Do alto da escadaria de acesso ao antigo Farol do Mucuripe é possível observar os contrastes da região do Serviluz. De um lado, as belezas da faixa de terra que representa uma das extremidades da Capital, fazendo um belo encontro com as águas do Atlântico.
Antes e depois do desmoronamento:
Por outro lado, a realidade das grandes capitais brasileiras também se faz presente com a urbanização desordenada, acarretando em regiões que carecem de infraestrutura básica e em muitas coisas são esquecidas pelas políticas públicas.
"Eu cheguei aqui no Serviluz no dia 10 de novembro de 1963, já vi esse Farol aqui lindo. Agora, sinceramente, está bem decadente."
Naquela esquina geográfica da cidade está localizado o antigo Farol do Mucuripe, que não foge ao retrato da região em que está localizado. Carregando beleza e imponência históricas do século XIX, o monumento possui marcas palpáveis de abandono. Com o último processo de restauração realizado em 1982, o local está deteriorado. A ferrugem consome a escadaria em espiral centralizada no monumento, a tinta já não cobre parte da estrutura de concreto, que possui diversas pichações.
Nesta terça-feira, 20, num dramático sinal da degradação, a cúpula, onde ficava a lanterna que iluminava a enseada do Mucuripe, desabou. A Defesa Civil esteve no local na tarde desta terça e isolou a área. Não houve feridos.
A decadência do símbolo, entretanto, machuca quem conhece a história. "Eu cheguei aqui no Serviluz no dia 10 de novembro de 1963, já vi esse Farol aqui lindo. Agora, sinceramente, está bem decadente, muito acabado", relata Iradice Duarte, 73, ao observar a atual situação da estrutura. Iradice chegou ao bairro cinco anos após o equipamento ser desativado, em 1958, por ter se tornado obsoleto.
Dona Iradice, que acompanhou de perto o processo de deterioração do Farol nos últimos, ainda enxerga potencial na estrutura. "Se fizessem uma reforma nele ficaria bonito, porque aí não tem mais nada de beleza, ele está só em pé mesmo. Se reformar, fica outra coisa, pode até atrair os turistas", afirma.
Mesmo sem uso prático atualmente, o local possui grande valor histórico. Em 1983, tornou-se um dos patrimônios históricos tombados pelo Estado do Ceará. Apesar da situação crítica de abandono, o antigo farol já conseguiu "sobreviver" a outras situações adversas no início de sua história.
Com a planta aprovada em 1826, o prédio foi edificado entre 1840 e 1846. Atingido por incêndio, passou por reforma de recuperação em 1871.
Celebrado na música e na poesia cearenses, o Farol Velho é uma das mais antigas estruturas da Cidade a guardar características originais, e um dos mais emblemáticos símbolos da Cidade. Em seus alicerces estariam vestígios de estrutura ainda mais antiga, um raro resquício do século XVIII.
A relevância histórica do desgastado monumento vem antes mesmo do início da sua construção. Acredita-se que o antigo Farol do Mucuripe foi executado sobre a estrutura do Forte de São Luís. Em 2016, o professor aposentado da Universidade Federal do Ceará (UFC) e renomado arquiteto, Liberal de Castro, situou a historicidade do Farol.
"O Farol do Mucuripe é uma adaptação do pequeno forte de São Luís a novas e distintas funções, propostas em 1846. De planta octogonal, o forte foi erguido, ao que tudo indica, por Luiz da Motta Féo e Torres, o último capitão-mor da Capitania, ainda subalterna durante sua administração, ocorrida entre 1790 e 1799" (Em BEZERRA, José Ramiro Teles. Aquarelas e Desenhos do Ceará Oitocentista. O trabalho de José dos Reis Carvalho na Comissão Científica de Exploração [1859-1861]. Iphan, 2016).
O arquiteto também relatou que o espaço recebeu mais um pavimento, o que tornou possível a elevação do nível de instalação do equipamento de iluminação, a intervenção proporcionou o aumento dos raios de luz do farol.
