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Estelionato afetivo: além de perdas materiais, o impacto emocional
Reportagem Especial

Estelionato afetivo: além de perdas materiais, o impacto emocional

Com maior uso das redes sociais e vulnerabilidade emocional trazida pela pandemia são cenário para aumento dos chamados "golpe do Don Juan"

Estelionato afetivo: além de perdas materiais, o impacto emocional

Com maior uso das redes sociais e vulnerabilidade emocional trazida pela pandemia são cenário para aumento dos chamados "golpe do Don Juan"
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Uma pessoa, geralmente um homem, muito educada, gentil e amorosa se aproxima de outra, geralmente uma mulher, que está vulnerável ou em busca de relacionamento. Com o tempo, a troca de presentes entre o casal depende de que a mulher pague uma taxa alta para liberação e o presente não chega. Depois, o homem precisa pagar uma conta, mas está sem dinheiro; então, ela paga. Em seguida, um empréstimo precisa ser feito ou valores mais altos precisam ser pagos até que o homem vai embora e a mulher fica sem saber dele, com uma grande dívida para arcar. Esse é o enredo geral de um estelionato afetivo, também conhecido como "golpe do amor" ou "golpe do Don Juan".

“Toda relação afetiva se estabelece com base na confiança, na lealdade, na boa-fé. Quando um deles usa o amor do outro de forma proposital para obter vantagem financeira, dando um golpe, a gente conhece como estelionato afetivo”, explica a defensora pública Jeritza Lopes, supervisora do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Ceará.

interna Estelionato Afetivo 2(Foto: GETTY IMAGES)
Foto: GETTY IMAGES interna Estelionato Afetivo 2

A expressão apareceu pela primeira vez em decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal de 2015. No caso em questão, a vítima alegava ter contraído dívida de R$ 101,5 mil para ajudar o companheiro. Desde 2019, tramita no Congresso projeto de lei que pede a inclusão do termo estelionato sentimental na lei, com aumento de pena de um a dois terços em relação ao estelionato simples, que determina prisão de um a cinco anos.

“Muito embora seja possível que homens ocupem o espaço de vítimas, a grande maioria dos alvos são mulheres”, aponta Ana Katrine de Moraes, advogada e diretora de projetos na Associação Marta, que atua na prevenção e conscientização da violência contra as mulheres. “Essa realidade perpassa uma questão cultural relacionada à figura feminina, que coloca a mulher em situação de diminuição em relação ao homem”, analisa.

"Quando os contatos são cada vez mais online, se torna mais fácil que o golpista crie uma identidade falsa e estude o perfil dessas mulheres, sabendo exatamente como agradá-las." Jeritza Lopes, defensora pública

Com as redes sociais e os aplicativos de relacionamento, a troca de informações ficou ainda mais facilitada. “As informações pessoais são divulgadas indiscriminadamente pelos próprios usuários e essa autoexposição acaba por atrair pessoas de má-fé e sem boas intenções, como é o caso dos estelionatários”, pondera Ana Katrine.

É o que indica também Jeritza, observando que os casos aumentaram durante a pandemia de Covid-19. “Quando os contatos são cada vez mais online, se torna mais fácil que o golpista crie uma identidade falsa e estude o perfil dessas mulheres, sabendo exatamente como agradá-las”, explica a defensora.

interna Estelionato Afetivo 1(Foto: GETTY IMAGES)
Foto: GETTY IMAGES interna Estelionato Afetivo 1

Para Úrsula Goes, psicóloga da Defensoria Pública do Ceará, os impactos emocionais da pandemia também contribuem para esse aumento. “Eles se aproveitam da vulnerabilidade e da carência”, identifica. “Nós buscamos parceiros que tenham interesses, hábitos e objetivos em comum. No início ele vai se mostrar como alguém que atende perfeitamente às necessidades do par, que corresponde aos seus ideais”, expõe.

