e esperança, razão e emoção. Pandemia provoca exaustão, dúvidas e sentimentos divididos(Foto: ELISA RIVA/PIXABAY)
Foto: ELISA RIVA/PIXABAY Medo e esperança, razão e emoção. Pandemia provoca exaustão, dúvidas e sentimentos divididos

Esperança: o oposto do medo

Renato Janine Ribeiro, doutor em Filosofia, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Educação(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Renato Janine Ribeiro, doutor em Filosofia, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Educação

O que tem caracterizado o atual momento da pandemia de Covid-19 no Brasil é uma desesperança presente em parte da população. Nem o início da imunização contra a doença — o que a priori é uma boa notícia — parece ter mudado significativamente o cenário. "A vacina, ainda que seja algo positivo, basicamente tornou-se algo negativo no Brasil. Só ouvimos falar de falta de vacina, de que ela não vai chegar, de crítica à vacina, da baixa adesão à campanha de vacinação", explica o psicólogo André Faro, professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Pós-doutor em saúde pública e saúde mental pela Johns Hopkins University e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia da Saúde (GEPPS/UFS), Faro coordena um estudo que busca entender como as pessoas têm interpretado a pandemia no dia a dia e o que têm feito para lidar com os desafios atrelados a ela. O professor explica que a estratégia de obtenção de dados é "relativamente simples": é solicitado que os participantes elenquem cinco coisas que vêm à mente quando se fala em Covid-19.

"Medo e morte continuam sendo as principais percepções na população, o que nos revelou que, nesse recorde de mais de um ano, o que caracteriza o momento da população, hoje, é a desesperança." André Faro, professor da UFS ao falar sobre pesquisas realizadas com 10 mil pessoas desde 2020 durante a pandemia

Já foram feitas três coletas de dados: duas em 2020, nos meses de março e junho, e a terceira em março de 2021. Somando as três amostras, são quase 10 mil pessoas. As informações mais recentes estão sendo analisadas, e a hipótese é de que o cenário estaria um pouco diferente daquele encontrado no ano passado. "Mas o que que observamos? Medo e morte continuam sendo as principais percepções na população, o que nos revelou que, nesse recorde de mais de um ano, o que caracteriza o momento da população, hoje, é a desesperança", afirma.

Essa relação entre a esperança e o medo é apontada por Renato Janine Ribeiro, doutor em Filosofia, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Educação. Ele explica que essas duas paixões — no sentido de emoções — têm a ver com uma expectativa em relação ao futuro. Enquanto uma projeta um horizonte positivo, a outra remete a ele de forma negativa.

"Podemos distinguir as paixões entre aquelas que nos aproximam de algo e aquelas que afastam alguém de algo. No caso de esperança, há uma aproximação", afirma. Pode ser a esperança de ser amado, de conseguir um emprego, de construir uma boa carreira. "Todas são formas de tratar do futuro e eventualmente construir o futuro", pontua Ribeiro. No medo é o contrário: esse horizonte é visto com receio de que algo dê errado e/ou de que os dias pela frente sejam ruins.

""A razão e a ciência são instrumentos muito poderosos de emancipação e de libertação das pessoas." Renato Janine Ribeiro, filósofo

Enquanto, ao longo da pandemia, existe o medo de adoecer, ter complicações e/ou sequelas da Covid-19, morrer, perder pessoas próximas, perder o emprego ou passar fome, por exemplo, Renato Janine Ribeiro destaca a esperança na ciência. "A razão e a ciência são instrumentos muito poderosos de emancipação e de libertação das pessoas", defende.

No estudo coordenado pelo psicólogo André Faro essa diferença na forma de perceber o futuro também tem aparecido. Os pesquisadores aplicaram uma escala de esperança para avaliar o impacto dessa emoção na minimização de sintomas relacionados à saúde mental. Dados ainda parciais têm mostrado que pessoas com alto grau de desesperança tendem a se tornar mais vulneráveis especificamente ao aumento de transtornos ansiosos.

Já entre aqueles com mais esperança, essa emoção funcionaria como um "filtro" no atual contexto. "Uma pessoa esperançosa não está em estado de bem-estar atualmente, porque isso seria viver em outro mundo. Não tem como esperar bem-estar em um cenário tão difícil, mas a esperança atenua, funciona como um amortecedor", complementa.

