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O poder aquisitivo do brasileiro ladeira abaixo
Reportagem Especial

O poder aquisitivo do brasileiro ladeira abaixo

Na contramão do mundo, País já experimentava queda no PIB per capita entre 2011 e 2020. Em 2021, desemprego e aumento de preços pioram cenário e forçam mudanças de hábitos

O poder aquisitivo do brasileiro ladeira abaixo

Na contramão do mundo, País já experimentava queda no PIB per capita entre 2011 e 2020. Em 2021, desemprego e aumento de preços pioram cenário e forçam mudanças de hábitos
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Se você notou mais pessoas pedindo comida ou dinheiro na rua ou se você próprio já se viu forçado a deixar de consumir algum produto, contratar algum serviço ou comprar algum bem por conta da alta dos preços ou da perda de renda está observando empiricamente o que o Banco do Mundial já vem registrando em dados macroeconômicos ao longo dos últimos seis anos, pelo menos. O brasileiro ficou em média 5,6% mais pobre entre 2014 e 2020.

 

No ano em que o Brasil sediou a Copa do Mundo, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita anual, ou seja, por habitante, era de US$ 15.718. Em 2020, essa quantia passou para US$ 14.836 por ano. E não foi só a pandemia que contribuiu para essa queda. Uma sucessão de crises políticas e escolhas econômicas controversas também pesaram bastante para que o País caminhasse na contramão do restante do mundo. Para se ter uma ideia, em igual período, o PIB per capita mundial subiu 13,8% saltando de US$ 15.030 para U$ 17.109, mesmo descontando o impacto da crise sanitária causada pela Covid-19.

 

E o que era ruim vem apresentando face ainda mais cruel em 2021. Isso porque, até o ano passado, a perda de poder aquisitivo era amenizada por baixos índices inflacionários. Em 2017, por exemplo, o País atingiu a menor taxa de inflação da série história: 3,67%. O cenário, agora, é completamente diferente. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgado no último dia 25 de agosto, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), considerada uma prévia da inflação mensal, foi de 0,89%, o maior para o mês desde 2002. Já o acumulado dos últimos 12 meses chega a 9,3%.

Segundo o supervisor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Reginaldo Aguiar, além da pandemia, o galope inflacionário pode ser explicado pelo fato de que “alimentos cruciais para a população de menor renda foram dolarizados e seus valores passaram a crescer fortemente, porque a moeda brasileira perdeu muito valor em relação à moeda norte-americana. Com isso, por exemplo, o preço da carne dispara, o do óleo de soja dispara e até o do arroz que há anos não era um ‘vilão’ em termos de inflação estourou”.

Projeções de inflação para 2021 oscilam entre 7% e 7,1%. Acumulado no ano já chega a 5,1%(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Projeções de inflação para 2021 oscilam entre 7% e 7,1%. Acumulado no ano já chega a 5,1%

Ele acrescenta que “a carne passou a ter uma demanda internacional maior principalmente por conta das exportações para a China. O milho também passou a ser uma commodity. Com o preço dolarizado, o exportador se sente muito tentado a vender mais para o Exterior porque o retorno é maior. Para além disso, o preço internacional desses produtos também subiu. Tudo isso fez com que a oferta interna caísse. Então, mesmo com aquela ajuda emergencial mais encorpada de 2020, do Auxílio Emergencial, houve um alívio insuficiente para reverter a perda de poder aquisitivo”.

A pesquisadora Alessandra Araújo, do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC), complementa o raciocínio explicando que o “choque de demanda externa se reflete em um pico nos preços internamente e quem ‘paga o pato’ são os mais pobres, especialmente em uma pandemia. Então você tem como resultado disso tudo um aumento da desnutrição na população mais vulnerável e uma fragilização ainda maior dos informais que ficaram sem ter como ir à rua e não tinham um colchão de proteção social”.

O pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Daniel Duque, disse acreditar que, mesmo com a melhoria nos índices sanitários relacionados à Covid-19, “a inflação atual vai exercer uma pressão muito negativa sobre o poder de compra das famílias mais pobres, que tem uma composição maior do seu orçamento destinada para alimentação”. Também no último dia 25 de agosto, ele publicou estudo revelando que a pobreza no Brasil passou de 25,2% em janeiro de 2019 para 29,5% em janeiro de 2021.



Nesse contexto, o economista-chefe do Itaú Unibanco, Mário Mesquita, projeta uma ligeira redução inflacionária até o fim do ano, mas ainda acima do teto da meta estipulada pelo Banco Central. “Além da alta grande de preços de matérias-primas, a gente teve também alguns gargalos de produção, nessa questão de energia, que é outra restrição à oferta. Isso tudo tem contribuído para essa inflação superior a 9%. A gente até acha que ela vai cair um pouco, mas para quase 7%, que ainda é um nível bastante elevado”, lamenta.

 

 

O peso do desemprego no empobrecimento nacional

 

Além da inflação e da perda de poder aquisitivo, o País tem sofrido com altas taxas de desemprego, que chegou a 14,1% ao fim do segundo trimestre de 2021, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), também realizada pelo IBGE.

Para o supervisor-técnico do Dieese, Reginaldo Aguiar, “os efeitos da reforma trabalhista de 2017 já estavam em estágio avançadíssimo, de modo que as pessoas perderam muito rendimento, então, a pandemia chegou e agravou o que já estava muito mal”. Na visão do especialista, esse “fenômeno agora se intensifica. Você vê, por um lado, pessoas tendo que trabalhar mais horas ou passar mais horas procurando emprego, por outro lado, mais pessoas vivendo da solidariedade de parentes ou amigos”.

Ele acrescenta que “muitos deles já se encontram no quadro que se chama tecnicamente de desalento, ou seja, quando a pessoa para de procurar emprego, porque não acreditam que vão conseguir. Se essa pessoa vai para a rua procurar emprego gasta mais de R$ 7 de passagem de ônibus. Se beber uma água ou café pode chegar a R$ 10. Em dois dias, que ela deixasse de fazer isso, economizaria R$ 20 para comprar um frango. Esse dinheiro faz falta para a renda familiar”.

Em sentido diverso, a pesquisadora do LEP-UFC, Alessandra Araújo, disse acreditar que a questão do desemprego é anterior à reforma trabalhista e tem relação, inicialmente, com o excesso de gastos governamentais ocorrido no início da década passada, e, mais recentemente, com as crises políticas e contradições econômicas do atual governo. “Essas escolhas vêm deteriorando a relação fiscal e isso é observado pelas empresas, o que acaba gerando desconfiança e medo de investir. Por consequência, a economia roda mais lentamente e isso resulta em geração menor de empregos”, avalia.

Por fim, o economista Alex Araújo pontua que, independentemente das razões que geraram o quadro atual de desemprego, uma vez instalado, ele tem um impacto muito grande sobre a renda das famílias e o empobrecimento, especialmente no Nordeste. “Quem não tem ativo, bem ou patrimônio depende basicamente daquilo que recebe cotidianamente para conseguir consumir e sobreviver. Se esse alguém perde sua fonte de renda não tem como vender um patrimônio ou usar alguma reserva de emergência para enfrentar essa ausência”, conclui.

 

 

"Em 33 anos trabalhando aqui, nunca vi uma situação como essa"

 

A vendedora ambulante Simone Rodrigues dos Santos, já dedicou 33 de seus 52 anos de vida ao comércio ambulante no Mucuripe, região da orla de Fortaleza. Ela vende, principalmente, lanches como café, salgados e bolos para os pescadores que fazem parte intrínseca da cultura do bairro, de rica história, mas de presente marcado por muitas dificuldades.

