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Dia dos Pais: as paternidades mais fluidas e participativas possíveis hoje
Reportagem Especial

Dia dos Pais: as paternidades mais fluidas e participativas possíveis hoje

O POVO ouviu pais que não tiveram uma experiência afetuosa de paternidade, mas optaram por construir uma relação diferente com os filhos. Especialistas discutem as repercussões sociais e culturais da masculinidade tóxica na paternidade hoje

Dia dos Pais: as paternidades mais fluidas e participativas possíveis hoje

O POVO ouviu pais que não tiveram uma experiência afetuosa de paternidade, mas optaram por construir uma relação diferente com os filhos. Especialistas discutem as repercussões sociais e culturais da masculinidade tóxica na paternidade hoje
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Um pai distante, pouco afetuoso e limitado ao papel de provedor era o arquétipo social mais comum destinado a eles. Contudo, paternidades mais flexíveis e participativas se apresentam cada vez mais possíveis hoje. Homens ressignificam sua experiência de paternidade no passado para se tornarem pais mais presentes e próximos dos filhos. 

O servidor público Rafael Barbosa Gonçalves, 39, é um exemplo. Ele se refere ao pai como um homem dedicado aos filhos, mas com o amor “guardado no peito”. Não havia, portanto, demonstrações de carinho com beijos ou abraços. “Nossa relação sempre foi baseada no respeito e na disciplina, oriundos de sua vida militar. Não tinha muito aquele negócio de pai e amigo, era pai e filho”, comenta. A infância de Rafael e dos irmãos foi regrada, mas se preciso fosse, o pai “tirava dele para não deixar faltar” aos filhos.

O afeto paterno era externado de outras formas. “Meu pai sempre foi e é presente em todos os momentos da minha vida, das decepções às conquistas.” Rafael às vezes tenta buscar na infância do pai o motivo para seu “jeito mais durão”.

Depois que ele próprio se tornou pai de Ryan, 13, e de Júlia, 3, buscou outra paternidade. A diferença está principalmente no hábito do diálogo mais próximo com os filhos e nas demonstrações de carinho. Para Rafael, o acesso à informação ajudou a construir uma paternidade melhor. “Antes o pai tinha que ser duro e agir com firmeza, batendo [nos filhos]. Hoje já se sabe que não é assim que se educa”, completa. Ele conta com a ajuda da esposa para se atualizar, por meio de leituras, sobre a educação dos filhos.

A percepção de Rafael não é isolada, pois a ideia do que é ser pai vem mudando progressivamente. No Brasil, o modelo patriarcal da família é parte da herança histórica com origens na colonização. O patriarca era o administrador financeiro e líder social do núcleo familiar. Não havia, assim, a noção de pai.

Mudanças sociais a partir do século XX, com a inserção da mulher no mercado de trabalho e os novos rearranjos familiares, possibilitaram aberturas para uma paternidade diferente e mais saudável.

A psicóloga obstétrica Milena Bomfim atende diariamente mães e pais. Ela tem notado maior envolvimento deles desde a gestação dos filhos. Para a especialista, o maior acesso aos métodos contraceptivos viabilizou um planejamento familiar mais compartilhado, além do acesso mais facilitado a informações. “A parentalidade começa a se transformar num processo dos dois, numa corresponsabilidade na formação dessa família. Alguns pais também despertaram que podem ser diferentes, que podem ter participação”, assinala.

 

"Quando você cria a fantasia cultural do sexo masculino, você já associa todo um conjunto de símbolos. Tem todas aquelas profecias culturais que vão aprisionar na masculinidade tóxica, como a ideia de que homens são agressivos e mulheres são dóceis." Marcelo Natividade, professor do curso de Ciências Sociais da UFC

 

Na perspectiva do antropólogo Marcelo Natividade, docente do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), a despeito dos avanços atuais, ainda opera um padrão hegemônico que visa pré-determinar as funções parentais. “Quando você cria a fantasia cultural do sexo masculino, você já associa todo um conjunto de símbolos. Tem todas aquelas profecias culturais que vão aprisionar na masculinidade tóxica, como a ideia de que homens são agressivos e mulheres são dóceis”, explica.

Rafael Barbosa Gonçalves, 39, é pai de Ryan, 13, e de Júlia, 3.(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Rafael Barbosa Gonçalves, 39, é pai de Ryan, 13, e de Júlia, 3.

 

 

Masculinidade tóxica, paternidade e saúde emocional dos pais

 

A construção social sobre o que é ou não “ser homem” define a masculinidade tóxica. São regras impostas para indivíduos do sexo masculino que podem causar prejuízos diversos para a saúde. E essas obrigações repercutem diretamente no exercício da paternidade.

É por isso que o debate sobre uma paternidade saudável também tem a ver com a discussão sobre gênero e sobre os padrões de masculino e feminino. Conforme o antropólogo Marcelo Natividade, desde a descoberta do sexo biológico do indivíduo ainda no ventre existe uma espécie de “programação cultural” sobre como a criança vai ser e existir no mundo. “Essa masculinidade tóxica faz tanto mulheres sofrerem como homens sofrerem porque é uma prisão dos modelos engessados que não correspondem àquilo que as pessoas são”, pondera.