Medo e esperança, razão e emoção. Pandemia provoca exaustão, dúvidas e sentimentos divididos(Foto: ELISA RIVA/PIXABAY)
Foto: ELISA RIVA/PIXABAY Medo e esperança, razão e emoção. Pandemia provoca exaustão, dúvidas e sentimentos divididos

Quando a linha do saudável é ultrapassada

 

O medo não é, em si, algo ruim. Enquanto reação fisiológica, ele surge quando algo se apresenta como uma ameaça. O doutor em Filosofia Renato Janine Ribeiro, professor da disciplina de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP), aponta ainda o caráter "pedagógico" dele. "Uma pessoa sem medo pode fazer bobagem. (...) O medo pode ser pai e mãe da prudência", diz. No caso da pandemia, por exemplo, ele afirma que o medo do contágio pode levar o sujeito a ser mais cuidadoso quanto às medidas de prevenção da Covid-19.

A falta de medo, por outro lado, pode levar as pessoas a agirem de forma que, além de imprudente, é antiética, segundo Ribeiro. Ele defende, inclusive, que o atual contexto pode ser entendido como uma aula de ética. "A pandemia coloca questões de vida ou morte em questões de convivência social. A pessoa que não coloca máscara, que desrespeita as precauções etc, está colocando a vida dos outros em risco", afirma.

"É sempre uma linha tênue, não tem uma diferença tão grande. Podemos deslizar para a patologia e voltar para a saúde." Luciana Oliveira, professora de Psicologia da Universidade Federal de Jataí

Ao mesmo tempo, quando está presente em excesso, essa emoção pode paralisar quem a está sentindo. Se o medo for intenso a ponto de impedir que a pessoa leve uma vida "minimamente funcional", então, deve-se ficar alerta, afirma a psicóloga Luciana Oliveira, doutora em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Jataí (UFJ).

Por exemplo, quando o pânico surge após um evento traumático, como um assalto ou um incêndio, ele é "absolutamente normal". Por outro lado, se a manifestação dele ocorre em situações nas quais pelo menos aparentemente não há perigo, pode ser um sintoma de adoecimento. "É sempre uma linha tênue, não tem uma diferença tão grande. Podemos deslizar para a patologia e voltar para a saúde", ressalta.

Medo e esperança, razão e emoção. Pandemia provoca exaustão, dúvidas e sentimentos divididos(Foto: ELISA RIVA/PIXABAY)
Foto: ELISA RIVA/PIXABAY Medo e esperança, razão e emoção. Pandemia provoca exaustão, dúvidas e sentimentos divididos

Medo e esperança no dia a dia de trabalho 

 

Quatro profissionais da Saúde conversaram com O POVO e falaram sobre como o medo e a esperança estão presentes no dia a dia de trabalho. Desde o início, todos estão atuando na pandemia de Covid-19, em diferentes funções, e cotidianamente lidam com os riscos oferecidos pelo Sars-Cov-2, o coronavírus causador da doença.

 

 

Segurança para seguir em frente

Dione Rola
Médica pediatra

A médica Dione Mota Rola, integrante do Coletivo Rebento e pediatra há mais de 20 anos (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal A médica Dione Mota Rola, integrante do Coletivo Rebento e pediatra há mais de 20 anos

Em meio ao trabalho voluntário em uma comunidade no município de Eusébio, o medo surgiu de forma mais intensa para a médica Dione Rola. A grande quantidade de pacientes com diagnóstico positivo para a Covid-19, as condições da população para lidar com as dificuldades associadas à doença e o contexto em que tudo ainda era novidade a fizeram questionar-se.

Será que seria capaz de lidar com tudo aquilo e de evitar internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI)? Para enfrentar a situação, buscou estratégias para capacitar toda a equipe de saúde. "Quando você vai se sentindo mais seguro, vai estancando o medo, trabalhando em cima da realidade que tem", conta. A troca de experiências tanto entre os membros do Coletivo Rebento quanto com demais colegas permite perceber que o medo é recorrente entre eles.

Inicialmente, o medo dava-se principalmente pelo desconhecido. Em seguida, vieram os medos da solidão — pela necessidade de se isolar da família e de amigos — e da morte. É por meio do autoconhecimento que Dione tem encontrado formas de lidar com essa situação.

