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Positividade tóxica: quando o otimismo se torna uma obrigação
Reportagem Especial

Positividade tóxica: quando o otimismo se torna uma obrigação

Negar sentimentos não prazerosos com felicidade e otimismo forçados pode trazer até problemas físicos. O corpo manifesta sintomas de temas mal resolvidos. Um caminho é acolher as emoções, mesmo diante das situações mais desafiadoras

Positividade tóxica: quando o otimismo se torna uma obrigação

Negar sentimentos não prazerosos com felicidade e otimismo forçados pode trazer até problemas físicos. O corpo manifesta sintomas de temas mal resolvidos. Um caminho é acolher as emoções, mesmo diante das situações mais desafiadoras
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Ser socialmente positivo é associado a características entendidas como boas: leve, otimista, feliz, ativo e capaz. O contrário coloca você como alguém pesado, sempre triste, inerte? Porém, a realidade é que a vida é composta por situações prazerosas e também por aquelas dolorosas; e todos respondemos a elas. Assim, a positividade pode ser tóxica quando é obrigatória e desconectada do que está sendo vivenciado.

Roberta Alencar conta que durante “um bom tempo” procurou ser feliz e otimista, independente do que estava acontecendo. “Só queria me mostrar animada, pra cima, esperançosa, mas não estava”, reconhece.

“Foi um processo lento e piorou com as dificuldades da pandemia. Passei por vários estresses e ignorava. Só quando uma amiga conversou sério comigo é que parei para perceber e tentar mudar”, continua. A gerente comercial relata que hoje tenta manter uma relação mais saudável com os sentimentos. “Entendi que é importante validar o todo do que sinto, mesmo as partes ruins. Porque só assim posso saber o que me deixa insatisfeita e ver como posso melhorar”, afirma.

ilustração 2 - Positividade tóxica acontece quando negamos os sentimentos não prazerosos (Foto: Getty Images)
Foto: Getty Images ilustração 2 - Positividade tóxica acontece quando negamos os sentimentos não prazerosos

“A positividade tóxica se trata de uma tentativa de negar a existência de alguns sentimentos considerados negativos, como a tristeza, a frustração ou a angústia. A pessoa busca invalidar a existência deles”, define a psicóloga Ivana Teles. Ela afirma ainda que reprimir os sentimentos é prejudicial não só para a saúde mental. “Temas mal resolvidos mentalmente podem se intensificar com o passar do tempo. E as consequências podem surgir no corpo através de problemas de pele, gastrite nervosa e crises de enxaqueca, por exemplo”, adverte.

Essa positividade forçada, que pode parecer de caráter individual, diz sobre a forma como estamos vivendo atualmente. Karla Julianne Negreiros, psicóloga e doutora em Saúde Coletiva, aponta que discursos de ser invencível vieram do universo corporativo num cenário de desenvolvimento profissional e invadiram a vida das pessoas. “Essa necessidade de mecanização da vida, de desenvolvimento a qualquer custo, desse suposto crescimento está fazendo as pessoas ensinarem às outras a abafar suas emoções, e não a lidar com elas”, explica.

Outro fator que Julianne expõe é o apelo consumista da contemporaneidade, “a transformação da vida num processo mecânico e de consumo”, como define. “As pessoas estão sempre sendo expostas a modelos de vida que são irreais, impraticáveis. Com isso, acabam mais tristes e se comprando mais.”

 

 

Subjetividades a partir das redes sociais

Um dos problemas no comportamento que leva à positividade tóxica está na mensagem de que tudo pode ser resolvido com "boas vibrações" e "pensamento positivo". “Esse discurso se torna problemático porque vem, em geral, de pessoas cujo estilo de vida e status social são almejados e inacessíveis para boa parte da sua audiência”, afirma Georgia Cruz, pesquisadora do Laboratório de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia (LabGrim) na Universidade Federal do Ceará (UFC).

