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Cem anos sem a alma encantadora de João do Rio
Reportagem Especial

Cem anos sem a alma encantadora de João do Rio

Repórter, cronista, contista ou, simplesmente, um flâneur. O carioca João do Rio, autor de clássicos como "A alma encantadora das ruas", ousou ao levar às páginas dos jornais a vida dos marginalizados em uma cidade que só queria ser Paris

Cem anos sem a alma encantadora de João do Rio

Repórter, cronista, contista ou, simplesmente, um flâneur. O carioca João do Rio, autor de clássicos como "A alma encantadora das ruas", ousou ao levar às páginas dos jornais a vida dos marginalizados em uma cidade que só queria ser Paris
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João Paulo Barreto retratou o dia-a-dia carioca no processo de modernização do início do século XX, seja a “cena ou a obscena”, termo criado pelo pesquisador Ricardo Cordeiro Gomes para definir o que deveria ou não ser mostrado. Não era um “intelectual de esquerda” e sim, um homem com trejeitos delicados e frequentador habitual dos salões e cafés onde a nata da sociedade se reunia.

No entanto, era na crônica que ele era combativo. O texto ele assinava com vários pseudônimos (João do Rio era usado exclusivamente para os livros), e estava em destaque na primeira página do "A Gazeta de Notícias". No espaço nobre, ele denunciava que as benesses da cidade que estava em mutação estavam em favor apenas de uma pequena parcela da população.

100 anos de morte do João do Rio  - Aline Novaes(Foto: Bárbara Chieregate - Divulgação)
Foto: Bárbara Chieregate - Divulgação 100 anos de morte do João do Rio - Aline Novaes

 “A crônica do jornal acabou sendo o gênero ideal para narrar aquele momento, que era o da ‘chegada da modernidade’, acontecimento que foi narrado em muitos outros lugares por meio dos livros. João do Rio teve a ideia de que essa crônica poderia ser híbrida, uma crônica-reportagem-literária que contaria as muitas transformações tocadas pelo prefeito Pereira Passos, que queria fazer do Rio de Janeiro uma Paris, que era símbolo da modernização”, afirma ao O POVO Aline Novaes, autora do livro “João do Rio e seus cinematographos”. A Belle Époque, que se iniciou no Brasil no final do século XIX, foi um período em que o Rio de Janeiro, então capital federal do Brasil, passava por intensas modificações urbanas, culturais e sociais.

“Como Zuenir Ventura disse, João foi, simplesmente, o primeiro homem da imprensa a sair de seu gabinete e transitar pela cidade. No ‘As religiões do Rio’, por exemplo, ele vai à sinagoga, ao terreiro, ao culto católico, ao evangélico...ele leva ao leitor um olhar totalmente diferente, o do que acontecia para além das janelas das pessoas. O jornalismo na época tinha muito a pegada da literatura tradicional, até porque quem trabalhava nas redações eram figuras como Machado de Assis e José de Alencar, ou seja, os homens das letras. Apesar dele também ser um, ele inaugurou essa metodologia do caminhar na cidade, de escrever crônicas políticas, culturais e até cinematográficas”, destaca.

A coluna “Cinematographo: crônicas cariocas”, objeto de estudo do mestrado em Comunicação e doutorado e pós-doutorado em Literatura fascina a pesquisadora. “A sequência de crônicas dá a ideia de que a literatura pode ser um filme. Com essa concepção, ele se antecipa em uns 10 anos em relação ao Modernismo, e ninguém tinha feito isso. É simplificar demais dizer que ele apenas selecionava os textos dos jornais para pôr nos livros. Ele fazia um trabalho de elaboração de um produto literário diferente de uma crônica jornalística. Eram os mesmos títulos, mas não necessariamente o mesmo conteúdo, porque os suportes (jornal e livro) eram diferentes”, explica.

Para a autora, que fez um levantamento minucioso do conteúdo publicado nas colunas e no livro, o fato de João do Rio usar os mesmos títulos das crônicas do jornal nos livros mas modificando os textos era um indicativo que tinha plena consciência da peculiaridade do jornalismo e da literatura, mesmo transitando entre os dois mundos. “A crônica está localizada nesse limiar. O que João do Rio fez foi nos mostrar que esses dois universos estão intimamente interligados”, conclui.

