Carioca e flamenguista de coração, Fabiana Alvim de Oliveira — ou simplesmente Fabi — é apaixonada por esportes desde criança. Começou no vôlei aos 12 anos, como atacante, nas categorias de base do clube do coração. Com 1,67m de altura, porém, seria inviável para ela se profissionalizar na posição. Eis que em 1998 — ano em que completara 18 anos — a posição de líbero foi introduzida pela Federação Internacional de Voleibol (FIVB) e mudou a vida da atleta.
Na nova posição, Fabi se tornou bicampeã olímpica, além de ser considerada por muitos especialistas como a melhor líbero de todos os tempos. A grandeza dela, entretanto, transcende o mundo do esporte. A atleta também levanta importantes bandeiras, em especial em defesa da minoria LGBTQIA+ — ela é casada com Julia Silva e, juntas, são mães de Maria Luiza, de 2 anos — e a da igualdade de gênero, entre homens e mulheres. Hoje, aos 41, Fabi é comentarista do Grupo Globo e participou da cobertura dos Jogos de Tóquio-2020.
Em Fortaleza, Fabi participou da abertura do Desafio Unifor de Escolas 2021, e, em entrevista exclusiva ao O POVO, falou de aposentadoria, transição de carreira, participação política no meio esportivo, além de outros assuntos.
O POVO - Como foi essa transição de jogadora para comentarista? Quais foram os maiores desafios?
Fabi Alvim - Bom, o momento de transição acontece num processo. Eu comecei a pensar nessa possibilidade de parar de jogar bem antes de o fato acontecer, então eu meio que fui me preparando. Porque é um momento difícil na carreira de um atleta, é como se tivesse que encerrar um ciclo e começar outro. E acho que o fato de ter feito tudo com muita tranquilidade, lucidez, tentando imaginar como é que seria essa vida pós-quadra, fez com que esse processo fosse menos doído. E aí, aos poucos, eu tive essa possibilidade de ir deixando essa rotina de forma gradativa.
Primeiro eu saí da seleção em 2014, e quatro anos depois eu parei de jogar meio que alinhada, já, com essa questão de seguir comentando, de alguma forma seguir dentro do vôlei, do esporte, algo que eu fiz durante muito tempo. Então era um caminho meio natural, também, estar inserida dentro desse contexto, era uma coisa que eu gostaria. Mas eu te confesso que é bastante intenso também. Eu achava que, com a aposentadoria das quadras, eu fosse ter uma vida menos dinâmica, mas não é isso que acontece. O bom é que a gente tem novos desafios, e nós, como atletas, todos nós, gostamos de desafios. E eu tô muito feliz hoje também, mesmo fora das quadras, com esse desafio de me tornar comentarista num canal de televisão respeitado, onde a gente tem essa responsabilidade de passar a vivência do esporte pra quem tá em casa, de uma forma que as pessoas consigam entender.
"Respeito quem não quer se posicionar, seja na questão de gênero ou política...Quando você vai ficando mais velho, vai percebendo quem é você dentro do mundo e o que você pode fazer com as informações que você tem, você passa a se sentir mais forte, mais empoderado"
O POVO - Como você vê essa nova geração no vôlei, tanto no masculino, como no feminino, e como você analisa o desempenho na última Olimpíada?
Fabi Alvim - É, o vôlei conseguiu estabelecer um espaço no coração das pessoas que gostam de esporte. Tirando o futebol, pode-se dizer que é o número um, né? Mas em consequência disso vem também uma responsabilidade, uma expectativa que as pessoas têm em relação ao vôlei. Acho que o mais bacana não são só as conquistas que a gente teve lá no início, o histórico, que começou a despertar um interesse de todo mundo no vôlei, mas acho que a constância, o fato de o esporte estar sempre brigando por medalha, isso faz com que as pessoas se interessem. Mas é uma responsabilidade enorme e a gente percebe que o mundo evoluiu em relação a 10, 15 anos atrás, e a gente vê os times mais homogêneos, mais parelhos. No masculino a gente tinha lá os favoritos, Brasil e Polônia, e eles nem subiram ao pódio, né?
