Há quem ainda mantenha ovos e leites no cardápio. Alguns somente comem alimentos de origem vegetal. Outros foram um passo adiante e aboliram quaisquer itens, de vestuário a cosméticos, que envolvam, em alguma medida, o sofrimento animal em suas respectivas cadeias produtivas.
Em seu conjunto, ovolactovegetarianos, vegetarianos estritos e veganos correspondem a nada menos que 9,5 milhões de nordestinos (17% da população total). No Brasil, esse número é de 29,4 milhões de consumidores (14% da população total).
Mesmo entre aqueles que consomem carne regularmente, segundo último levantamento do Ibope Inteligência, encomendado pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) antes da pandemia, há uma predisposição crescente em introduzir mais produtos veganos no carrinho de compras.
Por exemplo, 60% dos nordestinos afirmam que comprariam mais itens do tipo caso os preços fossem mais baratos e outros 58% se a especificação da origem vegana do produto estivesse mais bem indicada nas embalagens.
Números tão expressivos não passaram despercebidos pelas grandes empresas, que têm buscado mais oferecer produtos com certificação vegana. Mesmo as que ainda não contam com itens veganos têm investido, ao menos, em ampliar o leque de opções para o público vegetariano.
Esse potencial econômico tem sido também uma motivação adicional aos que fazem de seus pequenos empreendimentos um meio de conciliar geração de renda, realização profissional e a luta por uma causa.
Para Ricardo Laurino, presidente da SVB, há uma série de razões envolvidas no crescimento do veganismo e, consequentemente, do mercado que dele se origina.
“A característica principal do veganismo é a questão animal, então a gente vem, ao longo das últimas décadas, tendo um avanço na questão relacionada à nossa postura diante deles. Cada vez mais, a gente se aprofunda no conhecimento das outras espécies e começa a perceber a proximidade que elas têm de nós, no que tange à possibilidade de sofrer e de se relacionar”, pondera.
Laurino acrescenta que outro ponto por trás do crescimento da ‘economia vegana’ é a percepção das pessoas sobre os impactos ambientais e até sanitários, envolvidos na produção de alimentos de origem animal.
“Nesse sentido, o Selo Vegano, por exemplo, facilita a escolha do consumidor. Todo mundo lá no fundo tem a ideia do veganismo em sua matriz, porque ninguém gosta de imaginar que os animais são explorados e mortos. Quando você entra num supermercado e identifica essa certificação, isso estimula que, mesmo quem não é vegano, tome a atitude de comprá-lo”, avalia.
Falando em supermercado, até por aspectos ligados à percepção ética sobre o mundo, muitos empreendedores veganos têm preferido expor seus produtos fora das grandes redes empresariais e levá-las a feiras, reduzindo o número de atravessadores e mantendo uma relação de maior proximidade com o consumidor final e com todos que integram a cadeia econômica.
Para Silvania de Deus, idealizadora e organizadora da Feira Orgânica da Praia, a intenção de levar alimentos mais saudáveis para todos foi decisiva para que, gradativamente, o número de expositores veganos crescesse.
Desde que o decreto estadual liberou a realização das feiras livres, após a melhoria nos indicadores da pandemia, ela vem sendo realizada todos os sábados pela manhã, na Praia de Iracema.
“Nossa curadoria, além de buscar quem produza hortifrútis orgânicos, também acaba selecionando outras marcas que têm dificuldades de escoar sua produção, incluindo os veganos. Hoje, eles já são 60% dos nossos expositores e essa visão da saúde é um ponto em comum entre esses produtores e a nossa feira. Por isso, ela está cada vez mais vegana”, explica.
Aspectos ligados à busca por uma vida mais saudável, a propósito, além de questões culturais também fazem parte da equação que ajuda a explicar o crescimento da ‘economia vegana’.
Embora o senso comum, tenda a enxergar essa como uma tendência ligada aos mais jovens, às mulheres e às pessoas que vivem em grandes cidades, são na realidade as pessoas com mais de 55 anos, do sexo masculino e que habitam municípios com menos de 50 mil habitantes os grupos populacionais que mais se identificam com hábitos vegetarianos, por exemplo.
