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Há 360 anos, Nordeste era "comprado" dos holandeses
Reportagem Especial

Há 360 anos, Nordeste era "comprado" dos holandeses

A presença holandesa foi a maior ameaça à integridade territorial da colônia portuguesa na América até o século XIX. No Ceará, foi mais de uma década de dominação, permeada por conflito com indígenas. A experiência marcou a história do que se tornaria Fortaleza

Há 360 anos, Nordeste era "comprado" dos holandeses

A presença holandesa foi a maior ameaça à integridade territorial da colônia portuguesa na América até o século XIX. No Ceará, foi mais de uma década de dominação, permeada por conflito com indígenas. A experiência marcou a história do que se tornaria Fortaleza
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Há 360 anos, no dia 6 de agosto de 1661, a parte setentrional do Nordeste brasileiro, incluindo o Ceará, foi comprada por Portugal dos holandeses. O chamado Tratado de Haia foi firmado naquela data, entre a coroa portuguesa e a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos — Holanda, Zelândia, Utrecht, Frísia, Groninga, Guéldria e Overissel, chamados genericamente de holandeses. O acordo diplomático encerrou décadas de disputas territoriais e guerras. Era o desfecho de décadas cruciais para o Império Colonial Português, o Brasil e o Nordeste. Um período que influencia o desenho urbano de Fortaleza até hoje.

Aquela foi uma das maiores transações imobiliárias da história. Os portugueses aceitaram pagar, em valores atuais, o equivalente a mais de um bilhão de dólares, ou 25 toneladas de ouro. Receberam em troca aproximadamente um milhão de quilômetros quadrados de terras, estendendo-se da margem esquerda do São Francisco à divisa do Piauí com o Maranhão. Além do dinheiro, foram concedidos territórios lusitanos no sul asiático, bem como o controle do comércio do chamado Sal de Setúbal. Os Países Baixos recebiam a dinheirama em troca de um território que haviam tomado décadas atrás dos próprios portugueses, de quem haviam antes sido aliados.

A história tradicional registra a expulsão dos holandeses de forma heroica, na Batalha dos Guararapes, tida como marco fundador da nacionalidade brasileira. Índios, negros, brancos portugueses ou deles descendentes, caboclos e mulatos, escravos e senhores de engenho, sertanejos e comerciantes, todos se uniram numa jornada patriótica contra os invasores. Sem entrar no mérito das tintas épicas pintadas pela historiografia triunfalista, a Batalha dos Guararapes efetivamente transcorreu e de fato reuniu a diversidade étnica e social da colônia que então começava a ser fundada. O jogo de alianças moldava as relações, pois não era tão nítida a distinção entre quais europeus guiavam a colonização.

Aquela foi a mais concreta ameaça à integridade territorial do Brasil no período colonial. E não eram terras quaisquer, mas a parte mais promissora dos domínios lusitanos, o coração da produção açucareira. Ocorre que a expulsão militar dos holandeses não encerrou a questão e não afastou a ameaça. Guerras raramente terminam no último tiro. O Tratado de Haia foi firmado sete anos após as tropas das Sete Províncias deixarem o Brasil.

Com os holandeses expulsos do Brasil, o conflito prosseguiu pelo planeta. Inclusive com bloqueio holandês estabelecido na entrada do rio Tejo. A ameaça de nova invasão ao Brasil persistia. A solução foi buscar o acordo — não sem que os portugueses tenham admitido até entregar parte das possessões no Brasil.

10ª Região Militar do Exército funciona hoje no antigo espaço da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Foto de 2019(Foto: Aurélio Alves/O POVO)
Foto: Aurélio Alves/O POVO 10ª Região Militar do Exército funciona hoje no antigo espaço da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Foto de 2019

A Fortaleza holandesa

As décadas de ocupação holandesa foram determinantes na história nordestina, e em Fortaleza em particular. Não que seja comparável a Recife, capital de Nova Holanda, cuja trajetória foi influenciada por Maurício de Nassau no traçado urbano, no comportamento, na história, na cultura e na religião. Porém, os holandeses deixaram sua marca na história de Fortaleza, a partir do próprio deslocamento do eixo a partir do qual a cidade se expandiu.