Por sua experiência atendendo mulheres vítimas de situações parecidas, Úrsula chama a atenção para a manipulação emocional, que “é sutil e lenta”. “Ao mesmo tempo que ele preenche as necessidades dela, faz ela sentir que preenche as dele. Começa a afastá-la dos amigos e família. Ficam numa aparentemente interdependência”, detalha. “Quando ele precisa de ajuda, ela se sente obrigada, Se ele é tão especial, como é que ela não vai atender àquelas demandas? Vai correr o risco de perdê-lo? Isso vai instaurando medo da perda, insegurança e culpa", analisa, apontando que a violência moral e psicológica está conectada ao estelionato afetivo.

“A maioria das vítimas fica muito envolvida e tem dificuldade de perceber o que está acontecendo. Quando percebem, ficam envergonhadas ou com medo. Tanto a vida material quanto a emocional caem”, descreve Úrsula . Depressão, síndrome do pânico, descrença no amor são alguns dos outros impactos psicológicos mais percebidos. “O caminho, por mais difícil que seja, é contar para pessoas próximas e buscar o auxílio judicial e psicológico.”

O que fazer

Entrevistados pelo O POVO dão dicas básicas sobre relacionamentos que se iniciam nas redes sociais e sinais de alerta para o estelionato afetivo

 Vá para além do virtual |  Conheça a pessoa fora das redes sociais. Conforme a proximidade aumente, sugira formas de se ver pessoalmente, conhecer amigos, familiares, hábitos, local de trabalho, etc. No início de um relacionamento, você está trazendo para sua vida uma pessoa desconhecida. É importante saber e confirmar o máximo de informações possível;

 Tenha cuidado nas redes sociais |  Tudo o que você posta pode ser visto por muitas pessoas; ao mesmo tempo, nesse ambiente é mais fácil para as pessoas darem informações falsas;

 Ligue o sinal de alerta |  Desconfie de quem parece perfeito e completamente alinhado aos seus desejos. Questione se pedir algum tipo de pagamento de taxa ou outro investimento financeiro para receber presente dado por ele. Fique atenta caso peça dinheiro para pagamentos constantes;

 Reúna provas e testemunhas |  Procure manter nas mensagens trocadas ou em e-mails os pedidos de ajuda financeira, bem como os comprovantes das transações. Comente com amigos e familiares que está em uma relação, os pedidos que são feitos e as situações pelas quais está passando como casal;

 Lembre-se, existe uma rede de apoio |  Você não esta sozinha. Existem outras pessoas em situações parecidas, bem como órgãos públicos e associações disponíveis para orientação jurídica e psicológica.

 

 

O que acontece depois da denúncia

Além de ter recente reconhecimento no Judiciário, o estelionato afetivo é um crime que geralmente passa a ser investigado depois que o “Don Juan” tenha conseguido tudo o que queria e tenha ido embora. “Esse crime não é tão frequente com relação a chegar até a delegacia. A gente acredita que há uma subnotificação desses casos, porque muitas vezes as vítimas ficam envergonhadas e acabam não falando para a família, levando à delegacia ou publicizando”, explica Carlos Teófilo, delegado adjunto da Delegacia de Defraudações e Falsificações (DDF) de Fortaleza.

Teófilo cita como exemplo o caso recente de um estelionatário afetivo preso na Capital se passando por analista da Receita Federal. “Recebemos informação da polícia de outros estados e nosso trabalho foi de localizar a nova vítima, porque esses golpistas vivem às custas delas e sempre têm alguma. Entramos em contato com ela para mostrar que ele é estelionatário, que já aplicou esse tipo de golpe”, relata. “Ela percebeu que estava sendo vítima, fomos até a casa e, como ele ainda estava cometendo o crime, prendemos em flagrante”, detalha.

interna Estelionato Afetivo 3(Foto: GETTY IMAGES)
Foto: GETTY IMAGES interna Estelionato Afetivo 3

Entretanto, a prisão em flagrante é um desfecho raro. “Quando a vítima tem os dados do golpista a gente instaura inquérito, pede a prisão preventiva e segue em investigações”, conta o delegado. A situação é mais complicada quando a relação acontece somente online e, assim, aumenta a possibilidade de que os dados e imagens que a vítima consegue fornecer sejam falsos. Nesses casos, é possível requerer a quebra de sigilo das informações do usuário nas redes sociais e seguir com as buscas.