“A alimentação do nordestino, em particular, é muito ligada a produtos de origem vegetal. Nos municípios menores, muitas vezes a pessoa nem tem uma atitude necessariamente consciente de que vai manter uma dieta vegetariana, mas percebe no dia a dia que já acabou fazendo essa escolha. Entre os idosos, a questão da saúde é a mais forte e, entre os homens, é possível que a opção também tenha relação com isso, já que eles são mais acometidos por alguns tipos de doença que elas”, analisa o presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira.
Karla Kizzy Oliveira, de 42 anos, começou a se apaixonar pela cozinha ainda na infância ao ajudar os pais que precisavam trabalhar muito para manter as contas em dia. Dos nove anos de idade para cá, ela continuou conciliando o gosto pela culinária, inicialmente com os estudos e depois com a atividade de cabeleireira.
Nesse meio tempo, descobriu o veganismo no fim da adolescência e mais recentemente se aprofundou nos estudos sobre o feminismo.
" Então, eu uni tanto a ética do veganismo quanto a do feminismo. Dessa nova perspectiva, contando com o incentivo de amigos, resolvi mudar de atividade e empreender. Comecei vendendo bolos, estilo aqueles que se come tomando café, mas sempre com alguma calda de frutas. Daí, nasceu a Karlota Delícias Artesanais"
Além dos bolos, que segue fazendo desde que começou o negócio em 2018, os pães veganos com recheios diversos também se destacam na produção de Karla. Outras apostas dela têm sido a pegada regional de seus produtos e a adoção de uma precificação acessível a quem tem menos poder aquisitivo, ajudando a desmistificar a ideia de que veganismo é somente para quem tem alta renda.
A empreendedora também participa de feiras, sempre que possível. No último dia 17, por exemplo, a Karlota Delícias Artesanais se expôs na tradicional Feira Agroecológica do Benfica.
Certas palavras costumam estar muito associadas às dietas com base em produtos de origem animal, mas os criadores do Le Gumis, o casal Robinson e Ana Paula Garbes viram nelas uma oportunidade de atender ao público vegano, ao mesmo tempo em que possibilitam novas experiências gastronômicas aos que não o são.
Surgido em 2017, logo o empreendimento adotou o conceito de ‘açougue’ vegano que era, praticamente desconhecido do público cearense, mas já estava em alta na Europa e em algumas cidades do Sudeste.
Conhecedores dessa tendência, a família Garbes trouxe a experiência de Santos, no litoral paulista, para Fortaleza. Hoje, o Le Gumis ampliou o escopo de suas atividades e é também mercearia, lanchonete e restaurante.
“A gente via a nossa própria dificuldade de iniciar no veganismo. Um simples jantar, naquela época, exigia que o vegano praticamente tivesse de se tornar cozinheiro. Não tinha nada prático para ele consumir e a gente pensou nisso, principalmente: ‘vamos facilitar a vida de quem está começando’. Daí, surgiram os bifinhos, os filés, os hambúrgueres, as almôndegas, tudo pronto e congelado para que os veganos pudessem levar para casa e preparar refeições rápidas”, conta Robinson.
Depois, os próprios clientes do Le Gumis foram pedindo novos itens e demandar também por refeições para serem consumidas no local, especialmente o almoço, uma das grandes dificuldades para veganos em horário de expediente de trabalho. “Já no carnaval de 2018, criamos a feijoada, inicialmente para ser servida aos sábados, depois também aos domingos”, relembra.
Robinson relata, por fim, que notou um crescimento exponencial na economia vegana. “Creio que praticamente triplicou em Fortaleza nesse período. Nós mesmos, que quando abrimos um almoço tínhamos um prato por dia, hoje oferecemos três opções diárias”, exemplifica.
Embora, de fato, 98% dos animais explorados com fins comerciais estejam associados à indústria alimentícia, muitas outras cadeias produtivas, tais como a dos cosméticos têm utilizado historicamente algum tipo de prática envolvendo bichos.
