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Por que séries e filmes sobre crimes reais engajam tanto?
Reportagem Especial

Por que séries e filmes sobre crimes reais engajam tanto?

True crime, gênero que explora detalhes de crimes verídicos, cresce nas plataformas de streaming de vídeos, podcasts e livros. O que interessa ao público nos conteúdos?

Por que séries e filmes sobre crimes reais engajam tanto?

True crime, gênero que explora detalhes de crimes verídicos, cresce nas plataformas de streaming de vídeos, podcasts e livros. O que interessa ao público nos conteúdos?
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"(...) Mas quando a multidão viu os assassinos, com sua escolta de policiais rodoviários de casaco azul, ficou em silêncio, como se espantada de constatar que os dois tinham forma humana". Símbolo máximo do Novo Jornalismo, o livro "A Sangue Frio" (1966) detalha um crime que abalou a América: o assassinato da família Clutter em novembro de 1959. O terror dos Clutters — pai, mãe e dois filhos adolescentes — ao se verem surpreendidos em sua fazenda solitária de Holcomb, Kansas, por Richard Hickock e seu companheiro Perry Smith permeia as páginas do romance-reportagem do escritor e roteirista Truman Capote (1924-1984). Amarrados, amordaçados e mortos a tiros de espingarda, o homicídio brutal dos Clutter despertou fascínio e horror e alcançou fama mundial. Um ano depois de sua publicação, a obra de Capote foi levada ao cinema por Richard Brooks.

Crime, castigo, flashes e refletores: o chamado true crime, gênero que explora detalhes de assassinatos, sequestros, golpes, estupros, casos de pedofilia e outros crimes verídicos apresenta significativo aumento de popularidade nas plataformas de streaming de vídeos, podcasts e livros. “O conteúdo a seguir contém cenas fortes e de violência” é um aviso cada vez mais comum nos documentários ranqueados nos topos de exibição. Entrevistas, áudios de processos, gravações realizadas em tribunais, imagens da cobertura da imprensa, depoimentos de advogados, investigações policiais e falas dos criminosos e acusados constroem produções audiovisuais brasileiras e internacionais que enriquecem a indústria do entretenimento.

Cena do Crime - Mistério e Morte no Hotel Cecil é uma série documental americana de 2021 dirigida por Joe Berlinger que narra a misteriosa morte de Elisa Lam(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Cena do Crime - Mistério e Morte no Hotel Cecil é uma série documental americana de 2021 dirigida por Joe Berlinger que narra a misteriosa morte de Elisa Lam

O interesse público por narrativas de crimes não é novidade: na Grã-Bretanha, ainda em 1550, eram distribuídos pelas ruas panfletos sobre assassinatos e outros crimes. O lançamento da popular revista "True Detective", em 1924, consolidou o gênero na América. Mas por que esses conteúdos fazem tanto sucesso?

"O gênero é antigo. E, tal como conhecemos hoje, deve muito ao trabalho de Truman Capote no seu 'A sangue frio', lançado em 1966, ainda que já existissem histórias desse tipo na mídia", resgata o psicólogo e psicanalista Victor Nepomuceno. "O que atrai as pessoas nesse gênero é que ele trata de temas que são tabu e remete às nossas próprias formas de lidar com esses temas internamente. Se por um lado a fascinação vem acompanhada de revolta ou nojo, não é difícil perceber que muitas dessas figuras perversas se tornam celebridades. Charles Manson, envolvido na chacina que matou nove pessoas, era destinatário de diversas cartas de amor na prisão. Para muitas pessoas, esses criminosos representam o triunfo sobre a tentativa de educar, dominar nossos impulsos agressivos", elucida.

Nos dias 8 e 9 de agosto de 1969, vários dos integrantes de uma seita conhecida como a "Família Manson" — liderada por Charles Mason — assassinaram seis pessoas em Los Angeles, inclusive a atriz Sharon Tate, grávida do diretor de cinema Roman Polanski.(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Nos dias 8 e 9 de agosto de 1969, vários dos integrantes de uma seita conhecida como a "Família Manson" — liderada por Charles Mason — assassinaram seis pessoas em Los Angeles, inclusive a atriz Sharon Tate, grávida do diretor de cinema Roman Polanski.