Jogos Olímpicos, eles têm uma atmosfera diferente, na história sempre vão ter os favoritos, que é comum, mas acontecem surpresas. Não à toa é uma competição que tem esse olhar das pessoas e a curiosidade. Alguns questionam: "O que tem de diferente aí que se se joga a mesma coisa que nas outras competições?" Mas tem, de fato, uma atmosfera diferente.
Mas assim, eu acho que poderíamos ter ido um pouco melhor, né? Porque assim, das seis possibilidades que nós tínhamos, a gente trouxe apenas uma medalha, que foi no vôlei feminino. Acho que poderíamos ter ido um pouco melhor, tanto na quadra quanto no vôlei de praia, mas fazendo um balanço, acho que o vôlei tá sempre brigando, isso é o mais importante. A gente sai com esse gosto de que poderia ter sido melhor, mas pelo menos não saímos de mãos vazias, o vôlei feminino conseguiu fazer uma final olímpica novamente, totalmente fora dos prognósticos, mas esse é o tipo de surpresa que nos deixa muito feliz. Ver o time chegando, superando (expectativas) como foi, fazendo a final mais uma vez contra os Estados Unidos. Num balanço, a gente poderia ter ido melhor, mas não foge dessa tradição de brigar por medalha nos Jogos Olímpicos.
O POVO - Já que você citou o vôlei de praia, que é um esporte muito forte aqui no Ceará, o que você acha que faltou pro Brasil? Foram as outras seleções que cresceram?
Fabi Alvim - É difícil, né? O vôlei de praia é um esporte, para mim, completamente novo. E é um outro desafio que eu aceitei, né, eu tenho comentado vôlei de praia e me inserido dentro desse universo. Um esporte que eu tenho paixão, eu brincava quando era mais jovem, e lá no Rio e aqui no Ceará, por conta da praia, a gente tem um ambiente muito propício. Então é um esporte que eu sou fascinada, um esporte que tem tradição, também, que toda Olimpíada traz medalha, e, dessa vez, a gente teve um rendimento abaixo do que se esperava, até porque, eu volto a dizer, a distância pras outras equipes é cada vez menor.
Antigamente o vôlei de praia era muito dominado por Brasil e Estados Unidos no feminino e no masculino, e hoje em dia já não é mais assim. A gente já vê duplas da Letônia, times europeus que a gente não tinha ideia de que poderiam brigar, a dupla catari que jogou, enfim. Se a gente olhar com esse olhar mais crítico a gente vai perceber que globalizou entre as seleções, os times evoluíram. Na minha visão, não dá pra dizer o que faltou, mas eu percebi assistindo aos Jogos que o adiamento das Olimpíadas acabou tendo alguns pontos determinantes pra todo mundo, sem trazer só pro lado do Brasil. Acho que essa mudança deu uma bagunçada, sabe? Ficou muito mais igual, e assim, o vôlei de praia e o vôlei de quadra têm algumas partidas que são cruéis, quartas de final, oitavas de final, são jogos cruciais, que é um jogo eliminatório e se você perder, você vai embora pra casa. Então tem um componente especial ali, tem uma tensão maior naquele jogo, e é isso. Você perde um jogo desses, você volta pra casa sem ter nenhuma chance de brigar por nada. Mas é isso, pensar que tem menos um ano pro próximo ciclo, daqui a pouco já tem Olimpíada de novo e eu tenho certeza que a gente vai seguir brigando por medalha.
O POVO - Você é bicampeã olímpica, tem uma história no esporte, é considerada por muitos como a melhor líbero de todos os tempos. Qual foi o momento que mais marcou na sua carreira? Um momento que até hoje te emociona.