Simone Rodrigues do Santos é vendedora ambulante de lanches, tais como café, salgados e bolos(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Simone Rodrigues do Santos é vendedora ambulante de lanches, tais como café, salgados e bolos

“Nunca vi nada assim. Antigamente, quando a gente trabalhava aqui, era tudo mais barato. Os pescadores saíam do mar e davam peixe para nós. Agora ninguém dá mais nada, porque tudo é caro e se não tiver o dinheiro, o pescador não come. A gente vende merenda para eles, que reclamam dos preços, mas não têm como evitar. O quilo do açúcar é R$ 4, o pacote de café é R$ 6, o gás nem se fala, R$ 100 é o preço do botijão”, lista.

Os custos da comerciante informal vão além dos insumos para produzir lanches e bebidas. Como não tem carro, para levar tudo até o ponto de venda na praia, Simone precisa recorrer ao transporte por aplicativo. “Todo dia a gente paga R$ 20 na ida e R$ 20 na volta de Uber. Já tira o dinheiro da comida para pagar o carro”, conta.

No auge da pandemia, com o lockdown, a vendedora ficou sem renda e a família de seis pessoas teve que deixar de comer itens como carne, leite e pão. “Às vezes não tinha nada para gente comer ou tinha de tomar chá com fatia ou cuscuz”, lembra.

 

 

"O povo não está ganhando dinheiro e isso é no Brasil inteiro"

 

Sérgio Leonel da Costa é permissionário no Mercado dos Peixes e relata a redução no consumo de frutos do mar, como os camarões que vende(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Sérgio Leonel da Costa é permissionário no Mercado dos Peixes e relata a redução no consumo de frutos do mar, como os camarões que vende

Sérgio Leonel da Costa, de 55 anos, é permissionário do Mercado dos Peixes, um dos principais pontos turísticos de Fortaleza. Ele recebe clientes de todo o País e ouve as histórias sobre como a inflação tem impactado a vida de pessoas das mais diferentes classes sociais.

“Está difícil para todo mundo. Você sabe que isso está acontecendo no Brasil inteiro, né? O País inteiro está com inflação muito grande. O povo não está ganhando dinheiro, o dinheiro não circula e fica esse caos”, lamenta. Assim como a Simone, Sérgio trabalha desde a juventude.

Ele relata também “nunca ter vivenciado uma situação como a atual” em que a inflação tenha impactado tanto no poder aquisitivo das pessoas, nem mesmo nos tempos de hiperinflação experimentados nas décadas de 1980 e 1990. “Os clientes fiéis não deixaram de comprar nossos camarões, mas reduziram muito o valor das compras. Quem levava R$ 90 passou a levar R$ 40”, exemplifica.

Sérgio diz, por fim, que também precisou reduzir as despesas familiares. “A gente diminuiu tudo. Não pode deixar de comer, mas pode diminuir. O carro agora uso praticamente só para vir trabalhar”, conta.


 

Criatividade e solidariedade é que ajudam a enfrentar a crise

 

A psicóloga Marta Bassani, de 57 anos, é natural de Cachoeirinha (RS), na Região Metropolitana de Porto Alegre. Ela conseguiu visitar Fortaleza agora, após meses de espera. Dois obstáculos precisaram ser vencidos para aproveitar o merecido lazer: os altos índices de casos e mortes pela Covid-19 e a inflação que também atingiu produtos e serviços que compõem a cadeia produtiva do turismo.

Marta Bassani é psicóloga que vive em Cachoeirinha, no Rio Grande do Sul. Em visita ao Ceará relatou convívio com inflação também em seu Estado natal (Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Marta Bassani é psicóloga que vive em Cachoeirinha, no Rio Grande do Sul. Em visita ao Ceará relatou convívio com inflação também em seu Estado natal

Foi preciso esperar a vacinação avançar, a pandemia se amenizar e, nesse meio tempo, economizar muito. “Essa viagem teve de ser adiada e, finalmente, foi possível, mas a gente também precisou pesquisar mais a questão de passagens, hospedagens e nas compras por aqui. Se a gente vai comprar uma coisa, pede descontos, e vai aprendendo a lidar com essas situações”, relata.

