Há 360 anos, no dia 6 de agosto de 1661, a parte setentrional do Nordeste brasileiro, incluindo o Ceará, foi comprada por Portugal dos holandeses. O chamado Tratado de Haia foi firmado naquela data, entre a coroa portuguesa e a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos — Holanda, Zelândia, Utrecht, Frísia, Groninga, Guéldria e Overissel, chamados genericamente de holandeses. O acordo diplomático encerrou décadas de disputas territoriais e guerras. Era o desfecho de décadas cruciais para o Império Colonial Português, o Brasil e o Nordeste. Um período que influencia o desenho urbano de Fortaleza até hoje.
Aquela foi uma das maiores transações imobiliárias da história. Os portugueses aceitaram pagar, em valores atuais, o equivalente a mais de um bilhão de dólares, ou 25 toneladas de ouro. Receberam em troca aproximadamente um milhão de quilômetros quadrados de terras, estendendo-se da margem esquerda do São Francisco à divisa do Piauí com o Maranhão. Além do dinheiro, foram concedidos territórios lusitanos no sul asiático, bem como o controle do comércio do chamado Sal de Setúbal. Os Países Baixos recebiam a dinheirama em troca de um território que haviam tomado décadas atrás dos próprios portugueses, de quem haviam antes sido aliados.
A história tradicional registra a expulsão dos holandeses de forma heroica, na Batalha dos Guararapes, tida como marco fundador da nacionalidade brasileira. Índios, negros, brancos portugueses ou deles descendentes, caboclos e mulatos, escravos e senhores de engenho, sertanejos e comerciantes, todos se uniram numa jornada patriótica contra os invasores. Sem entrar no mérito das tintas épicas pintadas pela historiografia triunfalista, a Batalha dos Guararapes efetivamente transcorreu e de fato reuniu a diversidade étnica e social da colônia que então começava a ser fundada. O jogo de alianças moldava as relações, pois não era tão nítida a distinção entre quais europeus guiavam a colonização.
Aquela foi a mais concreta ameaça à integridade territorial do Brasil no período colonial. E não eram terras quaisquer, mas a parte mais promissora dos domínios lusitanos, o coração da produção açucareira. Ocorre que a expulsão militar dos holandeses não encerrou a questão e não afastou a ameaça. Guerras raramente terminam no último tiro. O Tratado de Haia foi firmado sete anos após as tropas das Sete Províncias deixarem o Brasil.
Com os holandeses expulsos do Brasil, o conflito prosseguiu pelo planeta. Inclusive com bloqueio holandês estabelecido na entrada do rio Tejo. A ameaça de nova invasão ao Brasil persistia. A solução foi buscar o acordo — não sem que os portugueses tenham admitido até entregar parte das possessões no Brasil.
As décadas de ocupação holandesa foram determinantes na história nordestina, e em Fortaleza em particular. Não que seja comparável a Recife, capital de Nova Holanda, cuja trajetória foi influenciada por Maurício de Nassau no traçado urbano, no comportamento, na história, na cultura e na religião. Porém, os holandeses deixaram sua marca na história de Fortaleza, a partir do próprio deslocamento do eixo a partir do qual a cidade se expandiu.
O arquiteto Liberal de Castro, bem como a socióloga Maria Auxiliadora Lemenhe (p.23), duvidam que houvesse intenção neerlandesa de fundar uma cidade à margem do riacho Pajeú. Isso pode ser percebido pela arquitetura, que destoa da planta plana das cidades coloniais holandesas. O Forte Schoonenborch, erguido à margem esquerda do riacho Pajeú, sobre a colina do Marajaitiba, atendia basicamente aos propósitos de defesa, propiciando visão panorâmica do litoral. Os holandeses ocuparam Fortaleza para ter uma base de apoio à ocupação de Pernambuco, seu real objetivo. Da mesma maneira como, décadas antes, portugueses iniciaram uma empreitada de ocupação na Barra do Ceará, com propósito de avançar sobre a Serra da Ibiapaba e de lá ter uma base de apoio para expulsar os franceses do Maranhão.
A primeira tentativa europeia de ocupação do que hoje é o Ceará ocorreu em 1603. Pero Coelho de Sousa recebeu o título de capitão-mor e, na tentativa de abrir caminho para o Maranhão, ergueu à margem do rio Ceará um pequeno forte chamado de São Tiago. A povoação ao redor foi batizada Nova Lisboa. A hostilidade indígena, tratados de forma bárbara por Pero Coelho, e a seca nos anos que se seguiram fizeram com que aquela empreitada original fosse abandonada.
No mesmo lugar, a Barra do Ceará, entre 1611 e 1612, Martim Soares Moreno chega ao Ceará como novo capitão-mor. No local das ruínas do São Tiago ergueu um novo e maior forte, ao qual chamou São Sebastião. Soares Moreno deixou o Ceará em 1631, justamente para combater os novos invasores em Pernambuco. O forte perdeu o pouco de importância que tinha, até ser tomado pelos holandeses, em 1637. Permaneceram na Barra do Ceará até 1644, quando houve um levante indígena e quase todos os ocupantes foram mortos.
