Você é capaz de imaginar como teria sido sua infância, sua adolescência, se nunca tivesse ido à escola? Se, no lugar dos professores, tivesse sido educado pelos próprios familiares, sem sair de casa. E os colegas de ensino fossem apenas seus parentes? Essa possibilidade é assunto de proposta atualmente em discussão no Congresso Nacional. Como sua vida seria diferente se a escola tivesse sido substituída por outras vivências na própria residência? O que teria mudado positiva ou negativamente?
A realidade de estudar em casa foi ou ainda é uma realidade para milhões de estudantes brasileiros desde o ano passado. A educação foi um dos campos mais afetados pela pandemia de Covid-19. Com as salas de aulas vazias, o ensino a distância ganhou espaço, fazendo com que professores, alunos e instituições de ensino tivessem que se reinventar em um curto espaço de tempo.
Apesar da mudança abrupta e apressada diante da necessidade de uma rápida adaptação ao modelo virtual, a discussão por alterações na estrutura educacional brasileira é antiga. Ainda em 2012, o deputado federal Lincoln Portela (PL-MG) apresentou o projeto de lei (PL 3179/2012), que tinha o objetivo de tornar possível a oferta domiciliar da educação básica no Brasil. Não se trata do ensino remoto, conforme estabelecido na pandemia. O que é colocado é algo bem diferente.
Tal mudança visa a possibilidade da implementação do modelo educacional conhecido como homeschooling. A prática consiste em uma forma de ensino na qual crianças e adolescentes são educados em casa, por suas famílias, sem a necessidade de estarem em instituição de ensino tradicional.
A pauta tramita na Câmara dos Deputados. No último dia 10 de junho, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou o projeto (PL 3262/19). A proposta descriminaliza o ensino domiciliar, modificando, assim, o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40). O projeto tem autoria das deputadas Chris Tonietto (PSL/RJ), Bia Kicis (PSL/DF) e Caroline de Toni (PSL/SC).
Atualmente, o art. 246 do Código Penal prevê detenção de 15 dias a um mês ou multa a quem deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar, por considerar tal conduta como crime de abandono intelectual. Pelo PL 3262/19, deixará de ser aplicada punição nos casos em que os responsáveis pela criança decidam adotar o modelo de educação domiciliar. Para a concretização do projeto, o texto ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Câmara, pelo Senado e ser sancionado pelo presidente da República.
O projeto foi criticado pelo deputado federal Professor Israel Batista (PV-DF), presidente da Frente Parlamentar da Educação, por meio de suas redes sociais. "A escola no Brasil não é só um dever dos pais, não é só uma obrigação do Estado. Ela é, sobretudo, um direito da criança. Nenhum pai tem direito de segregar o seu filho da convivência plural", declarou.
A discussão sobre a aplicação do modelo de homeschooling no Brasil não divide apenas os parlamentares. No meio jurídico, a discussão sobre o tema gira em torno da constitucionalidade da adoção do homeschooling. Ainda em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de recurso extraordinário, decidiu que não teria condições de julgar se o modelo é ou não constitucional, alegando que a lei brasileira não possui nenhuma regulamentação a respeito do ensino em formato domiciliar.
No Brasil, o Distrito Federal foi pioneiro na regulamentação do ensino domiciliar. Em 2020, a educação domiciliar foi aprovada em votação em segundo turno na Câmara Legislativa do DF. Atualmente, de acordo com o relatório da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), o modelo homeschooling é garantido em mais de 60 países.
Jônatas Dias, presidente da Associação de Famílias Educadoras do Distrito Federal (Fameduc-DF) e autor do livro Homeschooling no Brasil: fatos, dados e mitos, afirma que não se trata de ter ou não ensino domiciliar no Brasil. Ele afirma que a prática já existe. Como não é oficializada, não existem informações confiáveis a respeito. Para Dias, o que está em jogo é a garantia de direitos.