“Os influenciadores editam pedaços de suas vidas com a finalidade de contar uma narrativa, e muitos seguidores acham que aquela é a totalidade da história. As pessoas acabam acreditando que se 'vibrarem' da maneira correta, como a mensagem consumida leva a crer, elas vão 'chegar lá'”, lembra a pesquisadora. Segundo ela, é possível pensar em uma série de implicações e impactos para esse discurso, desde a compra excessiva como a solução para problemas. “Estamos na moda dos cursos para tudo”, cita ela  — até tratamentos de saúde sem qualquer validade científica.

ilustração 3 - Exposição de vidas inalcançáveis pelas redes sociais é uma fontes de frustração interna (Foto: Getty Images)
Foto: Getty Images ilustração 3 - Exposição de vidas inalcançáveis pelas redes sociais é uma fontes de frustração interna

Rochelly Holanda, psicóloga e pesquisadora sobre autoritarismo e preconceito em plataformas digitais, diz que a questão está para além de pessoas específicas. “As redes sociais e plataformas digitais estão cotidianamente conosco, e isso impacta diretamente nossa forma de se relacionar com os outros, com o mundo e a constituição subjetiva dos indivíduos”, aponta, lembrando que acessar as notificações do celular é provavelmente a primeira ação do dia da maioria das pessoas.

Para ela, “a positividade tóxica pode ser considerada um dos efeitos dessa exposição desmedida, desse acesso à vida dos outros e como esse outro deseja ser visto”. “A visibilidade constante dos recortes da vida dos sujeitos tende a ter um impacto além da simples mensagem veiculada. Vem a questão sobre qual conteúdo tem maior alcance na rede, o que subtende-se que as pessoas querem ver”, afirma.

ilustração 1 - Positividade tóxica: quando o otimismo se torna uma obrigação(Foto: Getty Images)
Foto: Getty Images ilustração 1 - Positividade tóxica: quando o otimismo se torna uma obrigação

Um outro ponto é a “carga moralizante e alienante” trazida pelos discursos da positividade tóxica. “Os indivíduos são levados a crer que os problemas enfrentados são apenas de sua inteira responsabilidade. Se pego problemas de natureza social e econômica, como a pobreza ou o desemprego, e digo que a pessoa está passando por aquela situação porque ela não está com o 'mindset' da riqueza, isso gera uma alienação”, expõe Georgia. ”O sujeito se convence de que o problema é só dele, que ele é quem deveria resolver essa questão sozinho. Como sociedade, isso tem um impacto ainda mais significativo.”

Ainda assim, as pesquisadoras argumentam que as redes sociais podem ser espaços para a construção de relações saudáveis. “Tudo depende do uso que se faz e do estabelecimento de relações pautadas em empatia e ética. É preciso atuar ativamente para a construção de comunidade, em que haja um senso de respeito e de visão dos outros como indivíduos, além de regulações mais claras para o uso dos meios”, defende Georgia. “As redes promovem conexão, mas também podem ser aprisionamento, e o que fica é a necessidade de expandir conhecimento para entender melhor os impactos na sociabilidade humana”, completa Rochelly.

 

 

Afinar os instrumentos de uma orquestra interna

 

A psicóloga e psicanalista Beatriz Breves estuda os sentimentos há mais de 30 anos. Em um de seus livros publicados, “O Eu sensível”, propõe uma experiência de reflexão e de reconexão com os sentimentos.

Beatriz Breves é psicóloga e psicanalista. É presidente, membro efetivo e fundadora da Sociedade da Ciência do Sentir (SoCiS).(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Beatriz Breves é psicóloga e psicanalista. É presidente, membro efetivo e fundadora da Sociedade da Ciência do Sentir (SoCiS).

O POVO - Como podemos definir o que é positividade tóxica?
Beatriz Breves - Para isso precisamos falar da nossa relação com sentimento. Não existem sentimentos negativos ou sentimentos positivos. O que existem são sentimentos prazerosos e não prazerosos e a forma como você vai lidar com esses sentimentos. A positividade tóxica é justamente negar ou não suportar os sentimentos não prazerosos, que trazem alguma dor. A pessoa vive como em um comercial de felicidade, negando a realidade, fugindo de si. O que pode aumentar esse sentimento e se somatizar em sintomas físicos até.