As produções sobre assassinos em série são populares nos streamings. Na Netflix, a minissérie documental "Night Stalker: Tortura e Terror" retrata o medo vivido em Los Angeles na década de 1980, quando o serial killer Richard Ramirez perseguia carros, invadia casas e matava mulheres, homens, idosos, jovens e adultos, estuprava e torturava crianças e utilizava facas, armas e algemas para cometer os crimes.

O documentário "Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy", também disponível na plataforma, apresenta material de arquivo e gravações de áudio feitas no corredor da morte do notório assassino Ted Bundy — que sequestrou, estuprou e matou pelo menos 30 mulheres nos Estados Unidos entre 1974 e 1978. "O termo 'serial killer' se refere a assassinos que mataram duas ou mais pessoas segundo um mesmo modus operandi. Embora o termo tenha surgido no FBI e estivesse ligado a seu método de investigação, logo a mídia se apropriou", explica Victor. "Ele engloba um fenômeno específico, sem considerar os aspectos psicológicos de cada caso", ressalta o psicanalista.

 

 

No Brasil, os casos reais que foram parar nas telas

 

No Brasil, crimes cometidos por mulheres são casos populares na mídia: o homicídio de Manfred Albert von Richthofen e Marísia von Richthofen em 2002 pelos irmãos Daniel e Cristian Cravinhos a mando da filha do casal, Suzane von Richthofen, originou o filme "A Menina que Matou os Pais" (2021) — com roteiro de Ilana Casoy, Raphael Montes, o longa é protagonizado pela atriz e ex-BBB Carla Diaz. Neste ano, a Netflix lançou o documentário "Elize Matsunaga: Era uma vez um crime", produção que reúne diversos elementos fundamentais para o gênero true crime.

Primeira entrevista da ré confessa desde que foi presa em 2016, a série documental narra o assassinato e esquartejamento de Marcos Matsunaga pela sua esposa, Elize Matsunaga , em 19 de maio de 2012. A equipe reuniu 4.500 horas de material bruto, que originaram quatro episódios de 50 minutos cada — um resgate do crime que paralisou o País. Nascida em Chopinzinho, pequena cidade no interior do Paraná, Elize conheceu Marcos Matsunaga durante o trabalho como garota de programa. Diretor e herdeiro da empresa de alimentos Yoki, que na semana de seu assassinato foi vendida à General Mills por 1,75 bilhão de reais, o empresário casou-se com a paranaense viveu um conturbado relacionamento repleto de ciúmes e traições.

Elize Matsunaga quebra o silêncio sobre ter assassinado e esquartejado o marido, Marcos Matsunaga, em 2012. Produção "Elize Matsunaga: Era uma vez um crime" foi lançada na Netflix neste ano.(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Elize Matsunaga quebra o silêncio sobre ter assassinado e esquartejado o marido, Marcos Matsunaga, em 2012. Produção "Elize Matsunaga: Era uma vez um crime" foi lançada na Netflix neste ano.

Há cinco anos, Elize Matsunaga foi julgada por um tribunal do júri por ter matado o marido e cortado seu corpo em sete pedaços. Foi condenada a 19 anos 11 meses e um 1 dia de prisão, pena posteriormente reduzida a 16 anos e três meses. O promotor do caso abriu a denúncia contra ela dizendo se tratar de “um dos crimes de maior repercussão na história desta terra”. Com um total de 20 pessoas entrevistadas — entre jornalistas, advogados, especialistas criminais, familiares e amigos tanto de Elize quanto de Marcos —, "Elize Matsunaga: Era uma vez um crime" é uma produção da Boutique Filmes para a Netflix dirigida por Eliza Capai e com roteiro de Diana Golts.

"O primeiro contato com a Elize foi muito rico porque ela se abriu de uma forma muito forte. Se permitiu ser gravada tomando banho. Foi como uma metáfora de desnudar-se para a câmera. E a Janice (D’Ávila, diretora de fotografia) conseguiu gravar essas cenas expositivas de forma respeitosa, para ir contra a estereotipização da garota de programa. Antes disso havíamos ido ao presídio conversar com ela, nos apresentarmos e vermos a melhor forma de gravarmos. Esse primeiro contato foi muito importante", narra Eliza Capai em entrevista à Netflix.