Fabi Alvim - Bom, obrigada pelas palavras. Eu fico muito feliz de ter tido a oportunidade de ter vestido a camisa do Brasil numa competição tão grande quanto as Olimpíadas, e subir no pódio é algo muito marcante. Eu tenho algumas passagens que me marcaram que são inesquecíveis, mas, sem dúvida alguma, a conquista da medalha de 2008 é muito especial porque ela vai ao encontro de quem pavimentou a estrada pra que a gente chegasse ali, de outras mulheres, aquela medalha teve um simbolismo muito grande em relação à luta das mulheres, mostrar que a gente também pode, porque a gente foi muito questionada enquanto essa questão do gênero, na hora do “vamo ver” a gente não conseguia. Aquela medalha além de pavimentar o caminho, ela faz uma afirmação potente e importante sem que a gente tivesse consciência daquilo. Então foi uma conquista que sempre que eu lembro é emocionante, é bonito. Se hoje eu tiver que escolher um momento mais especial, eu acho que é esse, por essa gama de mensagens que aquela vitória trouxe.
O POVO - Você citou sobre gênero, e gostaria de falar um pouco sobre a participação política dos atletas. O esporte ainda é um espaço conservador, mas você costuma se posicionar bastante, inclusive em relação a sua sexualidade. Como você vê o papel do esporte nessa mudança política, no contexto da orientação sexual, do machismo e da luta racial?
Fabi Alvim - Eu acho que a gente tem um problema. Primeiro, eu respeito quem não quer se posicionar, seja na questão de gênero ou política, porque a gente foi criado num ambiente muito conservador, onde o atleta tinha que treinar e jogar. Qualquer coisa externa, a gente não participava muito, ou seja, isso trouxe meio que uma distância. Esse movimento do atleta faz parte da nossa formação, e, hoje, a gente quer tá dentro, a gente quer falar de tudo e, muitas vezes, por sermos um país conservador, quem tá começando fica com medo de perder um patrocínio, de ser perseguido por isso ou por aquilo. Quando você vai ficando mais velho, você vai percebendo quem é você dentro do mundo e o que você pode fazer com as informações que você tem, você passa a se sentir mais forte, mais empoderado.
Eu tenho argumento pra debater, pra falar, e também sem botar a faca no pescoço de quem não tem, porque isso é uma construção. Então eu acho que o ambiente esportivo, ele tá caminhando pra uma mudança, para as pessoas se colocarem, para as pessoas exigirem direitos, cobrarem e serem cobradas, cobrados a gente sempre foi, por resultado. E eu acho que o fato de diminuirmos essa distância faz com que a gente entenda toda a estrutura, como funciona.
O esporte, ele é como um todo muito conservador, os ambientes são assim. Do diretor, do treinador, os atletas, a gente foi meio que catequizado de dizerem “o teu lugar de luta é ali”, e conforme você vai (se) conscientizando e outras pessoas vão falando sobre diversas questões, eu acho que hoje a gente tá conseguindo atingir mais atletas, é uma corrente que eu não vejo como a gente retroceder, sabe? É esse espaço que a gente ganhou pra poder falar sobre o que a gente quiser e não apenas de vitória, de derrota, justificar ou falar de resultado, ou vislumbrar o futuro. A gente tem direito como um cidadão de falar de política, de encontrar a melhor forma de falar sobre a sua sexualidade, e qualquer assunto que vier.
O POVO - Para finalizar, como foi a experiência de participar da Olimpíada estando desse outro lado, agora como comentarista.
Fabi Alvim - Olha, jogar é bem mais fácil (risos), por diversos motivos, e não imaginava que ia ficar tão nervosa. É natural, a gente tenta manter a lucidez ali no momento de falar, mas quando o microfone tá desligado, eu tô chutando cadeira, como qualquer outro torcedor, a gente quer que o nosso time vença, que o nosso time brigue por medalha. Mas é uma experiência muito bacana, eu sigo dentro do esporte sem tá diretamente preocupada com resultado. Tô preocupada em levar pras pessoas as mensagens, do que tá acontecendo na quadra, com o meu olhar. Mas é enriquecedor da mesma forma e é uma maneira de tá vivendo esse ambiente que é muito especial.