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Homeschooling: por que eles não querem os filhos na escola
Reportagem Especial

Homeschooling: por que eles não querem os filhos na escola

O ensino realizado de forma domiciliar tem sido de pauta entre parlamentares e órgãos educacionais

Homeschooling: por que eles não querem os filhos na escola

O ensino realizado de forma domiciliar tem sido de pauta entre parlamentares e órgãos educacionais
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Você é capaz de imaginar como teria sido sua infância, sua adolescência, se nunca tivesse ido à escola? Se, no lugar dos professores, tivesse sido educado pelos próprios familiares, sem sair de casa. E os colegas de ensino fossem apenas seus parentes? Essa possibilidade é assunto de proposta atualmente em discussão no Congresso Nacional. Como sua vida seria diferente se a escola tivesse sido substituída por outras vivências na própria residência? O que teria mudado positiva ou negativamente?

A realidade de estudar em casa foi ou ainda é uma realidade para milhões de estudantes brasileiros desde o ano passado. A educação foi um dos campos mais afetados pela pandemia de Covid-19. Com as salas de aulas vazias, o ensino a distância ganhou espaço, fazendo com que professores, alunos e instituições de ensino tivessem que se reinventar em um curto espaço de tempo.

Colégio Jenny Gomes, em Fortaleza, se prepara para volta das aulas presenciais(Foto: Júlio Caesar / O Povo)(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Colégio Jenny Gomes, em Fortaleza, se prepara para volta das aulas presenciais(Foto: Júlio Caesar / O Povo)

Apesar da mudança abrupta e apressada diante da necessidade de uma rápida adaptação ao modelo virtual, a discussão por alterações na estrutura educacional brasileira é antiga. Ainda em 2012, o deputado federal Lincoln Portela (PL-MG) apresentou o projeto de lei (PL 3179/2012), que tinha o objetivo de tornar possível a oferta domiciliar da educação básica no Brasil. Não se trata do ensino remoto, conforme estabelecido na pandemia. O que é colocado é algo bem diferente.

Tal mudança visa a possibilidade da implementação do modelo educacional conhecido como homeschooling. A prática consiste em uma forma de ensino na qual crianças e adolescentes são educados em casa, por suas famílias, sem a necessidade de estarem em instituição de ensino tradicional.

A pauta tramita na Câmara dos Deputados. No último dia 10 de junho, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou o projeto (PL 3262/19). A proposta descriminaliza o ensino domiciliar, modificando, assim, o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40). O projeto tem autoria das deputadas Chris Tonietto (PSL/RJ), Bia Kicis (PSL/DF) e Caroline de Toni (PSL/SC).

Atualmente, o art. 246 do Código Penal prevê detenção de 15 dias a um mês ou multa a quem deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar, por considerar tal conduta como crime de abandono intelectual. Pelo PL 3262/19, deixará de ser aplicada punição nos casos em que os responsáveis pela criança decidam adotar o modelo de educação domiciliar. Para a concretização do projeto, o texto ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Câmara, pelo Senado e ser sancionado pelo presidente da República.

Modelo de educação domiciliar vem ganhando força entre parlamentares(Foto: Barbara Moira)
Foto: Barbara Moira Modelo de educação domiciliar vem ganhando força entre parlamentares

O projeto foi criticado pelo deputado federal Professor Israel Batista (PV-DF), presidente da Frente Parlamentar da Educação, por meio de suas redes sociais. "A escola no Brasil não é só um dever dos pais, não é só uma obrigação do Estado. Ela é, sobretudo, um direito da criança. Nenhum pai tem direito de segregar o seu filho da convivência plural", declarou.

A discussão sobre a aplicação do modelo de homeschooling no Brasil não divide apenas os parlamentares. No meio jurídico, a discussão sobre o tema gira em torno da constitucionalidade da adoção do homeschooling. Ainda em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de recurso extraordinário, decidiu que não teria condições de julgar se o modelo é ou não constitucional, alegando que a lei brasileira não possui nenhuma regulamentação a respeito do ensino em formato domiciliar.

Crianças estudam em casa(Foto: Andrew Ebrahim/Unsplash)
Foto: Andrew Ebrahim/Unsplash Crianças estudam em casa

Homeschooling pelo Brasil

No Brasil, o Distrito Federal foi pioneiro na regulamentação do ensino domiciliar. Em 2020, a educação domiciliar foi aprovada em votação em segundo turno na Câmara Legislativa do DF. Atualmente, de acordo com o relatório da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), o modelo homeschooling é garantido em mais de 60 países.