OP - De onde vem essa negação?
Beatriz - Não aprendemos a lidar com os sentimentos. Desde crianças, há um processo de repressão deles: “Chorar é para os fracos”, “Sentir raiva é feio”, “Inveja? Eu não tenho esse sentimento”, “Sentir medo é para covardes”, e tantas outras coisas que são ditas. A gente tem que aprender a reconhecê-los e nomeá-los. Se te pedir para nomear os sentimentos existentes, você vai conseguir dizer cinco ou dez, mas só de jogar no Google é possível encontrar centenas. A gente tem uma orquestra dentro da gente.

 

"Afinar os instrumentos dessa orquestra interna e compreender que vários sentimentos, mesmo aqueles aparentemente contraditórios entre si coexistem nas situações e sobre o que vivemos, com quem vivemos." Beatriz Breves, psicóloga e psicanalista

 

OP - Então, como lidar com a positividade tóxica?
Beatriz - É preciso parar de olhar os sentimentos de fora para dentro e olhar de dentro para fora. Isso muda bastante a visão sobre eles. Afinar os instrumentos dessa orquestra interna e compreender que vários sentimentos, mesmo aqueles aparentemente contraditórios entre si, coexistem nas situações e sobre o que vivemos, com quem vivemos.

OP - O que não é uma tarefa simples...
Beatriz - É um exercício diário de se conectar, um aprendizado. Parar ao fim do dia e lembrar como ele foi, não só sobre as ações, mas também sobre o que sentiu. Você começa a se conhecer melhor.

 

 

Psicologia positiva X positividade tóxica

 

A psicologia positiva foi popularizada por Martin Seligman, psicólogo estadunidense que ao fim da década de 1990 propôs uma mudança no olhar da Psicologia. Contrapondo o foco histórico nas patologias e distúrbios, esse movimento propõe especial atenção às potencialidades e virtudes humanas. Quem segue essa linha busca explicações e formas de lidar com o bem-estar, a felicidade e outros aspectos positivos da mesma forma como foram encontrados entendimentos e protocolos para os sofrimentos psíquicos.

ilustração 4 - Vida mental saudável requer compreensão dos sentimentos (Foto: Getty Images)
Foto: Getty Images ilustração 4 - Vida mental saudável requer compreensão dos sentimentos

O movimento entende que propósito da vida é o bem-estar. Para isso, seria necessário praticar virtudes e estar alinhado a emoções positivas, engajar-se em atividades instigantes e prazerosas, valorizar relacionamentos interpessoais, ter propósito de vida e alcançar realizações. "A psicologia positiva sugere lidar com as emoções negativas para potencializar uma nova perspectiva com relação a elas na busca pelo bem-estar", aponta a psicóloga Joana Cruz, que trabalha com essa abordagem.

Entretanto, uma interpretação enviesada pode dar a entender que é possível ficar bem e feliz apenas por ter os pensamentos certos, abrindo caminhos para a positividade tóxica. A psicologia positiva cresceu exponencialmente (não só entre pesquisadores e público, mas também em mercado) desde que Seligman a elaborou. "Todos querem saber da 'psicologia da felicidade', como alguns passaram a elaborar. Mas esse não é o foco da nossa visão. O bem-estar é complexo e precisamos olhar para o eu como um todo", enfatiza Joana, lembrando do grande mercado que vem faturando com diversos títulos "pretensamente baseados na psicologia positiva".

 

 

Humor

 

Incomodada com a forma de influenciadores digitais apresentarem a vida a seus seguidores, a atriz Maria Bopp criou a personagem "Blogueirinha do Fim do Mundo". Com ela, a atriz faz uma crítica irônica e bem-humorada a diversos aspectos evidenciados nas redes sociais, incluindo a positividade tóxica. Os vídeos são publicados desde 2020 no Instagram @mariabopp

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