As observações de Liberal de Castro casam com os relatos trazidos pelo Coronel Aníbal Barreto, autor do livro "Fortificações do Brasil: Resumo Histórico", de 1958. Segundo a publicação, um forte construído em 1799, na capital cearense, estava localizado "na ponta de Mucuripe, defendendo a enseada e porto de mesmo nome".
O autor relata, ainda, que dos oito ângulos que formavam o forte octagonal, cinco estavam voltados para o mar e possuíam canhoneiras. Já os três ângulos voltados para o território, abrigavam o quartel da tropa.
No local, atualmente, já não resta nada que faça lembrar da existência do antigo Forte. Caso nada seja feito, o Farol, que ainda resiste, está fadado a ser a próxima vítima do tempo.
"Bem vindo ao abandono" foi a frase deixada na entrada principal do Farol após a intervenção artística realizada, no mês de junho, pela Comissão Titan. As letras brancas ganham destaque no fundo preto que, segundo a comissão, representa o luto pelo abandono da estrutura.
Criado em 2019, o grupo é formado por moradores e apoiadores com intuito de lutar contra projetos de remoção no Titanzinho. Na intervenção realizada no Farol, a comissão também deixou o seu pedido nas paredes da velha estrutura, "Restauração Já".
Uma das lideranças do movimento, Kátia Lima, que trabalha como guarda-vidas, vive há 45 anos na região do Farol. Ela relata que a luta por melhorias faz parte da vida dos moradores do Serviluz.
"A nossa luta está sendo árdua, existe um descaso muito grande com as comunidades, e não seria diferente com o Cais do Porto/Titanzinho, que tem nas suas raízes a pesca, o jangadeiro e os moradores antigos desde a praia mansa".
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Sobre a situação de abandono do Farol, Kátia Lima destaca que a comissão de moradores faz o que pode, mas, sem a colaboração do poder público, a situação seguirá piorando.
"Sempre tentamos manter o local limpo, mas sabemos que não podemos fazer isso sozinhos. As intervenções servem de apelo, para que o Poder Público nos enxergue e abrace a causa. O patrimônio está abandonado, desde 82 não temos reformas".
A ativista anseia que o local não seja apenas revitalizado, mas que também sirva, futuramente, de ponto de engajamento comunitário com possíveis oportunidades de trabalho.
"Espero que a comunidade esteja participativa nas obras. Temos pessoas capacitadas para participar da revitalização, mas também para trabalhar em um possível museu ou em um restaurante. Que não seja um local só para o turismo. Não faria sentido revitalizar o Farol e excluir a comunidade", destaca.
O guia de turismo cultural e idealizador da página Acervo Mucuripe, Diêgo di Paula, reserva parte de seu tempo para pesquisar sobre a região em que se encontra o Farol. Ele acredita que o processo de revitalização encontra dificuldades por envolver moradias na região.
"O projeto de restauro do Farol inclui, na essência, um projeto de remoção. Porque ninguém consegue fazer um projeto de restauro dissociado disso, infelizmente, essa é a realidade, por isso que ele está ali se esfarelando", relata.
Além da importância do monumento construído, o pesquisador destaca a relevância de toda a área que engloba a edificação. "Temos no entorno do Farol um sítio arqueológico, que registra, possivelmente, a presença de um forte, que é o Forte de São Luís, ou seja, tem muita história para contar. Além da escadaria, que também veio de fora", conta.
A relação da comunidade com o espaço e a tentativa de preservá-lo não vem de agora. Em maio de 2017, foi realizado o Sarau Farol Rock, que levou audiovisual, música e artes cênicas para o local, na tentativa de chamar atenção para o espaço e reivindicar revitalização.