 

 

“Vida vertiginosa" permanece atual 110 anos depois

 

Publicado no auge da carreira de João do Rio, obra que é considerada um dos melhores livros do autor trata da velocidade e da agonia da modernidade

Em 1911, um ano após a eleição para a Academia Brasileira de Letras, João do Rio assumiu a direção do “A Gazeta de Notícias” e publicou o “Vida vertiginosa", uma reunião de 25 crônicas publicadas no periódico.

“Esse livro não é tão bom quanto ‘A alma encantadora das ruas’, por exemplo, que junto com o ‘As religiões do Rio’ são as obras mais lembradas pelo público. Mas apesar do primeiro ser mais desconhecido hoje em dia, ele teve várias edições, enquanto que o segundo teve apenas duas”, afirma ao O POVO o jornalista e pesquisador João Carlos Rodrigues, que preparou a edição e escreveu o texto introdutório do “Vida vertiginosa", publicada em 2006. Ele também escreveu “João do Rio: vida, paixão e obra”, lançado em 2010.


O escritor e pesquisador João Carlos Rodrigues, autor de "João do Rio: vida, paixão e obra"(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal O escritor e pesquisador João Carlos Rodrigues, autor de "João do Rio: vida, paixão e obra"

“João do Rio foi o primeiro escritor brasileiro a ter artigos de imprensa transformados em livro. Eles se tornaram best sellers, ele vendia muito. Em 1904 ele fez a primeira reportagem do Brasil, sobre o candomblé no Rio de Janeiro, e depois virou um livro chamado ‘As religiões no Rio’, que vendeu incríveis 10 mil exemplares. Naquela época, a maioria da população era analfabeta, ou seja, proporcionalmente, o livro teve um alcance muito grande”, afirma.

De acordo com o pesquisador, a seleção de crônicas era feita de acordo com temas, e no caso do “Vida vertiginosa”, elas teriam a ver com a vertigem da modernidade e a rapidez das coisas. “Eu, pessoalmente, acho esse um dos melhores livros dele. Foi nos anos 60 que as pessoas voltaram a lê-lo. Inclusive eu, porque o texto era não só divertido mas também porque os temas relacionados ao Rio de Janeiro pareciam não ter mudado mesmo após tanto tempo. Às vezes, até os locais que ele citava permaneciam iguais, como por exemplo, a Praça Tiradentes, que até poucos anos atrás reunia os mesmos tipos de pessoas descritas pelo autor, como os malandros, as prostitutas etc.”, enumera.

João Carlos destaca ainda o fato de João do Rio ter sido o primeiro a ir para rua. “Antes dele não havia entrevista, e ele fez um livro só com elas, o primeiro do gênero, chamado ‘O momento literário’, onde conversou com escritores. Machado de Assis, o mais importante da época, se recusou a dar entrevista. Não porque fosse para o João, mas porque entrevista era uma coisa que simplesmente não se dava. Ele também criou a reportagem in loco. Na época, quando o jornalista queria saber uma coisa, a pessoa ia até a redação e contava o caso, mas o João fez questão de ir aos lugares. Outra coisa é que antes dele, a crônica era muito muito poética e ele a transformou em uma coisa mais irônica e cotidiana”, pontua.

E por que ainda gostamos tanto das crônicas nos jornais?

"Porque ela é uma parte amena deles. O leitor abre o jornal e lê essas notícias horríveis de todo dia, mas de repente ele cai em uma seção que tem alguém contando alguma coisa sagaz e divertida. E a gente gosta mesmo quando é triste, porque há poesia nela”, simplifica.

 

 

A morte de João do Rio narrada em crônica

Por Flávia Oliveira (*)

Flávia Oliveira, jornalista(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Flávia Oliveira, jornalista

Naquele 23 de junho de 1921, Paulo Barreto deve ter acordado, tomado banho, se olhado na frente do espelho e gostado da roupa, bem no estilo dândi, aquela tendência surgida no século 19 e que foi uma revolução na forma de se vestir, uma mistura de chique clássico com o espalhafatoso. De quando em quando o bailarino e coreógrafo Fauller, daqui de Fortaleza mesmo, posta fotos de gravata borboleta feita com pena de pavão e bengala de cabo trabalhado, uma beleza só.