"Esse é um dos crimes mais gravosos para as vítimas, porque além da perda patrimonial, há um dano psicológico e moral muito grande." Carlos Teófilo, delegado da Delegacia de Defraudações de Fortaleza

Mais que a responsabilização e punição do “Don Juan”, podem ser iniciadas ações por danos materiais e morais a fim de recuperar os bens e valores dados pela vítima ludibriada. “Esse é um dos crimes mais gravosos para as vítimas, porque além da perda patrimonial, há um dano psicológico e moral muito grande”, observa Teófilo.

Para ele, a pena prevista para o estelionatário, que inclui reclusão de um a cinco anos e multa, “é muito pequena”. “Por isso, a importância de se investigar se há outros crimes nessas ações dele, como falsa identidade, falsificação e falsidade ideológica, além da violência doméstica”, aponta.

 

 

“Ele manipulou as coisas de modo a tomar tudo o que eu tinha”

Era 2012 quando uma estilista e arquiteta, cujo nome será preservado nesta reportagem, iniciou sua amizade com um estrangeiro. Mostrando-se amoroso e bastante apaixonado, o homem viajou ao Brasil para visitá-la e iniciaram o namoro. “Parecia a companhia perfeita para que eu saísse daquela situação emocional”, relata. Passado pouco mais de um ano de relacionamento, o namorado começou a manifestar seu interesse em morar no País para se casar com ela e ajudá-la em seus negócios.

Casados em 2014, passaram a viver juntos em Fortaleza e, a partir daí, as coisas mudaram. Ela conta que o marido mudou de atitude logo que se tornou sócio de suas empresas, passando a controlar seus bens e sua liberdade, afastando-a dos amigos e da família.

"Enfim, ele manipulou as coisas de modo a tomar tudo o que eu tinha. Ele fez uso do que eu tinha, trocando por investimentos que ele fazia em bancos." Vítima de estelionato emocional ao narrar o duro golpe que sofreu do ex-marido

“Ele tinha posse de tudo que eu tinha. Ele fez empréstimos bancários, fazia contas e pegava meus documentos, me levava e me obrigava a assinar, quando era necessário minha assinatura”, conta. “Enfim, ele manipulou as coisas de modo a tomar tudo o que eu tinha. Ele fez uso do que eu tinha, trocando por investimentos que ele fazia em bancos, pegou dinheiro em troca dos objetos… Foi tudo usado por ele para se apoderar dos valores financeiros.”

Após alguns meses em situação de cárcere privado, ela conseguiu se libertar e pedir ajuda. Sofrendo de um grave trauma psicológico e emocional, passou um tempo com sua família, em Recife, enquanto o companheiro continuava seus negócios.

“Até conseguir me libertar disso foi preciso muito tempo e muito tratamento. Esta situação ainda mexe muito comigo”, relata emocionada. “Depois de um ano que eu fugi de casa, consegui dar entrada nos processos para reaver meus bens, obter o divórcio… Eu tinha medo dele, fiquei sem nada, sem dinheiro, sem emprego, sem o contato com as pessoas que eu conhecia. Tinha vergonha das pessoas, tudo foi muito difícil.”

Ela explica que moveu seis processos jurídicos contra o ex-companheiro, viabilizados depois de receber orientação no Nudem da Defensoria Pública. Até o momento, teve êxito apenas no processo de divórcio, mas entre as ações na Justiça requereu ação por danos morais, queixas por crime de violência doméstica e um processo para dissolução da sociedade. Com dívidas acumuladas no seu nome, ela ainda luta para reaver bens e responsabilizar o ex-marido.

  • Edição Érico Firmo e Regina Ribeiro
  • Identidade visual Isac Bernardo
  • Recursos digitais Wanderson Trintade
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