O arquiteto Liberal de Castro, bem como a socióloga Maria Auxiliadora Lemenhe (p.23), duvidam que houvesse intenção neerlandesa de fundar uma cidade à margem do riacho Pajeú. Isso pode ser percebido pela arquitetura, que destoa da planta plana das cidades coloniais holandesas. O Forte Schoonenborch, erguido à margem esquerda do riacho Pajeú, sobre a colina do Marajaitiba, atendia basicamente aos propósitos de defesa, propiciando visão panorâmica do litoral. Os holandeses ocuparam Fortaleza para ter uma base de apoio à ocupação de Pernambuco, seu real objetivo. Da mesma maneira como, décadas antes, portugueses iniciaram uma empreitada de ocupação na Barra do Ceará, com propósito de avançar sobre a Serra da Ibiapaba e de lá ter uma base de apoio para expulsar os franceses do Maranhão.

Sobre a colina do Marajaitiba foi construído o forte Schoonenborch , onde hoje fica a 10ª Região Militar(Foto: O POVO.DOC)
Foto: O POVO.DOC Sobre a colina do Marajaitiba foi construído o forte Schoonenborch , onde hoje fica a 10ª Região Militar

A primeira tentativa europeia de ocupação do que hoje é o Ceará ocorreu em 1603. Pero Coelho de Sousa recebeu o título de capitão-mor e, na tentativa de abrir caminho para o Maranhão, ergueu à margem do rio Ceará um pequeno forte chamado de São Tiago. A povoação ao redor foi batizada Nova Lisboa. A hostilidade indígena, tratados de forma bárbara por Pero Coelho, e a seca nos anos que se seguiram fizeram com que aquela empreitada original fosse abandonada.

No mesmo lugar, a Barra do Ceará, entre 1611 e 1612, Martim Soares Moreno chega ao Ceará como novo capitão-mor. No local das ruínas do São Tiago ergueu um novo e maior forte, ao qual chamou São Sebastião. Soares Moreno deixou o Ceará em 1631, justamente para combater os novos invasores em Pernambuco. O forte perdeu o pouco de importância que tinha, até ser tomado pelos holandeses, em 1637. Permaneceram na Barra do Ceará até 1644, quando houve um levante indígena e quase todos os ocupantes foram mortos.

Em 1649, já depois da derrota dos Países Baixos na Batalha dos Guararapes, chegou à enseada do Mucuripe expedição que tinha à frente o holandês Matias Beck. Após inspecionar o território, decidiu transferir o forte. Abandonou a Barra do Ceará e ergueu uma cerca de pau-a-pique sobre o Marajaitiba. Aproveitando restos do São Sebastião, construiu a fortaleza. A cidade que se desenvolveria ao redor ganhou o nome daquela precária estrutura, na margem esquerda do Pajeú. Recebeu o nome de Forte Schoonenborch, homenagem ao então governador holandês no Recife. Foi a base de apoio a operações que tinham entre os objetivos a busca de prata nas serras próximas a Fortaleza, como em Maranguape.

Já houve grande divergência entre intelectuais sobre a fundação de Fortaleza. Há os defensores de que a cidade surgiu do forte de Martim Soares Moreno, na Barra, e quem argumente que a fundação estava no Schoonenborch. O debate de maior qualidade intelectual foi travado entre Ismael Pordeus e Raimundo Girão, no começo da década de 1960.

Forte de Nossa Senhora da Assunção(Foto: MAURI MELO)
Foto: MAURI MELO Forte de Nossa Senhora da Assunção

As implicações políticas e sociais eram muitas. Inclusive religiosas, pois uma fundação holandesa significaria uma origem protestante, o que foi repelido com veemência pelos católicos fortalezenses de seis décadas atrás.

A historiografia atual não se preocupa tanto com fundadores ou atos originários. Importa mais o processo ao longo do qual as coisas se desencadeiam, e este teve várias etapas. O Schoonenborch não foi o primeiro forte, nem mesmo o primeiro a ser ocupado pelos holandeses no que hoje é Fortaleza. Mas, a cidade atual não deixa dúvida de que foi em torno dela que a Capital cresceu.