Foram gravadas 21 horas de entrevista com Elize para a produção da série; as primeiras durante duas "saidinhas", como são chamadas as saídas temporárias da prisão em feriados prolongados. "Este caso é brasileiro, mas reflete sobre questões que estão no mundo todo, como os ciclos de violência. E a pergunta que é: o que que a gente faz sobre isso? Como a sociedade responde ao crime? O que tiramos de lição desses casos?", questiona a diretora.

Outro homicídio que ganhou projeção nacional após produções midiáticas é o caso de Evandro Ramos Caetano. Então com 6 anos de idade, o menino desapareceu no dia 6 de abril de 1992 na cidade litorânea de Guaratuba, no Paraná. Seu corpo foi encontrado em 11 de abril num matagal, sem vários órgãos, com mãos e pés amputados e o coração arrancado. O sequestro e homicídio da criança voltou à pauta nacional após o podcast produzido pelo jornalista Ivan Mizanzuk em 2018, adaptado para a televisão em série exibida pelo canal de streaming Globoplay neste ano. Intitulado "O Caso Evandro", o podcast é fruto de dois anos de investigação jornalística, que expôs falhas na investigação, hiatos e perguntas não respondidas sobre um crime nunca solucionado. O podcast tornou-se um dos mais baixados do Brasil em 2019, com mais de quatro milhões de acessos.

A série "O caso Evandro" é baseada na pesquisa feita por Ivan Mizanzuk para o podcast "Projeto humanos: O caso Evandro" sobre um crime ocorrido em 1992 em Guaratuba, no Paraná.(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação A série "O caso Evandro" é baseada na pesquisa feita por Ivan Mizanzuk para o podcast "Projeto humanos: O caso Evandro" sobre um crime ocorrido em 1992 em Guaratuba, no Paraná.

No Ceará, o jornalista, ilustrador e quadrinista Talles Rodrigues é autor da reportagem em quadrinhos "Cortabundas - O Maníaco de José Walter". A HQ revela o terror vivido no bairro na década de 1980, quando Francisco Evandro Oliveira Silva — conhecido como Cortabundas — entrava nas casas durante a madrugada, fazia cortes nas nádegas de mulheres e desaparecia na escuridão. Morador do José Walter durante a infância, Talles narrou em imagens a trajetória do maníaco e a sua própria para entender esse estranho caso que resultou em portas e janelas cobertas por grades de ferro até hoje.

"Eu nasci em 1988, quando o auge da história tinha acabado, então eu ouvia falar do Cortabundas nos anos 1990 e achava que nem era verdade. Em conversas, falando com minha mãe e com outras pessoas, descobri que o caso foi real", rememora o artista. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Jornalismo na Universidade Federal do Ceará (UFC), o livro é dividido em dez capítulos que unem narrativa e pesquisa. O jornalista entrou em contato com 19 fontes, entre colegas de profissão, policiais, vítimas e até um antigo conhecido do criminoso. "Comecei entrevistando minha mãe e, de pessoa em pessoa, eu tentei entender a história do bairro e a relação entre o José Walter que estava se formando há cerca de 10 anos. Também recorri aos jornais da época".

A história de perversão contada em quadrinhos apresenta ao leitor também o processo de produção da obra, com inserção de Talles nos desenhos enquanto entrevistador e artista. A inspiração, revela, é no quadrinista Joe Sacco — autor da consagrada novela gráfica Palestina (1993). "O que diferencia um quadrinho jornalístico é, entre outras coisas, o autor mostrar como obteve aquele depoimento. Entre aspas, nós estamos ali junto ao Joe Sacco, por exemplo, o que confere credibilidade", continua Talles. "A recepção ao trabalho foi ótima, porque alguns casos parecem lendas urbanas no imaginário popular — coisas como a Perna Cabeluda, a Loira do Banheiro —, mas são reais e despertam muita curiosidade", finaliza.

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