Pois bem, voltemos a 1921. Paulo/João do Rio pega um táxi para ir ao trabalho, a redação do jornal A Pátria, que era dele havia um ano. Ele tinha se desligado há seis do "A Gazeta de Notícias", onde fez seu nome em mais de uma década de trabalho. De Ipanema até o Largo da Carioca, no Centro, seriam uns 13 quilômetros, coisa de meia hora para se fazer de carro, mas não há rigor nessa estimativa porque o Google Maps não viaja no tempo que nem a cabeça da gente.

E foi ainda dentro do táxi que ele pôs a mão no peito e passou mal. Pediu água ao motorista, mas morreu antes que este retornasse aperreado segurando o copo. João do Rio era obeso, tinha a saúde um tanto frágil e se foi antes de completar os 40 anos. Vale lembrar que o ataque fulminante aconteceu pela manhã, parte do dia onde 50% dos piripaques no coração acontecem, segundo o Instituto Nacional do Coração. Mal de repórter, isso de querer colocar um dado no texto, ainda que seja uma crônica.

A capa do A Gazeta daquele dia tinha a seguinte manchete: “Cadáveres aos montões! O extermínio pela malária” e denunciava a situação do Norte do país, onde os corpos estavam sendo postos em valas porque as mortes eram muitas e o governo não fazia nada que prestasse para dar um jeito na epidemia. Qualquer semelhança com o Brasil de 2021 não é mera coincidência.

No dia seguinte, a manchete era, claro, a morte do João, aliás, do Paulo Barreto. Pelo menos 100 mil pessoas participaram do cortejo, o que deu a ele o segundo maior enterro que o Brasil já tinha visto. Só o Barão do Rio Branco, herói nacional, tinha merecido mais enlutados, mas a reação à morte do João foi surpreendente porque ele tinha ascendência negra e era homossexual, duas características que não eram lá muito estimadas.

João do Rio permanece atual. Se vivo fosse, estaria escrevendo horrores no seu tablet, em algum lugar badalado da cidade. Devidamente vacinado, é claro.

*Flávia Oliveira é repórter do O POVO e contista nas horas vagas.

 

 

Mesmos títulos, escritos diferentes: uma homenagem ao “Vida vertiginosa"

Seis crônicas e um ensaio visual exercitam o olhar sobre uma das melhores obras de João do Rio. 

Os desenhos do artista Carlus Campus são releituras gráficas dos títulos de seis crônicas extraídas da obra de 1911. O objetivo é oferecer uma mistura de diferentes linguagens — neste caso, entre a palavra e o desenho — e mergulhar o leitor em uma profusão de texturas e cores, onde seres híbridos passeiam lado a lado com humanos embriagados pela modernidade.

Em "O povo e o momento", Regina Ribeiro faz um relato das reações e causos mais estarrecedores do momento no Brasil, a exemplo do que fez João ao imaginar o diálogo com um estrangeiro recém-chegado e ávido por saber mais sobre a população.  

Já no “O muro da vida privada”, Aspásia Mariana deixa de lado a crítica à intromissão da imprensa na vida privada e passeia por histórias de família e a relação com a cidade de Fortaleza, que por vezes parece nos encher os olhos de concreto.

"O bem das viagens" vira um divertido relato de viajantes às voltas (literalmente) com mimos da terrinha, como castanhas de caju e gomas de tapioca, e tem como ponto de partida um caminho inverso do tomado originalmente. 

Demitri Tulio lembra em "O Sr. Patriota" a recente condenação de um ex-agente da ditadura militar e dá voz ao ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, mais uma vítima do regime marcado por torturas, censura e assassinatos.

Em "O último burro", João do Rio fala da modernização dos bondes do Rio de Janeiro, antes puxados por burros. Nesta releitura, Henrique Araújo escolhe falar também dos que se investiram de mandatos políticos, ainda que a pecha seja um tanto injusta.