Em 1649, já depois da derrota dos Países Baixos na Batalha dos Guararapes, chegou à enseada do Mucuripe expedição que tinha à frente o holandês Matias Beck. Após inspecionar o território, decidiu transferir o forte. Abandonou a Barra do Ceará e ergueu uma cerca de pau-a-pique sobre o Marajaitiba. Aproveitando restos do São Sebastião, construiu a fortaleza. A cidade que se desenvolveria ao redor ganhou o nome daquela precária estrutura, na margem esquerda do Pajeú. Recebeu o nome de Forte Schoonenborch, homenagem ao então governador holandês no Recife. Foi a base de apoio a operações que tinham entre os objetivos a busca de prata nas serras próximas a Fortaleza, como em Maranguape.
Já houve grande divergência entre intelectuais sobre a fundação de Fortaleza. Há os defensores de que a cidade surgiu do forte de Martim Soares Moreno, na Barra, e quem argumente que a fundação estava no Schoonenborch. O debate de maior qualidade intelectual foi travado entre Ismael Pordeus e Raimundo Girão, no começo da década de 1960.
As implicações políticas e sociais eram muitas. Inclusive religiosas, pois uma fundação holandesa significaria uma origem protestante, o que foi repelido com veemência pelos católicos fortalezenses de seis décadas atrás.
A historiografia atual não se preocupa tanto com fundadores ou atos originários. Importa mais o processo ao longo do qual as coisas se desencadeiam, e este teve várias etapas. O Schoonenborch não foi o primeiro forte, nem mesmo o primeiro a ser ocupado pelos holandeses no que hoje é Fortaleza. Mas, a cidade atual não deixa dúvida de que foi em torno dela que a Capital cresceu.
Em 1654, os holandeses se renderam, na Capitulação do Campo do Taborda. Deixaram o Nordeste brasileiro de forma definitiva. O Schoonenborch foi ocupado pelas tropas de Álvaro de Azevedo Barreto e rebatizado com o nome católico de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Recomeçava uma história portuguesa no Ceará. Apesar disso, as tratativas diplomáticas duraram mais sete anos para resolver a questão.
Até o começo do século XVII, as relações entre Portugal e os Países Baixos eram boas. Os holandeses eram parceiros comerciais. Transportavam a maior parte do açúcar produzido no Nordeste brasileiro e eram responsáveis pela quase totalidade do refino na Europa. Mas, veio uma tragédia portuguesa. Em 1578, o jovem rei dom Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, aos 24 anos. Não deixou herdeiro e foi sucedido pelo tio, o idoso cardeal dom Henrique, que morreu um ano e meio depois. O trono ficou vago e foi reivindicado pelo mais poderoso monarca da Europa, Felipe II da Espanha. Usando como argumento o fato de ser filho de uma princesa portuguesa, tornou-se rei de Portugal. O reino incorporado herdou uma guerra.
A chamada União Ibérica mudou os rumos da história portuguesa em todos os aspectos, e o Brasil foi de carona. Durante séculos, foi alimentado o misticismo segundo o qual dom Sebastião retornaria magicamente para restabelecer seu reino. O sebastianismo. Não foi por acaso que, 34 anos depois, o forte erguido na barra do rio Ceará foi chamado São Sebastião.
No Brasil, a geografia foi transformada. A fronteira do Tratado de Tordesilhas, que separava os domínios atribuídos a Portugal e Espanha, deixava de fazer sentido. Os intercâmbios desenvolvidos ao longo de 60 anos não retrocederam quando os portugueses recuperaram a autonomia, em 1640.
Inimigos dos espanhóis, os holandeses passaram a minar as fontes das riquezas portuguesas: atacaram as fontes de especiarias na Ásia, a rota de escravizados na África e o açúcar no Nordeste. O Ceará não tinha nada disso, mas entrou na carona de Pernambuco.
O primeiro alvo dos Países Baixos na América portuguesa não foi Pernambuco. Em 1624, a invasão foi à própria capital do Estado do Brasil: Salvador. A colônia portuguesa passou a ser administrada a partir de Olinda, até a armada espanhola expulsar os novos invasores, em 1625. Em 1630, os holandeses voltaram e miraram Olinda e Recife. Expandiram os domínios a Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Ficaram então por 24 anos, até a Capitulação do Campo do Taborda. O desfecho definitivo veio no Tratado de Haia.
Porém, o negócio do açúcar nunca teve a mesma lucratividade para Portugal. Os holandeses aprenderam as técnicas da produção, incluindo o tráfico e exploração da mão de obra de africanos escravizados. Levaram e aperfeiçoaram o modelo em colônias nas Antilhas e passaram a concorrer por esse mercado.
Referências:
BARRUCHO, Luís Guilherme. Como Portugal comprou o Nordeste dos holandeses por R$ 3 bi. BBC
FURTADO FILHO, João Ernani. Soares Moreno e Matias Beck: Inventário de uma polêmica nos escritos de Ismael Pordeus. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto, 2002.
GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. 1ª edição. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
LEMENHE, Maria Auxiliadora. As razões de uma cidade: Conflito de hegemonias. Fortaleza: Stylus Comunicações, 1991.
SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Fortaleza: imagens da cidade. 2 ed. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2004.