Em 1654, os holandeses se renderam, na Capitulação do Campo do Taborda. Deixaram o Nordeste brasileiro de forma definitiva. O Schoonenborch foi ocupado pelas tropas de Álvaro de Azevedo Barreto e rebatizado com o nome católico de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Recomeçava uma história portuguesa no Ceará. Apesar disso, as tratativas diplomáticas duraram mais sete anos para resolver a questão.

Gravura do Forte Schoonenborch original da Holanda, hoje em exposição no Paço Municipal(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Gravura do Forte Schoonenborch original da Holanda, hoje em exposição no Paço Municipal

A origem da hostilidade

Até o começo do século XVII, as relações entre Portugal e os Países Baixos eram boas. Os holandeses eram parceiros comerciais. Transportavam a maior parte do açúcar produzido no Nordeste brasileiro e eram responsáveis pela quase totalidade do refino na Europa. Mas, veio uma tragédia portuguesa. Em 1578, o jovem rei dom Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, aos 24 anos. Não deixou herdeiro e foi sucedido pelo tio, o idoso cardeal dom Henrique, que morreu um ano e meio depois. O trono ficou vago e foi reivindicado pelo mais poderoso monarca da Europa, Felipe II da Espanha. Usando como argumento o fato de ser filho de uma princesa portuguesa, tornou-se rei de Portugal. O reino incorporado herdou uma guerra.

A chamada União Ibérica mudou os rumos da história portuguesa em todos os aspectos, e o Brasil foi de carona. Durante séculos, foi alimentado o misticismo segundo o qual dom Sebastião retornaria magicamente para restabelecer seu reino. O sebastianismo. Não foi por acaso que, 34 anos depois, o forte erguido na barra do rio Ceará foi chamado São Sebastião.

Dom Sebastião(Foto: REPRODUÇÃO)
Foto: REPRODUÇÃO Dom Sebastião

No Brasil, a geografia foi transformada. A fronteira do Tratado de Tordesilhas, que separava os domínios atribuídos a Portugal e Espanha, deixava de fazer sentido. Os intercâmbios desenvolvidos ao longo de 60 anos não retrocederam quando os portugueses recuperaram a autonomia, em 1640.

Inimigos dos espanhóis, os holandeses passaram a minar as fontes das riquezas portuguesas: atacaram as fontes de especiarias na Ásia, a rota de escravizados na África e o açúcar no Nordeste. O Ceará não tinha nada disso, mas entrou na carona de Pernambuco.

Países Baixos, Espanha, Portugal e o Nordeste brasileiro(Foto: CPDOC/FGV)
Foto: CPDOC/FGV Países Baixos, Espanha, Portugal e o Nordeste brasileiro

O primeiro alvo dos Países Baixos na América portuguesa não foi Pernambuco. Em 1624, a invasão foi à própria capital do Estado do Brasil: Salvador. A colônia portuguesa passou a ser administrada a partir de Olinda, até a armada espanhola expulsar os novos invasores, em 1625. Em 1630, os holandeses voltaram e miraram Olinda e Recife. Expandiram os domínios a Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Ficaram então por 24 anos, até a Capitulação do Campo do Taborda. O desfecho definitivo veio no Tratado de Haia.

Porém, o negócio do açúcar nunca teve a mesma lucratividade para Portugal. Os holandeses aprenderam as técnicas da produção, incluindo o tráfico e exploração da mão de obra de africanos escravizados. Levaram e aperfeiçoaram o modelo em colônias nas Antilhas e passaram a concorrer por esse mercado.

Referências:

BARRUCHO, Luís Guilherme. Como Portugal comprou o Nordeste dos holandeses por R$ 3 bi. BBC

FURTADO FILHO, João Ernani. Soares Moreno e Matias Beck: Inventário de uma polêmica nos escritos de Ismael Pordeus. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto, 2002.

GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. 1ª edição. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

LEMENHE, Maria Auxiliadora. As razões de uma cidade: Conflito de hegemonias. Fortaleza: Stylus Comunicações, 1991.

SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Fortaleza: imagens da cidade. 2 ed. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2004.

 

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