A principal e mais polêmica delas, no caso desses produtos de beleza, é a testagem em animais e esse aspecto não passou despercebido pelas sócias Maria Clara Rodrigues e Mikaely Barreto, que juntas fundaram, em novembro do ano passado, a Florear, especializada em cosméticos veganos, mas com portfólio diversificado.
“A Florear surgiu primeiro dentro de nós mesmas, dos nossos anseios e das coisas que gostaríamos de mudar no mundo. Eu e a Mikaely nos conhecemos no Ensino Médio e sempre compartilhamos o interesse em questões ambientais e sobre os animais. Depois que concluí essa etapa escolar, eu passei a fazer mais uso de cosméticos e começou a me incomodar saber de onde vinham os produtos que eu estava usando”, relembra Maria Clara.
Ela acrescenta que, ao longo da primeira onda pandêmica, antes de tirar a Florear do papel foram meses de conversas, estudos e procura por fornecedores.
“Hoje, a gente vê o veganismo como algo que está em grande expansão. As pessoas têm procurado mais por produtos com menor impacto socioambiental, até pelo contexto das mudanças climáticas, e refletido sobre a responsabilidade delas em tudo isso que está acontecendo”, observa.
Já Mikaelly enumera alguns dos desafios nesse primeiro ano da Florear. “A articulação com os fornecedores é um dos processos mais difíceis. Nós sempre estamos muito atentas para averiguar se as matérias totalmente de origem vegetal, sem testes em animais, com embalagens biodegradáveis e a gente também se preocupa com as emissões de gás carbônico”, lista a empreendedora, enfatizando a preocupação com a natureza ao longo de toda a cadeia produtiva.
Caio é vegano há sete anos. Luciene há quatro anos. Ambos são servidores públicos, compartilham o amor pela causa animal e a conscientização sobre o consumo. Poderiam ser apenas coincidências, mas as convergências entre eles também os ajudaram a se tornar um casal.
Hoje, eles enfrentam juntos todos os desafios que um consumidor vegano se depara no dia a dia não apenas na hora de um bom jantar a dois, mas também nas atividades domésticas de limpeza da casa ou nos cuidados individuais, na hora de escolher cosméticos e itens de perfumaria, por exemplo.
"Quando eu estava iniciando no veganismo, conheci o Caio, que já era vegano há algum tempo, e ele me passou muitas informações úteis sobre o que eu poderia usar como substitutos aos produtos que eu usava antes. Isso facilitou bem mais a minha vida. Procurei também informações na internet e com um nutricionista, então, foi bem tranquilo"
Por ter se iniciado primeiro no veganismo em relação à companheira, Caio Farias da Costa, de 33 anos, vem acompanhando bem a evolução da oferta de produtos e serviços voltados para o público vegano.
“Em relação a restaurantes, por exemplo, deviam ter uns três ou quatro em Fortaleza quando eu comece. Hoje, realmente você pode escolher o que vai comer, não é uma coisa tão restrita. A venda de produtos veganos nos supermercados também aumentou. O mais difícil mesmo é encontrar produtos de limpeza, que são itens de uso mais corriqueiro, mas a gente observa um olhar crescente das empresas para nós”, relata.
“Produtos como xampus e condicionadores, a gente somente conseguia em lojas específicas e desodorante era bem complicado. Tinha algumas marcas, mas era difícil de achar e caro. Não tinha um relação custo-benefício boa. Hoje em dia, você já encontra com muita facilidade, mas já houve época em que a gente pensou até em importar”, complementa Luciene.
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Por Roberto Duarte (*)
O veganismo é um estilo de vida que busca, na medida do possível, não contribuir com a exploração/crueldade animal em vários setores, como por exemplo: alimentação (exclusão de animais e derivados da dieta), cosméticos/higiene pessoal (produtos que não usam animais como matéria prima e/ou não fazem teste de laboratório em animais), vestimentas (produtos que não utilizam couro ou lã) etc.