"É quando eu vejo alguém, diante da pandemia, conseguir sair de si, ver a dor do outro e dizer 'eu vou'. Isso me dá esperança." Dionel Rola, médica pediatra

A médica investiu em meditação e em uma formação em psicanálise, além do engajamento no trabalho voluntário. Ela considera que, não só para profissionais da saúde, é por meio desse "voltar-se para si", conhecer as próprias dores e dúvidas, é necessário para trabalhar o medo.

Ao mesmo tempo, é quando percebe pessoas "saindo de si" e se doando para os outros que a esperança surge para ela. "É quando eu vejo alguém, diante da pandemia, conseguir sair de si, ver a dor do outro e dizer 'eu vou'. Isso me dá esperança. (...) E para você sair de si, primeiro precisa ter a consciência de quem é. Aí você cria coragem." 

 

 

União traz esperança

Eric John Florêncio (*)
Técnico de enfermagem

 

Já no primeiro emprego, há 10 anos, o técnico de enfermagem Eric John Florêncio vivenciou o surto da superbactéria KPC. Hoje, ele continua atuando no transporte de pacientes dentro de hospitais, mas agora vivencia de perto a pandemia de Covid-19. Se uma década atrás o "primeiro baque" deu-se em meio ao início da carreira, no atual cenário a preocupação foi com o filho, que tinha quatro meses quando a pandemia chegou ao Ceará.

"Por mais que a minha profissão não seja 24 horas com o paciente, temos contato e precisamos de proteção", conta Eric, que explica que uma questão para a classe é o reconhecimento dessa atuação. Ver no dia a dia pacientes chegarem bem ao hospital, terem complicações em questão de minutos e muitas vezes morrerem gerou consequências psicológicas para Eric.

Deparar-se mais de uma vez com pacientes que ele conhecia também o impactou. Ele chegou a precisar de atendimento com psicólogo e se afastar das atividades por um período. Era abril de 2020, e Eric pensou estar com sintomas da Covid-19, mas naquele momento os exames deram negativo.

"Esse momento de pandemia veio para mostrar que não tem um profissional superior a ninguém. Todo mundo, na hora, se ajuda." Eric John Florêncio, técnico de enfermagem

Junto a essas questões, a impossibilidade financeira de se manter isolado da esposa, do filho e da mãe o fez adotar cuidados ao chegar do trabalho. "Eu tirava a roupa na garagem, passava para o fundo do quintal para tomar um banho, entrava em casa e tomava outro banho para depois entrar em contato (com eles). E mesmo assim contaminei toda a minha família", conta.

Com o passar do tempo e o avanço no conhecimento sobre a doença, tem sido mais fácil lidar com a situação. E é a união entre a equipe de saúde no cotidiano de trabalho que traz esperança. "Esse momento de pandemia veio para mostrar que não tem um profissional superior a ninguém. Todo mundo, na hora, se ajuda. Independentemente de você ter nível superior, médio ou técnico, toda opinião para salvar a vida do paciente é válida." 

(*) Eric John Florêncio é técnico de enfermagem e atua no transportes de pacientes no interior de hospitais

 

 

Conhecimento que salva vidas 

Roberto da Justa
Médico infectologista

Roberto da Justa, médico infectologista(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Roberto da Justa, médico infectologista

Mesmo com todo conhecimento científico e formação técnica que tem, experiência de mais de 20 anos em Infectologia e uso de equipamentos de proteção individual (EPI), o médico Roberto da Justa teve Covid-19 em abril de 2020. Para ele, isso demonstrou que nem todo o cabedal de proteção e redução de riscos garantem total proteção quando se lida com doenças infecciosas altamente transmissíveis. E o medo de adoecer e de morrer pela infecção é "permanente".

"Hoje eu continuo atuando e continuo com medo. Vou para os meus plantões e tenho medo", conta. Processo de altos risco e exposição, a intubação em pacientes com Covid-19 é uma situação pontual em que, para o médico, surgem sentimentos diversos. Nessa hora misturam-se os medos da exposição, de o procedimento não alcançar o êxito e de não conseguir salvar o doente. "Gera muita tensão e é muito desgastante."