E por fim, temos o “O dia de um homem em 2021”, uma reescrita de “O dia de um homem em 1920”, que em vez de uma viagem ao futuro virou um retorno ao passado. O texto de Assis Ângelo, escritor que há oito anos viu o mundo se apagar em pleno palco, foi criado e narrado pelo telefone e transcrito pela repórter com caneta e papel.

João do Rio - O povo e o momento (Foto: CARLUS CAMPOS)
Foto: CARLUS CAMPOS João do Rio - O povo e o momento

 

O povo e o momento

Por Regina Ribeiro (*)

Regina Ribeiro, jornalista(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Regina Ribeiro, jornalista

Neste exato momento, o povo está dividido. Já não sabe o que é verdade ou mentira. Não faz ideia se o bandido Lázaro que foge há duas semanas do cerco de quase 300 policiais e vários cães farejadores nas matas de Goiás existe ou não. Parte do povo tem como certo que Lázaro é só uma ideia em forma de Demônio. Outra parte acredita que o bandido tem asas e se transforma em corvo e que, por isso, está aparecendo em vários lugares. Só uma pequenina parte do povo acha que a polícia é só incompetente mesmo, neste momento específico de caça ao Lázaro. O bandido não é um Osama Bin Laden. Nem Goiás é o Afeganistão. E os cães? Essa pequena fatia de povo se divide: tem aqueles que acham que os cães perderam o faro e só querem brincar no cerrado. Os outros não sabem nada sobre cães.

O povo continuará dividido mesmo após o bandido Lázaro ser encontrado vivo ou morto. Nesse momento um naco do povo está boquiaberto, porque soube que a mania de deixar resto de comida no prato quando vai ao restaurante é a causa da pobreza dos dois terços do total do povo. No entanto, essa parte prejudicada do povo achou esquisita a relação e não consegue imaginar uma forma de dividir as sobras. Porque o povo que frequenta restaurantes é infinitamente menor do que o que não frequenta. Sempre ficaria alguém do povo com fome. Então, deve haver algo que substitua essa ideia maluca, apesar de ter vindo de um representante do povo que foi ensinado a pensar.

Mas, são 500 mil mortes que mais pesam sobre o povo brasileiro que restou vivo da pandemia que se alastrou pelo mundo. Os mortos pesam, confundem, estarrecem, constrangem ou caem na vala comum do cérebro, onde alguns do povo escondem o que não querem ver nem sentir. Neste momento, o povo brasileiro resta bem dividido. Uns acham que foi o destino o que causou tamanho desastre. Outros consideram que foi pela ação de um governo que segue indiferente. Já uma parte seleta do povo elegeu um homem para acusar, a quem chama de genocida. A palavra segmenta o povo.

No momento, com tantas divisões, o povo parece saído das páginas de Saramago, perdido numa grande rocha que se descola da capacidade de ver o todo, ou ficou cego de repente e, mesmo juntos, não percebe que está ao mesmo tempo tão perto e tão longe dos fatos que constroem, dia a dia, o real.

O povo poderá sentir-se no cilindro de Beckett. Divididos em espaços mínimos e rituais que os obriga apenas a repetir um único gesto e a ter um único sentimento uns pelos outros. Apenas uns pouquíssimos entre o povo escalam o cilindro em busca de saída. Esse é o povo. Este é o momento.

Regina Ribeiro, jornalista, mestre em Literatura Comparada (UFC), editora do O POVO Mais 


João do Rio - O muro da vida privada(Foto: CARLUS CAMPOS)
Foto: CARLUS CAMPOS João do Rio - O muro da vida privada

 

O muro da vida privada

Por Aspásia Mariana (*)

 

Aspásia Mariana é artista da dança e da performance(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Aspásia Mariana é artista da dança e da performance

Antes mesmo de começar, mesmo que já tenha começado, ou diria, antes que me aprofunde no assunto, sinto a necessidade de dizer de onde vim e onde estou. Acho importante contextualizar você, pessoa que lê, sobre e de onde parte minha experiência com e na cidade.