Essa é uma definição adaptada por mim da Vegan Society, primeira sociedade vegana do mundo, fundada em 1944.
Por mais que esse estilo de vida esteja em alta hoje, o conceito de não se alimentar com animais data até mesmo séculos antes de Cristo. Diversos cientistas e artistas que se tornaram ícones do progresso humano já consideravam uma alimentação vegetariana por motivos de saúde e de sustentabilidade, tais como: Pitágoras, Leonardo Da Vinci, George Bernad, Albert Einstein etc.
Já no contexto atual, o veganismo está passando por um crescimento exponencial em todo mundo, por além envolver fatores de saúde e de sustentabilidade, também envolver fatores éticos, ambientais e espirituais. Por esses motivos, as pessoas começaram a se questionar sobre a necessidade em utilizar/se alimentar de animais se já existem opções, muitas vezes mais acessíveis e saudáveis, que não o fazem.
"Esses produtos estão ficando cada vez mais populares, aumentando em muito a acessibilidade para esse estilo alimentar."
Eu sou vegano há 5 anos e atuo como nutricionista clínico, recebendo em meu consultório exclusivamente pacientes vegetarianos, veganos ou aqueles em transição, que pelo menos estejam procurando diminuir seu consumo de carne e/ou derivados.
Pela definição do início do texto, o veganismo, muitas vezes, pode soar como algo difícil de atingir, porém na prática vemos que é bem mais simples do que parece. Já tive o privilégio de acompanhar mais de 300 pacientes, onde grande parte me procurou nos últimos 2 anos.
Do ponto de vista alimentar, o veganismo pode ser relacionado com um estilo dietético que também está se popularizando, chamado de “dieta baseada em vegetais”.
Esse termo define uma alimentação sem animais e derivados (ovos e laticínios), rica em alimentos vegetais naturais (grãos, leguminosas, sementes, castanhas, folhosos, vegetais, frutas, tubérculos etc.), e pobres em alimentos processados/industrializados.
E não somente no contexto de qualidade de vida, mas também de segurança e adequação nutricional no geral, diversos órgãos e guias alimentares de diferentes países trazem uma alimentação baseada em vegetais como sendo segura para ambos os sexos e em todas as fases da vida, até mesmo gestantes.
O crescimento dessa adesão está também associado a um aumento pelo interesse econômico em providenciar produtos/serviços para esse público. Hoje não só existem restaurantes especializados no assunto, como também hotéis veganos e até mesmo supermercados inteiramente veganos.
E para suprir essa crescente demanda, restaurantes e supermercados digamos, tradicionais, também estão embarcando nessa transição. No contexto atual, temos diversos produtos veganos nos supermercados, como leites, queijos, iogurtes, requeijões, carnes vegetais, e diversas versões vegetais de pratos mundialmente consumidos, como hambúrgueres, pizzas e sushis. Hoje toda receita pode ser “veganizada”.
Esses produtos estão ficando cada vez mais populares, aumentando em muito a acessibilidade para esse estilo alimentar. Existem casos de empresas que fizeram sua transição total para esse mercado, como foi o caso da Elmhurst que fabricou e vendeu, durante 90 anos, leite de vaca, e, hoje, fabrica leites vegetais a partir de grãos, oleaginosas e leguminosas.
O mesmo crescimento é aplicado para o setor de cosméticos/higiene pessoal, onde a procura quintuplicou nos últimos anos pelos produtos chamados de “cruelty free” ou livres de crueldade animal.
Com o surgimento dessas informações e nascimento de novos produtos acredito que a população no geral aos poucos está se sentindo mais confortável para experimentar uma alimentação sem carnes e sem derivados, tendo em vista seus benefícios relacionados à saúde e a qualidade dos novos produtos/serviços.
O futuro é vegano e ele já chegou. Sem dúvidas, é o caminho mais ético e sustentável que podemos tomar pensando em nossa saúde, na prosperidade da nossa espécie, bem-estar dos animais e cuidado com nosso planeta.
* Roberto Leite é nutricionista clínico e mestre em Patologia