 

"Carro, a gente utiliza mais no fim de semana. Roupa, neste ano ninguém comprou. A coisa está bem difícil e só vai com solidariedade. Tanto que a gente tem um grupo de amigos em que nos ajudamos muito uns aos outros." Marta Bassani, psicóloga

 

Ela diz que não chegou a cancelar nenhum serviço, mas precisou cortar ou substituir itens no carrinho de supermercado para enfrentar as altas nos preços dos alimentos. “Carne, a gente reduz, leva meio quilo, por exemplo, faz uma verdura e complementa com ovos. A gente até passou a gostar mais de ovos, inventar receitas e usar mais a criatividade”, ressalta.

Marta e o esposo também reduziram as saídas de carro por conta do preço dos combustíveis e deixaram de comprar certos produtos. “Carro, a gente utiliza mais no fim de semana. Roupa, neste ano ninguém comprou. A coisa está bem difícil e só vai com solidariedade. Tanto que a gente tem um grupo de amigos em que nos ajudamos muito uns aos outros”, explica.

 

 

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A perda do poder aquisitivo 

Desirée Mota*

 

Desirée Mota, membro do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon-CE) (Foto: DIVULGAÇÃO)
Foto: DIVULGAÇÃO Desirée Mota, membro do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon-CE)

Quando falamos em perda do poder aquisitivo estamos nos referindo a diminuição do poder de compra do dinheiro. É a desvalorização do dinheiro, ou seja, as pessoas passam a comprar menos produtos e/ou serviços com o mesmo salário que comprava sem a inflação.

A inflação implica na redução do poder aquisitivo da população. Um dos fatores que podem gerar a inflação é o aumento de um item básico da economia, por exemplo, o aumento dos combustíveis e da energia recentemente, podendo contaminar dessa forma outros preços provocando uma alta generalizada na cadeia produtiva. Outro fator é o excesso de consumo, pois os produtos tornam-se escassos ocasionando aumento de seus preços.

E o governo, por outro lado, incentiva a população que vá as compras, sendo que não há produção necessária para atender o consumo. E dessa forma, com a oferta de crédito por meio do auxílio emergencial, as pessoas se sentem mais “ricas” e partem para o consumo desenfreado, se endividando e se tornando inadimplentes.

 

"Para as famílias de renda mais baixa, mais expostas ao desemprego, e à queda no poder de compra motivadas pelo avanço da inflação, a situação é mais dramática." Desirée Mota, economista

 

E quando acontece uma forte pressão inflacionária, o repasse desse aumento é transferido aos preços dos produtos, principalmente alimentos, o bem essencial. E as classes mais baixas têm que fazer escolhas como cancelar planos de internet, mudar o padrão de compras, alterar/cancelar planos de saúde e outros.

Para as famílias de renda mais baixa, mais expostas ao desemprego, e à queda no poder de compra motivadas pelo avanço da inflação, a situação é mais dramática. A crise enfrentada por todos os segmentos, bem como o quadro de vulnerabilidade e incerteza dos trabalhadores, seja pela ameaça do desemprego, pelo encarecimento dos itens importantes para alimentação e pela inadimplência levam a essa situação econômica que o nosso País se encontra.

Outro reflexo deste contexto econômico é o grande impacto social. A Covid-19 também modificou o comportamento do consumidor e a recuperação econômica, e consequentemente geração de empregos será lenta e provavelmente se estenderá ao longo de todo o ano de 2021 e 2022.

(*) Desirée Mota, membro do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon-CE) e mestre em economia pela Universidade Federal do Ceará (UFC)

 

 

Vídeo: Confira depoimentos de quem enfrenta a inflação no dia a dia

CRÉDITOS

  • Edição Adailma Mendes e Regina Ribeiro
  • Textos Adriano Queiroz
  • Recursos digitais Beatriz Cavalcante
  • Recursos visuais e ilustração da capa Isac Bernardo
  • Fotos Aurélio Alves; Marcelo Camargo (Agência Brasil)
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