Apesar de ter uma família que, como uma grande parte de pessoas que conheço, vieram do interior, fui criada na cidade. Mesmo com as práticas compartilhadas como, por exemplo, sempre ter um balde disponível para quando viesse a chuva e guardar o que ali coubesse, porque minha família sempre soube da preciosidade que é a água que vem do céu. Mesmo que eles tenham dividido comigo e durante minha criação, infelizmente, somente até os meus 17 anos. Sim, sou órfã de pai e mãe muito cedo. Acho injusto? Acho, mas isso não vem ao caso agora. O que quero falar e retornando para o assunto principal é sobre minha experiência e minha relação com a cidade.

Pedalar nas ruas de uma parte de Fortaleza é conversar com essa parte da cidade me dizendo todos os motivos de estar aqui para além do amor que sinto por ela. Sim, amo Fortaleza apesar de tudo. Apesar de quem diz que aqui é o deserto. Deserto é no que querem transformar quem tira dela o tempo inteiro. Viadutos são sinônimos de como querem nos impor as cidades e não são essas cidades que queremos, muito menos as cidades que merecemos. Quem acredita que os problemas se resolvem com viadutos? quando derrubam árvores centenárias, quem…vocês sabem quem!

É através dessa cidade que vivo por meio da bicicleta que percebo o número de pessoas em situação de rua aumentando, o número de crianças nos sinais pedindo comida, de animais abandonados.
Escolhi exercer um direito. Um direito de estar na cidade de Fortaleza vivenciando-a da forma que me sinto melhor, e por acaso, acontece dessa ser uma das formas de tornar a cidade mais humana, mais para as pessoas. Mais humana no sentido que é com o corpo, sem redomas, sem a proteção daquelas tantas toneladas de um veículo motorizado. Escolher ter/ser/estar com um corpo que está em contato com seu entorno, um corpo livre que está nas ruas. Venceremos!

(*) Aspásia Mariana é artista da dança e da performance. É designer, instrutora de kung fu, e utiliza a bicicleta como seu principal meio de transporte

 

João do Rio - O bem das viagens(Foto: CARLUS CAMPOS)
Foto: CARLUS CAMPOS João do Rio - O bem das viagens

 

O bem das viagens

Por Ariadne Araújo (*)

Ariadne Araújo, jornalista cearense, reside atualmente em Lisboa(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Ariadne Araújo, jornalista cearense, reside atualmente em Lisboa

Pedido de última hora, tem. Sempre. E a mala, já abrindo pelas costuras, arrisca de chegar na Europa escangalhada. Mas, brasileiro viajante não deixa ninguém na mão. Empurra-se ali e aqui, abre-se um cantinho embaixo das camisas e, pronto, a cachaça e as castanhas já estão. A dupla é um clássico, orgulhos nacionais, não pode faltar. No ninho de roupas, viajam também pacotes de café, goiabadas cascão, cajuínas, cajuzinhos cristalizados. A mais perigosa de atrair problemas na alfândega é, seguramente, a branca e a fina goma de tapioca. Mas, vai assim mesmo. Afofa-se, ajusta-se, ajeita-se, afivela-se, fecha-se a cadeado e cruzam-se dedos.

A panela de fazer cuscuz é chata de levar, mas vai recheada de miudezas. Já a lata da legitima manteiga Cabeça de Touro exige cuidados, mas vai refrigerando no porão do avião. Para tudo dá-se um jeito. Inclusive para a espinhosa missão de atravessar o Atlântico, equilibrando no colo, vejam só o tamanho da bondade, um bolo Luís Felipe, mimo culinário de uma mãe amorosa para uma filha saudosa. De pedidos assim, foge-se como o diabo da cruz. Mas, como dizer não para a turma dos loucos por queijo coalho, em carência do produto, raríssimo no estrangeiro? Certo agente alfandegário ainda deve se lembrar do recorde: sete quilos numa mala só.