"Existe muito essa atribuição da frieza ao médico. Eu costumo dizer: 'olha, mas é porque às vezes não nos é dado esse direito de demonstrarmos medo, angústia, insegurança, incerteza." Roberto da Justa, médico infectologista

Com o tempo, porém, os profissionais da saúde aprendem a "sublimar" o sentimento. Afinal, os pacientes demandam postura firme e segura. Se, por um lado, essa sublimação do medo é cobrada pela própria sociedade, por outro ela acaba afastando-os "do lado humano". "Existe muito essa atribuição da frieza ao médico. Eu costumo dizer: 'olha, mas é porque às vezes não nos é dado esse direito de demonstrarmos medo, angústia, insegurança, incerteza", conta.

É na partilha com os amigos, no Coletivo Rebento, e com a família que Roberto da Justa encontra apoio, além de conseguir diminuir a angústia. A esperança, para ele, vem quando consegue "vencer o medo" e garantir ao paciente o melhor e mais efetivo tratamento, a intubação correta e a implementação da assistência adequada, ao mesmo tempo que consegue se manter trabalhando e continuar atendendo.

"Isso demonstra que tudo aquilo que aprendemos, a ciência, a experiência, o conhecimento realmente salvam vidas. E é muito gratificante, depois, ver que um paciente que você intubou — naquele clima todo de muita dificuldade, tensão, medo e angústia — sobreviveu. Dá um sentimento de dever cumprido, mas também de esperança de que mais vidas serão salvas", finaliza. 

 


Transformando o temor em ações

Rita Parente (*)
Enfermeira assistencial 

FORTALEZA, CE, BRASIL, 26.05.2021: C(Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita FORTALEZA, CE, BRASIL, 26.05.2021: C

Mesmo trabalhando com pacientes críticos há 35 anos, a enfermeira Rita Parente tem que vencer os medos todos os dias ao longo da pandemia de Covid-19. Cotidianamente, é preciso transformá-lo em ações que vão proporcionar aos pacientes uma assistência de qualidade.

Deparar-se com falta de insumos ou de leitos em UTI, entre outras situações, também faz com que o medo surja. Afinal, elas podem comprometer ainda mais o quadro clínico daquela pessoa que ela está atendendo.

Houve três momentos, para ela, na pandemia. No primeiro, vieram pacientes, de forma geral. Em seguida, os pacientes que chegavam eram pessoas amigas. Por fim, houve o momento de precisar atender familiares. "A cada paciente que eu atendia, via como se fosse eu naquele leito."

"Eu tinha certeza que dias melhores viriam. Em nenhum momento perdi a esperança." Rita Parente, enfermeira assistencial

Para não deixar que o medo a paralise, Rita busca cuidar-se para, assim, cuidar do próximo. Nadar, dançar, caminhar e orar são ferramentas às quais ela recorre. "Eu tinha certeza que dias melhores viriam. Em nenhum momento perdi a esperança", afirma.

(*)Rita Parente é enfermeira assistencial e auditora de Enfermagem, atua em Unidades de Terapia Intensiva (UTI)

Medo e esperança, razão e emoção. Pandemia provoca exaustão, dúvidas e sentimentos divididos(Foto: ELISA RIVA/PIXABAY)
Foto: ELISA RIVA/PIXABAY Medo e esperança, razão e emoção. Pandemia provoca exaustão, dúvidas e sentimentos divididos

 "Tente, treine e insista"

Para lidar com os estímulos estressores durante a pandemia de Covid-19, o doutor em Psicologia André Faro, professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), aponta que não é o medo que tem que ser trabalhado, mas aquilo que invoca e reforça essa emoção.

Ele recomenda trabalhar quatro atitudes: buscar objetividade; trabalhar a tolerância ao desconforto e à frustração; traçar micro-objetivos e procurar um sentido para o que está ocorrendo. Em todas elas, deve-se aplicar os seguintes verbos: tentar, treinar e insistir.

 

As recomendações são baseadas em pesquisas desenvolvidas já durante a pandemia, tanto no Brasil quanto no exterior. Dados desses estudos mostram que pessoas que têm conseguido lidar melhor com o atual contexto, do ponto de vista da saúde mental, têm uma ou mais desses quatro pontos bem trabalhados.

O professor ainda aponta que, se for difícil conseguir trabalhar essas questões sozinho, deve-se buscar ajuda profissional.

 

 

O que você achou desse conteúdo?