A situação deplorável do Farol não é uma novidade. O descaso do Poder Público com a estrutura já possui, pelo menos, uma década. Vistoria realizada em 2011, pela Coordenadoria do Patrimônio Artístico, Histórico e Cultural (Copahc), da Secretaria da Cultura do Estado (Secult), já alertava para a "situação precária de conservação".
O relatório da visita técnica apontava que as avarias da estrutura poderiam comprometer, inclusive, a estabilidade do prédio, caso nenhuma providência fosse tomada no intuito de conter o "progressivo processo de deterioração". Ferrugem, fissuras abertas e infiltrações nas paredes, muralhas e escadarias do entorno em ruínas foram alguns dos pontos destacados no relatório de 2011.
Dez anos depois, a situação segue sem solução. No início deste mês de julho, a restauração do antigo Farol do Mucuripe foi cobrada pelo Ministério Público do Ceará (MPCE) por meio de uma audiência. Representantes da Secretaria de Turismo do Estado (Setur) e da Secult estiveram presentes.
Em entrevista ao O POVO, a promotora de Justiça Ann Celly Sampaio comentou o caso. O MPCE propôs que um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) fosse acordado como um compromisso de revitalização do local, a proposta foi aceita pelos órgãos estaduais.
"Eles falaram que o Farol estava em posse da União, que eles requereram a retomada de posse do Farol, e que foi retomada no ano passado. Disseram que estavam fazendo um projeto para restauração do Farol", explica a promotora.
Ainda na audiência, Sampaio relatou que o MPCE cobrou prazos para a finalização do projeto de restauro, além de questionar quanto tempo levaria para a conclusão da obra. Devido à constante presença de vândalos, que degradam o monumento tombado, o MPCE também solicita que o local seja protegido por segurança armada.
"É preciso identificar a área que atende àquele tombamento. Percebemos que existem muitas moradias no entorno, é preciso saber qual a área tombada."
Foi dado prazo de 30 dias para que os órgãos estaduais enviem a documentação necessária para consolidação do TAC, além de definirem como será o processo de segurança do local. Segundo a promotora, o decreto que determinou o tombamento não é de fácil localização nas plataformas dos órgãos públicos, Sampaio explica a importância de ter o documento antes de iniciar o processo de restauro.
"É preciso identificar a área que atende àquele tombamento. Percebemos que existem muitas moradias no entorno, é preciso saber qual a área tombada, porque, se essa área atingir esses locais, eles terão que encontrar moradias sociais para essas pessoas".
A assessoria de comunicação da Secult informou que a Setur é a responsável pelo projeto de restauro do Farol, e que demandas sobre a reforma do monumento deveriam ser tratadas com a Secretaria de Turismo.
A Setur afirma que o Farol pertencia a União, e que é de interesse da Secretaria e do Governo do Estado a requalificação do monumento. De acordo com a Setur, atualmente, o projeto de restauro do Farol e do seu entorno está em fase de elaboração.
Em nota, a Secretaria afirma que "antes de saber do procedimento do MP, a Setur já tinha pedido a cessão do equipamento da União". O comunicado destaca, ainda, a importância histórica do monumento para a cidade.
Sobre o desabamento de terça, a Setur informou que somente depois do diagnóstico da Defesa Civil poderá tomar medidas a respeito, em parceira com órgãos como a Superintendência de Obras Públicas (SOP) e a Casa Civil do Estado, dando continuidade ao projeto da licitação da obra. A secretaria elabora um projeto arquitetônico, com a finalidade de requalificar o farol e seu entorno. O documento deve ser apresentado dentro de dois meses. Se for aprovado e houver recursos destinados, as obras serão iniciadas.
O "Farol Velho" iluminou a enseada do Mucuripe até 1958, quando o "Farol Novo" assumiu a missão de olho do mar. Em 2017, o "novo" foi aposentado e entrou em operação a nova estrutura, vizinha a ele, com 71,1 metros de altura.
O novíssimo Farol do Mucuripe é considerado o maior das Américas.
Colaborou Gabriela Almeida, especial para O POVO