Jônatas Dias, presidente da Associação de Famílias Educadoras do Distrito Federal (Fameduc-DF) e autor do livro Homeschooling no Brasil: fatos, dados e mitos, afirma que não se trata de ter ou não ensino domiciliar no Brasil. Ele afirma que a prática já existe. Como não é oficializada, não existem informações confiáveis a respeito. Para Dias, o que está em jogo é a garantia de direitos.

Criança faz a lição(Foto: Santi Vedrí/Unsplash)
Foto: Santi Vedrí/Unsplash Criança faz a lição

"Penso que não se trata de uma questão de vantagens, mas sim de reconhecimento de direitos. Desde o julgamento do STF, em 2018, as milhares de famílias que já praticam a educação domiciliar se encontram em estado de clandestinidade, são perseguidas e sofrem preconceito. Só uma lei pode dar a elas a necessária segurança jurídica para seguirem educando seus filhos da forma como escolheram", defende.

Dias acredita que "apenas por meio da regulamentação é que o Estado brasileiro terá condições de acompanhar essas famílias". Para o defensor do homeschooling, a regulamentação é a forma mais segura de se obter dados confiáveis sobre quantas são e qual o perfil familiar dos adeptos ao modelo, além de garantir a proteção social às crianças e adolescentes em estado de vulnerabilidade social.

Ainda segundo Dias, no Distrito Federal, o projeto contou com o apoio do Ministério Público, por meio da Promotoria de Educação, que manifestou apoio à constitucionalidade da lei. Para o presidente da Fameduc-DF, a lei tem sido usada como modelo e impulsionado diretamente o debate no Congresso Nacional.

Lição de matemática(Foto: Isaac Smith/Unsplash)
Foto: Isaac Smith/Unsplash Lição de matemática

Já no Rio Grande do Sul, o Ministério Público gaúcho (MPRS) considerou inconstitucional o projeto de lei que autoriza a prática do ensino domiciliar no Estado, aprovado por deputados estaduais no último dia 8 de junho. Para ser implementada, a proposta ainda precisa passar pelo crivo do governador Eduardo Leite (PSDB).

O cenário no Ceará

No Ceará, o Conselho Estadual de Educação (CEE), por meio dos conselheiros membros da Câmara de Educação Básica (CEB), informou que monitora o andamento das discussões e projetos versando sobre a possível implementação do homeschooling. O órgão avalia que o tema é polêmico, e considera que o assunto pede amplo diálogo com a participação de todos os atores da educação.

O CEE considera que precisam ser analisadas questões como os componentes pedagógicos, a formação dos pais, a estrutura doméstica disponível para os estudos, as formas de avaliação periódica das crianças e jovens, o acompanhamento do aprendizado diário, o conteúdo do ensino oferecido pelos pais, considerando os níveis de escolaridade até a formação superior. Outros pontos destacados são a certificação do nível escolar cumprido e os efeitos da falta de socialização das pessoas da mesma idade por não frequentarem o ambiente escolar.

Críticas e defesa

Em nota pública, a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) manifesta seu posicionamento contrário a qualquer proposta de ensino domiciliar. Para o órgão, a aprovação do novo modelo educacional poderia expor crianças e jovens ao risco de abusos.

"O ensino domiciliar é a negação da educação como ciência. É a negação da educação escolarizada, da transmissão formal do saber científico e cultural acumulado da humanidade. É a negação da importância do papel dos profissionais da educação no desenvolvimento das crianças, adolescentes, jovens e adultos. E é a negação dos direitos da criança a um desenvolvimento pleno e ao convívio social", diz a nota publicada.

Por outro lado, a Aned acredita que o cenário atual da educação no País precisa de mudanças, em prol da garantia do direito de escolha dos pais ao modelo de ensino de preferência da família, usando como base a Declaração Universal dos Direitos Humanos no artigo 26.3, onde está expresso que os pais possuem o direito prioritário a escolher a educação dos filhos. Segundo a Associação, mais de quatro milhões de estudantes já estão em sistema de homeschooling no mundo. A Aned alega que, no Brasil, o grupo já conta com mais de sete mil famílias e cerca de 15 mil estudantes.

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Adolescente estuda em casa(Foto: Tamarcus Brown/Unsplash)
Foto: Tamarcus Brown/Unsplash Adolescente estuda em casa

Preocupações dos pedagogos

Entre os especialistas da área de educação, a preocupação com a socialização e a segurança das crianças e adolescentes são os pontos mais discutidos sobre homeschooling.

A professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) Ticiana Santiago de Sá, doutora em Educação pela UFC e participante do departamento de Estudos Especializados, explica as bases que fizeram o movimento ganhar força no Brasil.

"Existe um movimento muito forte nos Estados Unidos, já consolidado dentro desse processo de alinhamento, e, aqui no Brasil, ele ganhou força com o movimento da Escola Sem Partido. Outros fatores considerados são o preço das mensalidades das escolas e a experiência da pandemia."

Entretanto, Santiago esclarece que, apesar da experiência do ensino remoto, vinda como consequência do período pandêmico, existem grandes diferenças entre o homeschooling e o modelo educacional remoto praticado como adaptação necessária devido às restrições impostas pela Covid-19. Para a professora, o novo modelo educacional encontra empecilhos legais para ser adotado.

"A Constituição Federal coloca como dever do Estado, da família e da sociedade, o direito de a criança ter essa educação na escola, mesmo que a família tenha suporte científico e filosófico. O lugar de diferença nunca será plenamente completado na família", explica.

A doutora em Educação reconhece a importância da família no processo educacional de qualquer criança ou adolescente, mas esclarece que a construção pessoal será incompleta sem a escola.

"A família está responsável por essa socialização primária, mas o lugar da diferença, da diversidade, do contraste e das trocas é exponencialmente ampliado nas escolas. Não é somente uma questão de instrução formal, mas é uma forma de instrumentalizar a criança para compreender e participar da sociedade."

Criança faz a lição(Foto: Jessuca Lewis/Unsplash)
Foto: Jessuca Lewis/Unsplash Criança faz a lição

Raquel Dias Araújo, professora do Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará (Uece), doutora em Educação, explica os principais argumentos utilizados pelos defensores do homeschooling.

"O argumento central é a liberdade de escolha dos pais ou dos responsáveis, direito de eles deliberarem sobre o que consideram a alternativa educacional mais adequada para o filho. Eles consideram a intervenção do Estado nociva para a educação."

Araújo analisa que o movimento possui raízes ultraliberais, já que, no passado, os próprios movimentos liberais reconheciam a necessidade de educação institucional para os jovens durante o século XVIII. Para a estudiosa, justificativas que passam por valores morais e religiosos entram em conflito com o acesso ao ensino das ciências biológicas, e possuem ligação com o movimento Escola Sem Partido.

"A escola teria a função de ensinar só o conteúdo propriamente dito, mas ela não poderia ensinar conhecimentos relacionados a valores morais ou à religião. Valores como o respeito à diversidade sexual, debates sobre gênero, as orientações sobre infecções sexualmente transmissíveis, que são conteúdos relacionados às ciências biológicas"

 

"Por mais que os pais tenham boa vontade e queiram proteger os filhos ou direcioná-los para o que acham mais importante em termos de valores, têm escolas que dão conta disso. Cabe aos pais buscarem as que se alinhem com aquela perspectiva. A família tem e deve participar da educação, é imprescindível, mas em parceria. Nunca poderá substituir a escola"

 

A professora Ticiana Santiago ainda destaca que, sem as escolas, os jovens perdem um meio de proteção social, o que, na opinião da especialista, colocaria crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. "Existem grandes perigos, não é só questão de escolha pessoal. Por exemplo, os índices de violência domiciliar, evasão, alienação parental, abuso e exploração sexual. A gente identifica na escola esse espaço de proteção", defende.

Raquel Dias reforça o argumento da vulnerabilidade infantil, ao destacar que em 2020, durante a pandemia, o Disque 100 recebeu 95.247 denúncias de violência contra crianças ou adolescentes. Em 2019, 86.800 denúncias foram realizadas. O último ano registrou o maior número de denúncias desde 2013.
Para Santiago, as famílias podem encontrar instituições de ensino que se encaixem nos valores morais adotados, sem precisar excluir a criança do ambiente escolar.

"Por mais que os pais tenham boa vontade e queiram proteger os filhos ou direcioná-los para o que acham mais importante em termos de valores, têm escolas que dão conta disso. Cabe aos pais buscarem as que se alinhem com aquela perspectiva. Acredito que a família tem e deve participar da educação, é imprescindível, mas em parceria. Nunca poderá substituir a escola."

Entre o possível comprometimento da inclusão social e escolar e o direito de liberdade dos tutores para deliberarem sobre o ensino de seus filhos, o debate sobre a implementação deverá seguir em todo território nacional até que as esferas públicas tomem decisões definitivas sobre o assunto.


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