Para o antropólogo, o movimento feminista produziu evolução em muitos pontos nas discussões sobre igualdade de gênero, mas esses modelos tóxicos de paternidade seguem se perpetuando. O que ajuda na desconstrução é a compreensão de que tanto a paternidade quanto a maternidade podem ser mais plurais e mais fluidas. “Nem sempre pai é o do sexo biológico. Temos mães que são pai e mãe, o homem trans que é pai, o tio que é pai. Pessoas que exercem essa afeição social, embora melhor mesmo é que seja desobstruída de gênero, exercida por seres humanos”, reforça Marcelo.

Nessa cultura machista, os meninos escutam repetidas vezes que “homens não choram”, "homens precisam ser fortes” e que “meninos não brincam de boneca”. Um processo que ajuda a criar homens violentos, fechados emocionalmente, e, consequentemente, pais distantes e frios.

 

 



Medos e sentimentos

 

Cerca de 66,5% dos homens não falam com amigos sobre medos e sentimentos. O dado está na pesquisa nacional “Precisamos falar com os homens? Uma jornada pela igualdade de gênero”, realizada em 2016 pela ONU Mulheres e o portal Papo de Homem, com viabilização do Grupo Boticário. O levantamento mostra que 44% dos homens sentem pressão por serem os responsáveis pelo sustento da casa, mas não falam sobre isso. Quase metade deles (45.5%) gostaria de se expressar de modo menos rígido ou agressivo e não sabem como.

 

"A masculinidade tóxica gera violência contra a mulher e impede o homem de pedir ajuda quando precisa, impede o homem de se cuidar com relação à saúde." Tercila Campos, psicóloga clínica

 

Conforme a psicóloga clínica Tercila Campos, esses comportamentos tóxicos exigidos dos homens implicam na incapacidade de o homem reconhecer sua fragilidade e sua possibilidade de fracasso, inerente a qualquer ser humano. “A masculinidade tóxica gera violência contra a mulher e impede o homem de pedir ajuda quando precisa, impede o homem de se cuidar com relação à saúde”, atenta. Dentre os prejuízos dessa cultura, a psicóloga destaca a reprodução desses valores sociais e culturais de pais para filhos.

Para não reproduzir essa masculinidade tóxica com os filhos e romper esse círculo vicioso, a especialista orienta aos pais olharem para si com uma visão crítica. “Acolhendo a sua fragilidade e se permitindo expressar as emoções para que a criança cresça no ambiente familiar, onde haja espaço para emoções, fragilidades, erros, fracassos, medos, angústias, tristeza, solidão”, complementa.

 
 
 

 

Ressignificar a experiência da paternidade

 

O chapeiro Caio Barros, 23, tinha uma relação tumultuada com o pai adotivo. Aos 13 anos, ele saiu de casa, onde ouvia constantemente que os pais biológicos não o queriam.

O pai adotivo também não apoiou o filho na transição de gênero. Caio, que é um homem trans, afirma que a experiência o distanciou de algumas pessoas e criou uma dependência emocional. “Essa necessidade que eu tenho de fazer as pessoas gostarem de mim, de achar que ninguém gosta, se dá pela minha infância”, relata. A adolescência conturbada acabou atrapalhando o vínculo com a filha Lara Ketley, 7 anos, que hoje mora com o outro pai e passa os fins de semana com Caio.

Quando encontra a filha, Caio se esforça para aproveitar ao máximo todo o tempo. “Brinco, falo que a amo o tempo inteiro, coloco um filme para a gente ver junto. Tudo o que eu não recebi dos meus pais”, conta.

Caio sonha em ser pai de novo e oferecer aos filhos, além de atenção e carinho, o suporte que tanto fez falta em sua vida. “[Ser pai] é mostrar ao filho que não importa o que ele faça, você vai ouvir. É passar para ele que ele pode confiar em você, que não precisa ter medo, e sim respeito”, completa.

Caio Barros, 23, com a filha Lara Ketley, 7. (Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Caio Barros, 23, com a filha Lara Ketley, 7.

Quem também ressignifica a experiência de paternidade é o professor Fábio Neves Araújo, 36. Criado pela mãe na periferia de Fortaleza, ele nunca teve um pai presente. Já adulto e após anos de terapia, Fábio percebe os impactos da ausência paterna na insegurança emocional e no medo de rejeição que desenvolveu. Mas mesmo sem referência paterna, ele sempre quis ser pai.

A paternidade significaria preencher uma lacuna. Quando a filha Íris, hoje com 5 anos, nasceu, “mudou tudo” em sua vida. "A paternidade para mim poderia ser resumida a um amor que nunca imaginei que poderia ser sentido por alguém”, destaca.

 

" O ser pai é uma construção, um processo que demanda amor, paciência, disponibilidade, carinho, compreensão." Lucianna Cavalcante, psicóloga clínica

 

Divorciado há dois anos, o pai de Íris faz questão de acompanhar o desenvolvimento da filha de perto. “Não quero participar só da diversão, mas também da formação moral. Participar da educação dela de fato me faz recuperar essa relação paterna que não tive na posição de filho”, complementa.

Com experiência em orientação parental, a psicóloga clínica Luanna Cavalcante aconselha aos pais, para a criação de uma paternidade mais saudável, investirem em autoconhecimento, com auxílio de terapia, além de estudarem sobre desenvolvimento infantil. “Estudamos para tudo: escola, faculdade, concursos, trabalho. Precisamos fazer o mesmo em relação aos filhos. Aprender a dar limites claros e oferecer sempre muito afeto. O ser pai é uma construção, um processo que demanda amor, paciência, disponibilidade, carinho, compreensão”, finaliza.

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