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Imune ao corte: o baobá sagrado de Fortaleza
Reportagem Especial

Imune ao corte: o baobá sagrado de Fortaleza

No dia 4 de outubro de 2021, completam-se 70 anos do decreto que torna o baobá do Passeio Público imune ao corte. Mas o que torna a árvore tão especial?

Imune ao corte: o baobá sagrado de Fortaleza

No dia 4 de outubro de 2021, completam-se 70 anos do decreto que torna o baobá do Passeio Público imune ao corte. Mas o que torna a árvore tão especial?
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A cada dez pessoas que entram da Praça do Mártires, também conhecida como Passeio Público, nove tiram foto com o baobá, conta seu Douglas, um dos vigias da praça. Nessa visitação constante, um dia não-pandêmico reunia cerca de 400 pessoas passando e admirando uma das árvores mais conhecidas de Fortaleza (CE).

Com mais de cem anos de vida, o baobá do Passeio Público completa 70 anos de imunização ao corte nesta segunda-feira, 4 de outubro, pelo Decreto nº 30.052/1951. É o mesmo dia de São Francisco, o santo da natureza. Um motivo para comemorar numa cidade que cuida mal das suas ávores e da sua memória. Aliás, pelo registros, em 2022 poderemos celebrar os 150 anos do baobá imune ao corte.

 

Ainda que muitos acreditem que o baobá foi plantado em 1910, a seção Plantas do Ceará, da Revista Instituto do Ceará publicada em 1949, conta que a árvore foi trazida da Argélia pelo Padre Senador Tomás Pompeu em 1872. Na verdade, vieram duas mudas, plantadas por ele na Praça dos Mártires - porque gostava de árvores exóticas e ornamentais.

Em 1979, o livro Geografia Estética de Fortaleza, de Raimundo Girão, descreveu o baobá do Passeio Público como de uma “nostalgia secular”. “Vive o baobá do Passeio curtindo o silêncio da sua nostalgia secular, arrancado de terras da África para uma adaptação aos chãos nordestinos, a testemunhar que, aqui, o sol também é caniculante e as areias quentes também escaldam suas raízes. Etimologicamente, baobá quer dizer “árvore de mil anos”, e é de ver, assim, quantos lhes resta para as angústias da sua solidão.”

Baobá no Passeio Público no Centro de Fortaleza, em 2021.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Baobá no Passeio Público no Centro de Fortaleza, em 2021.

 

 

A nostalgia do Baobá

O baobá é uma planta majoritariamente africana. Das nove espécies existentes no planeta, oito existem na África (seis estritamente em Madagascar) e apenas uma ocorre na Austrália. Para os africanos, o baobá é uma Árvore Sagrada, uma árvore mãe. E essa relação de ancestralidade veio à força para o Brasil durante os séculos XVI e XIX, quando os portugueses traficaram africanos para serem escravos nas colônias.

“Tudo na África é ligado ao misticismo”, conta Babá Léo de Oxum, sacerdote de Candomblé em Fortaleza, “e o Candomblé absorve muito dessa religiosidade”. O Candomblé é uma religião brasileira de matriz africana de culto à natureza. Para eles, o baobá é uma divindade, um próprio orixá.


"Tudo que o baobá representa para a natureza, a necessidade, a coletividade… Essa é a lição que o baobá traz para o Candomblé. Apesar de ser grande e majestoso, ele ensina humildade. Amor ao próximo. O respeito à natureza." Babá Léo de Oxum, sacerdote do Candomblé


Um dos contos que envolvem o baobá e a diáspora africana forçada é o que dá um dos vários nomes da planta: Árvore do Esquecimento. Diz a lenda que os europeus colonizadores, ao capturar africanos, os forçavam a dar voltas ao redor do baobá. A intenção era que os cativos esquecessem toda a religiosidade, a cultura e os conhecimentos africanos.

Babá Léo de Oxum, Sacerdote de Candomblé, junto ao baobá do Passeio Público.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Babá Léo de Oxum, Sacerdote de Candomblé, junto ao baobá do Passeio Público.

Mas o que os europeus não sabiam era que, a cada volta, eles tocavam na árvore e transmitiam todo o conhecimento deles para o baobá. E então o tronco da árvore foi inchando, inchando e inchando com as memórias e as ancestralidades de todos eles.