"Penso que não se trata de uma questão de vantagens, mas sim de reconhecimento de direitos. Desde o julgamento do STF, em 2018, as milhares de famílias que já praticam a educação domiciliar se encontram em estado de clandestinidade, são perseguidas e sofrem preconceito. Só uma lei pode dar a elas a necessária segurança jurídica para seguirem educando seus filhos da forma como escolheram", defende.
Dias acredita que "apenas por meio da regulamentação é que o Estado brasileiro terá condições de acompanhar essas famílias". Para o defensor do homeschooling, a regulamentação é a forma mais segura de se obter dados confiáveis sobre quantas são e qual o perfil familiar dos adeptos ao modelo, além de garantir a proteção social às crianças e adolescentes em estado de vulnerabilidade social.
Ainda segundo Dias, no Distrito Federal, o projeto contou com o apoio do Ministério Público, por meio da Promotoria de Educação, que manifestou apoio à constitucionalidade da lei. Para o presidente da Fameduc-DF, a lei tem sido usada como modelo e impulsionado diretamente o debate no Congresso Nacional.
Já no Rio Grande do Sul, o Ministério Público gaúcho (MPRS) considerou inconstitucional o projeto de lei que autoriza a prática do ensino domiciliar no Estado, aprovado por deputados estaduais no último dia 8 de junho. Para ser implementada, a proposta ainda precisa passar pelo crivo do governador Eduardo Leite (PSDB).
No Ceará, o Conselho Estadual de Educação (CEE), por meio dos conselheiros membros da Câmara de Educação Básica (CEB), informou que monitora o andamento das discussões e projetos versando sobre a possível implementação do homeschooling. O órgão avalia que o tema é polêmico, e considera que o assunto pede amplo diálogo com a participação de todos os atores da educação.
O CEE considera que precisam ser analisadas questões como os componentes pedagógicos, a formação dos pais, a estrutura doméstica disponível para os estudos, as formas de avaliação periódica das crianças e jovens, o acompanhamento do aprendizado diário, o conteúdo do ensino oferecido pelos pais, considerando os níveis de escolaridade até a formação superior. Outros pontos destacados são a certificação do nível escolar cumprido e os efeitos da falta de socialização das pessoas da mesma idade por não frequentarem o ambiente escolar.
Em nota pública, a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) manifesta seu posicionamento contrário a qualquer proposta de ensino domiciliar. Para o órgão, a aprovação do novo modelo educacional poderia expor crianças e jovens ao risco de abusos.
"O ensino domiciliar é a negação da educação como ciência. É a negação da educação escolarizada, da transmissão formal do saber científico e cultural acumulado da humanidade. É a negação da importância do papel dos profissionais da educação no desenvolvimento das crianças, adolescentes, jovens e adultos. E é a negação dos direitos da criança a um desenvolvimento pleno e ao convívio social", diz a nota publicada.
Por outro lado, a Aned acredita que o cenário atual da educação no País precisa de mudanças, em prol da garantia do direito de escolha dos pais ao modelo de ensino de preferência da família, usando como base a Declaração Universal dos Direitos Humanos no artigo 26.3, onde está expresso que os pais possuem o direito prioritário a escolher a educação dos filhos. Segundo a Associação, mais de quatro milhões de estudantes já estão em sistema de homeschooling no mundo. A Aned alega que, no Brasil, o grupo já conta com mais de sete mil famílias e cerca de 15 mil estudantes.
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Entre os especialistas da área de educação, a preocupação com a socialização e a segurança das crianças e adolescentes são os pontos mais discutidos sobre homeschooling.
A professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) Ticiana Santiago de Sá, doutora em Educação pela UFC e participante do departamento de Estudos Especializados, explica as bases que fizeram o movimento ganhar força no Brasil.
"Existe um movimento muito forte nos Estados Unidos, já consolidado dentro desse processo de alinhamento, e, aqui no Brasil, ele ganhou força com o movimento da Escola Sem Partido. Outros fatores considerados são o preço das mensalidades das escolas e a experiência da pandemia."