O gosto da caipirinha perfeita pede também sacrifícios. Foi preciso sangue frio para ver as cuecas expostas na esteira da alfândega portuguesa, até se explicar o conteúdo da tal garrafa empalhada, vinda do Ceará. Neste caso feliz, salvaram-se a cachaça e a honra do dono das roupas íntimas, todas alvíssimas e engomadas. É que muambeiro também tem pudores, sabe? Do mesmo amor pelo aperitivo, um cidadão tinha o costume de trazer sacos e sacos de suculentos limões brasileiros, para a Alemanha. Da última viagem, extraviaram-se mala e frutos. Recuperou os dois, uma semana depois. Mas, teve que dividir a preciosa carga com o alemão que devolveu. Mortinho de pena.

Porque é no costume que o sujeito se profissionaliza na arte de engabelar fiscais. Ou envernizar a cara de pau. O doce de leite de caroço, feito e acondicionado por mãos amantíssimas, carecia de rótulo de fabricação. “Se o senhor soubesse como isso engorda”, respondeu a viajante, tomando de volta o doce confiscado, de novo na mala. Mas, há itens que pedem criatividades extras. Para se fazer voar, de um lado a outro do Atlântico, quilos de peixe seco e salgado, aconselha-se vivamente muito filme plástico e papel alumínio, que roupa suja só não basta. Pois, estadia em Portugal dá sempre gosto a bacalhau.

Mesmo os useiros e vezeiros no transporte de comidas e bebidas têm frio na barriga na hora de encarar o faro de cão dos fiscais, sempre de olho nas delícias das malas alheias. São eles os grandes desmancha prazeres dos mãos-cheias brasileiros. E, às vezes, a coisa desanda. Na Inglaterra, a conterrânea foi interrogada sobre um suspeito raminho de arruda que levava na orelha, pra dar sorte. Descobriu, no susto, que não há simpatias nas alfândegas mundiais. E assim, em meio a quiproquós e debates sobre a lei, vão para as cucuias bacalhaus, caipirinhas e arrudas. Mas ficam as histórias e as risadas que delas saem. Que isso também rende boa mesa, tempera a janta e nem toma espaço na mala.

Ariadne Araújo é jornalista. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora de "Bárbara de Alencar" (FDR) e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras).

 

João do Rio - O Sr. Patriota (Foto: CARLUS CAMPOS)
Foto: CARLUS CAMPOS João do Rio - O Sr. Patriota

  

O Sr. Patriota

Por Demitri Túlio (*)

Demitri Túlio, jornalista, cronista, autor de 40 prêmios de jornalismo e autor de vários livros infantojuvenis(Foto: Camila De Almeida)
Foto: Camila De Almeida Demitri Túlio, jornalista, cronista, autor de 40 prêmios de jornalismo e autor de vários livros infantojuvenis

Patriota! Quem foi mais patriota? Os que prenderam, sequestraram, torturaram e desapareceram com os corpos dos outros ou os que foram sumidos durante os anos de ditadura militar (1964-1985)?

Taí um falso dilema histórico, ferida abertíssima. Falo de algum lugar, de uma sepultura incógnita onde estou há quase 50 anos desaparecido...

Era 1971 quando eu, o ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, fui preso por subversão em São Paulo, mesmo tendo sido expulso da Marinha e exilado. Mesmo tendo vestido farda e repetido quase todos os dias o grito de guerra “Brasil acima de tudo”.

Eu cantava o Hino Nacional toda semana, todos os dias hasteava e arreava a bandeira. Respeitava os símbolos, eu tinha o tal sentimento de pertença à “pátria amada, Brasil”.

Essa história é quase um videotape, em preto e branco, um repeteco de enredos crudelíssimos anistiados sem responsabilização de quem se arvorou da vida alheia.

E o que seria o tal sentimento patriótico do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e dos delegados Carlos Alberto Augusto, Alcides Singillo e Sérgio Paranhos Fleury? Todos acusados por meu descaminho depois de dois anos de prisão e incomunicabilidade. Por azar deles, fui visto por testemunhas pela última vez em junho de 1973.

Fui surpreendido, da cova úmida onde estou ocultado, que o Ministério Público Federal de São Paulo finalmente conseguiu na Justiça Federal condenar alguém por atrocidades urdidas no tempo da pátria dos generais presidentes.