“Isso é uma lenda, é claro”, reforça Babá Léo. Na realidade, o baobá tem o tronco grosso por armazenar litros e mais litros de água em seu interior. Segundo a professora doutora Iracema Loiola, do Departamento de Biologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), “o tronco é oco e é bem resistente ao fogo”. Já foram encontrados até 120 mil litros de água em um baobá.

A capacidade de armazenamento vem justamente dos ecossistemas aos quais a árvore se adaptou: áridos, ligados à savana. Não à toa, o baobá se adequa tão bem ao Ceará. Em tempos de muita seca, comenta Babá Léo, os africanos costumam levar um curandeiro até a árvore para furá-la e recolher água. “Eles passam meses sem relações sexuais e sem bebidas alcóolicas (para fazer esse ritual). Se isso não for seguido, a lenda diz que o baobá apodrece.”

Babá Léo de Oxum sobre os significados e tradições que envolve a arvore Baobá.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Babá Léo de Oxum sobre os significados e tradições que envolve a arvore Baobá.

Daí, o baobá vira Árvore da Vida. Ele também é chamado de Árvore Milenar, ou Árvore dos Mil Anos; capaz de ver gerações nascerem, crescerem e morrerem. E quando o momento de partir chega, o baobá também pode virar o local do descanso eterno. Dessa vez quem afirma é a edição de 1949 da Revista do Instituto do Ceará: “Registra Barbosa Rodrigues o seguinte costume de certas cabildas africanas enterrarem os seus músicos e poetas dentro dos troncos destas gigantescas árvores”.

Mesmo tão poderosa, a “Rainha Baobá” é também humilde. Para muitos, ela pode não ser a árvore mais bonita do mundo. Em comparação a outras plantas tão frondosas e esbeltas, o baobá parece ter, na copa, raízes expostas. “Ela é uma planta caducifólia, que significa que ela perde as folhas e leva em torno de 25 anos para começar a dar os frutos”, descreve a professora Iracema.

Conforme a história do Candomblé, a imagem do baobá é uma lição de humildade. Muito tempo atrás, o baobá tinha inveja das outras árvores. Passava os dias reclamando com Deus sobre como todas as outras eram frondosas e belas, enquanto ela era gorda e feia. Então, para resolver o problema, Deus pegou o baobá e o colocou de cabeça para baixo, deixando suas raízes expostas e impedindo-a de se comparar com as outras.

Apesar dos contos de união e respeito das religiões de matriz africanas, elas ainda são vistas com preconceito no Brasil, costumeiramente demonizadas. Em consequência da perseguição religiosa, os candomblecistas de Fortaleza têm se privado de praticar louvores em volta do baobá do Passeio Público.

Apesar disso, alguns projetos como o Memórias de Baobá conseguiram levar para o espaço algum tipo de divulgação das religiões, afirma Babá Léo. Uma Caravana Cultural também já oportunizou louvores do Candomblé em volta da árvore sagrada.

 

 

 

 

A dois quilômetros de distância

Outro baobá cresce guardando história em Fortaleza, a dois quilômetros de distância do Passeio Público. Na praça José Bonifácio, um baobá plantado há sete anos (mas um pouco mais velho que isso) conta a história de amor que o empresário Leonardo Jales, de 44 anos, tem por seu filho Tomé.

Tomé, de 7 anos, e o baobá da praça José Bonifácio.(Foto: Leonardo Jales / Arquivo Pessoal)
Foto: Leonardo Jales / Arquivo Pessoal Tomé, de 7 anos, e o baobá da praça José Bonifácio.

Há sete anos, quando Tomé nasceu, Leonardo tinha ganhado de uma amiga uma muda de baobá. A árvore já tinha germinado, estava esperando apenas receber um chão. Assim que ele recebeu a planta, ele sabia o que gostaria de fazer com ela: esperaria até os seis meses de Tomé e plantaria a muda com a placenta do filho na base.

E assim foi. Na época, ele convidou o Maracatu para festejar a plantação e homenagear a cultura afro-brasileira.

Hoje, o baobá ainda é jovem, com seis metros de altura. “Está crescendo. Poderia estar maior”, comenta Leonardo, acreditando que a dificuldade em crescer está na falta de água da praça. Mesmo assim, o baobá é o tesouro de Tomé.