Entretanto, Santiago esclarece que, apesar da experiência do ensino remoto, vinda como consequência do período pandêmico, existem grandes diferenças entre o homeschooling e o modelo educacional remoto praticado como adaptação necessária devido às restrições impostas pela Covid-19. Para a professora, o novo modelo educacional encontra empecilhos legais para ser adotado.
"A Constituição Federal coloca como dever do Estado, da família e da sociedade, o direito de a criança ter essa educação na escola, mesmo que a família tenha suporte científico e filosófico. O lugar de diferença nunca será plenamente completado na família", explica.
A doutora em Educação reconhece a importância da família no processo educacional de qualquer criança ou adolescente, mas esclarece que a construção pessoal será incompleta sem a escola.
"A família está responsável por essa socialização primária, mas o lugar da diferença, da diversidade, do contraste e das trocas é exponencialmente ampliado nas escolas. Não é somente uma questão de instrução formal, mas é uma forma de instrumentalizar a criança para compreender e participar da sociedade."
Raquel Dias Araújo, professora do Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará (Uece), doutora em Educação, explica os principais argumentos utilizados pelos defensores do homeschooling.
"O argumento central é a liberdade de escolha dos pais ou dos responsáveis, direito de eles deliberarem sobre o que consideram a alternativa educacional mais adequada para o filho. Eles consideram a intervenção do Estado nociva para a educação."
Araújo analisa que o movimento possui raízes ultraliberais, já que, no passado, os próprios movimentos liberais reconheciam a necessidade de educação institucional para os jovens durante o século XVIII. Para a estudiosa, justificativas que passam por valores morais e religiosos entram em conflito com o acesso ao ensino das ciências biológicas, e possuem ligação com o movimento Escola Sem Partido.
"A escola teria a função de ensinar só o conteúdo propriamente dito, mas ela não poderia ensinar conhecimentos relacionados a valores morais ou à religião. Valores como o respeito à diversidade sexual, debates sobre gênero, as orientações sobre infecções sexualmente transmissíveis, que são conteúdos relacionados às ciências biológicas"
"Por mais que os pais tenham boa vontade e queiram proteger os filhos ou direcioná-los para o que acham mais importante em termos de valores, têm escolas que dão conta disso. Cabe aos pais buscarem as que se alinhem com aquela perspectiva. A família tem e deve participar da educação, é imprescindível, mas em parceria. Nunca poderá substituir a escola"
A professora Ticiana Santiago ainda destaca que, sem as escolas, os jovens perdem um meio de proteção social, o que, na opinião da especialista, colocaria crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. "Existem grandes perigos, não é só questão de escolha pessoal. Por exemplo, os índices de violência domiciliar, evasão, alienação parental, abuso e exploração sexual. A gente identifica na escola esse espaço de proteção", defende.
Raquel Dias reforça o argumento da vulnerabilidade infantil, ao destacar que em 2020, durante a pandemia, o Disque 100 recebeu 95.247 denúncias de violência contra crianças ou adolescentes. Em 2019, 86.800 denúncias foram realizadas. O último ano registrou o maior número de denúncias desde 2013.
Para Santiago, as famílias podem encontrar instituições de ensino que se encaixem nos valores morais adotados, sem precisar excluir a criança do ambiente escolar.
"Por mais que os pais tenham boa vontade e queiram proteger os filhos ou direcioná-los para o que acham mais importante em termos de valores, têm escolas que dão conta disso. Cabe aos pais buscarem as que se alinhem com aquela perspectiva. Acredito que a família tem e deve participar da educação, é imprescindível, mas em parceria. Nunca poderá substituir a escola."
Entre o possível comprometimento da inclusão social e escolar e o direito de liberdade dos tutores para deliberarem sobre o ensino de seus filhos, o debate sobre a implementação deverá seguir em todo território nacional até que as esferas públicas tomem decisões definitivas sobre o assunto.