Junho de 2021. Exatamente 50 anos depois de minha captura e desaparição, o juiz Silvio César Arouck Gemaque condenou o delegado Carlos Alberto Augusto (único ainda vivo dos sumidores) há dois anos e 11 meses de prisão. Pelo crime político de ter produzido um patriotismo beligerante contra meu corpo "desremido".

É pouco? Talvez. Uma sumidura justificada pelo amor à Pátria, à Terra Adorada, deveria ter mais peso na hora da masmorra condenatória. Afinal, que patriotismo é esse que oferece Solo apenas a alguns Filhos da Mãe Gentil?

Daqui, do túmulo onde me jogaram sem velório nem flores de plástico, penso sobre os patriotas que me prenderam, sequestraram, torturam e me ausentaram do País e de minha família.

Penso na frase do delegado Carlos Alberto Augusto, 76 anos. Hoje, um velho que eu nem consegui ser. Provavelmente, um atormentado por tantas mortes e desaparecimentos.

“É mentira (a existência de tortura nas dependências do Dops). É que esse bando de caguetas dizem: ‘Aí, eu entreguei você porque tomei um pau’. É tudo cagueta esses caras. Fiquei infiltrado no meio desses canalhas, traidores da pátria”.

(*) Demitri Túlio é jornalista, repórter especial, cronista e vive Redações desde 1996. Já atuou em quase todas as áreas de cobertura do jornalismo com destaque para segurança pública, cotidiano e Semiárido. É vencedor de mais de 40 prêmios.


João do Rio - O último burro(Foto: CARLUS CAMPOS)
Foto: CARLUS CAMPOS João do Rio - O último burro

 

 O último burro

Por Henrique Araújo

 Henrique Araújo, jornalista, repórter do O POVO e cronista(Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Henrique Araújo, jornalista, repórter do O POVO e cronista

Ultimamente tenho desgostado de viver nestas terras governadas por um mandatário em tudo distinto dos de minha espécie, mas cuja postura irracional calharam de predicar injustamente de burro, como sói acontecer com aqueles a quem se pretende pespegar uma marca de estultícia.

Até então, não dava por me aborrecer se por acaso alguém aparecia e, maldosamente, dizia de um deputado ou senador mais desinteligente ou francamente estúpido: este age como um burro em tal ou qual assunto. Era tão rotineiro, uma expressão já abrigada no falar comum, que não me importava que a palavra que designava a minha família de animal fosse usada para rebaixar os bichos humanos.

Era um modo, inclusive, de nos aproximar, aos homens e aos burros, que, tratando-se por iguais, por semelhantes podiam ser tomados em certas circunstâncias, e disso também tirávamos proveito. Quando um burro mais burro aprontava no pasto, dizíamos dele que era tão besta que até parecia gente.

Pois bem. Lembro de certo presidente da Câmara cujos discursos sem nexo eu mesmo gostava de apreciar pela TV de um vizinho. Examinava-os e me sentia sabido, ele no seu terno, eu na minha cangalha, reparando nos erros e nas frases sofríveis que terminavam da mesma maneira que tinham começado: sem o menor sentido.

Pilheriava com o Alfredo, um colega já aposentado da lida de puxar carroça com entulho de construção no Meireles: “Vê só esse daí, é uma cavalgadura, começando pelos cascos”, dizia, e o Alfredo caía a relinchar, as patas dobrando-se e as orelhas murchando de tanta graça, o pelo liso de um cinza amofinado arrepiando-se de repente.

Assim transcorria a vida de burro no Brasil. Dura, é verdade, mas pontuada aqui e ali por episódios da política nacional que serviam, quando nada, para mostrar que os animais feito nós e os engravatados do poder central não estavam tão distantes assim uns dos outros. Pelo contrário, havia quem assegurasse que era uma arrematada injustiça comparar-nos – em desfavor dos burros, claro.