Como o pai tomou a responsabilidade de cuidar da praça - rega as plantas todo dia, lavra muitas mudas -, a criança visita o baobá cotidianamente. “Ele vai e abraça o baobá, faz xixi na base para dar nutrientes, sobe no alto do baobá e beija”, ri o pai orgulhoso.

Apesar do carinho enorme pelo baobá, Leonardo reforça que a árvore já é bastante difundida no Ceará. “Já as espécies nativas são carentes de representatividade”, destaca o empresário, também membro do movimento Pró-Árvore, dedicado em disseminar a relevância e beleza das plantas nativas.

Ele conta que, no Ceará, existe a barriguda do sertão, cultivada na Caatinga, e que também armazena água no tronco - mas em vez de ficar inchada por completo como o baobá, a barriguda fica com um buchão. Pensando nisso, Leonardo plantou em frente ao baobá de Tomé uma barriguda de espinhos. “No Passeio Público também, em frente ao baobá de lá”, comemora.

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“Eu já plantei mais de cem árvores nativas no Centro de Fortaleza”, diz o empresário. Para ele, assim como o baobá significa a conexão com o continente africano, a barriguda do sertão é uma valorização da natividade brasileira. Assim, o ato de plantar e falar sobre as árvores é uma luta no campo da educação: “Falta muita coisa (para verem a importância das plantas). A crise climática é seríssima e a maioria que reconhece (a problemática) não faz nada”, lamenta.

Seja pela história, seja pela cultura ou seja pelo valor ambiental, o baobá do Passeio Público atrai curiosidade. Ele viu Fortaleza crescer e mudar. Provavelmente, acompanhará tantas outras transformações milenares na Capital. Há de se respeitar.

 

 

 

 

>> Ponto de vista

O poder dos contos

por Catalina Leite*

A primeira vez que vi a palavra baobá foi em O Pequeno Príncipe. Eu era grande o suficiente para saber ler, mas pequena demais para entender os detalhes do livro de Antoine de Saint-Exupéry. Por isso, sentia raiva do baobá; era uma árvore malvada, que queria atravessar o minúsculo planeta do pequeno príncipe com suas raízes enormes e troncos grossos. Digo com tranquilidade que foi mais culpa de Exupéry que minha. Ele quem descreveu os baobás como “ervas daninhas”, como “sementes terríveis”.

Bom, li O Pequeno Príncipe cinco ou seis vezes. Mesmo grande, torcia o nariz com a imagem dos três baobás ocupando o planeta onde morava um preguiçoso. Nesse caso, a culpa começava a ser minha. Eu também não me preocupava em ouvir o lado do baobá, e na verdade achava - por ignorância mesmo - que era uma árvore inventada.

Os baobás do Pequeno Príncipe.(Foto: O Pequeno Príncipe, de  Antoine de Saint-Exupéry)
Foto: O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry Os baobás do Pequeno Príncipe.

Na minha terra, o Amazonas, já existiam árvores gigantescas e estonteantes com as quais me diverti, como a sumaúma. Ela tem raízes grossas, um tronco de quase três metros de diâmetro e pode alcançar até 70 metros. E eu aprendi na escola que ela era a Árvore da Vida. Ouvi histórias sobre ela e conheci algumas bem de pertinho. Com uma árvore tão grande, eu nem me interessava pelo que fosse um baobá.

Acontece que nenhuma dessas sensações de raiva, desconhecimento e desinteresse me foram perceptíveis até essa matéria. Juro. De repente, um mundo inteiro se abriu sobre o baobá. E num estalar de dedos, eu percebi que o baobá é para muitos o que a sumaúma é para mim. Mãe, vida, cultura… Ponto de referência. Ambas árvores monumentais, cada uma do seu jeito, destacando-se em seus ecossistemas.

Acho que essa trajetória mostra a força dos contos. Com a produção deste material, o baobá vilão de O Pequeno Príncipe transformou-se em baobá místico e ancestral das histórias contadas por Babá Léo de Oxum. Espero que a partir desta matéria, outros pequenos possam dar a guinada para conhecer as belas histórias da rainha baobá.

*Catalina Leite é repórter do O POVO+

 

Contos sobre o baobá. Assista ao vídeo

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