Isso até a chegada do “ruminante”, esse que houve por bem sentar-se na cadeira de governante e de lá empesteia tudo com baforadas intoxicantes. A cada escoiceio, a cada estrebucho ante a pergunta de uma repórter, a cada ameaça de mordida com esses dentões de mastigar mato às fartas, sempre acodem a chamá-lo de burro, o que muito me entristece.

Por uma razão: de todos os bichos que convivem com as gentes, os burros são de fato os que de melhor préstimo fazem uso em todo o tempo e lugar, seja na cidade ou no campo, e disso nunca reclamamos. Trabalhamos de sol a sol, feito burros, como costumam dizer, e sempre afetuosos, sem revidar com ameaças de golpe ou darmos com as patas nas caras dos outros.

Mas este com faixa presidencial que relincha sem ser de fato asno, o que já fez da vida? Se ainda o houvessem estribado e obrigado a puxar carroça, tudo bem. Mas nem isso. Não serviu sequer para o que serve um bom burro.

(*) Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. 

 

João do Rio - O dia de um homem em 2020(Foto: CARLUS CAMPOS)
Foto: CARLUS CAMPOS João do Rio - O dia de um homem em 2020

 

 O dia de um homem em 2021

Por Assis Ângelo (*)

 Assis Ângelo, jornalista e escritor(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Assis Ângelo, jornalista e escritor

Outro dia o Olegna perguntou-me por que eu ficava tanto tempo em casa: “Por que não sai para espairecer, ir ao parque, essas coisas?”. O Olegna é um querido amigo, bom papo e tal.

Mas fiquei pensando, cá com os meus botões. Sim, por que não saio?

Ele tem razão, mas o diacho é que esse tal de novo coronavírus está nos impacientando até demais. Esse novo vírus tem o poder de nos pegar pela boca e tal. E daí evolui para um tal de Covid-19. Diachos!
O novo coronavírus é uma praga, mas pragas a humanidade enfrenta desde os tempos de antanho. A primeira vez que a bubônica dizimou boa parte do mundo foi ali pelo século 13, 14, sei lá! Ela chegou, inclusive, ao Brasil, ali pelo século XIX, tempos que os primeiros maquinários de imprensa aportaram no Rio.

Eu gosto do Rio de Janeiro, quem não gosta?

No começo do século XX, o prefeito Pereira Passos chamou o sanitarista paulista Oswaldo Cruz para dar um jeito na onda virótica provocada pela febre amarela, pela varíola. Pois é.

Remexendo nos meus guardados, deparei-me com cartas de amigos cariocas como Paulo Barreto, Pedro Nava, Nelson Rodrigues, Drummond...grande Drummond!

Sim, o Paulo Barreto é aquele neguinho danado de inteligente, chamado por todo mundo de João do Rio. E aqui, nessa carta, ele me diz: “Não está na hora de você nos visitar?”.

Como se não bastasse o Olegna, vem o João me chamar para ir à terra dele. Diachos!

Como eu disse há pouco, gosto do Rio, dos bondes e até dos ricaços exibindo aqueles Ford Bigode.

Essa lembrança traz-me uma imagem que sempre me faz rir: o Olavo (Bilac) dirigindo o primeiro carro que chegou ao Rio de Janeiro. Era do Patrocínio. Figura incrível, o José do Patrocínio! Naquela ocasião, ali pela viradinha do século, o Olavo tascou o carro numa árvore. A árvore ficou incólume, mas o carro, em pandarecos. Os dois escaparam, mas dizem que jamais quiseram saber de aventuras desse tipo.

Traumas à parte, cá estou com o Paulo tomando um choppinho no café da Rua Carioca. Rua histórica, de muitas histórias achadas nos livros do Machado (de Assis).

Pois bem, como se vê: deixei o presente pandêmico de Covid-19, o futuro sempre foi incerto e o passado é o que é.

João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto é, de fato, uma figura inesquecível.

Acordei com um sorriso e o cuco espalhafatoso dando a hora: sete.

Lá fora uma chuva gostosinha batucava na janela.

(*) Assis Ângelo é escritor, jornalista, pesquisador de cultura popular e presidente do Instituto Memória Brasil. Paraibano de João Pessoa, é radicado em São Paulo. 

 

   

 

 

 

 



 





 

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