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Vencer o câncer de mama requer olhar inclusivo para a saúde
Reportagem Especial

Vencer o câncer de mama requer olhar inclusivo para a saúde

Todas as pessoas com mamas estão sujeitas a essa neoplasia, mas as mulheres negras e a população trans são frequentemente esquecidas nas campanhas de conscientização e nos serviços de saúde. O POVO discute as especificidades dessa neoplasia e onde precisamos avançar

Vencer o câncer de mama requer olhar inclusivo para a saúde

Todas as pessoas com mamas estão sujeitas a essa neoplasia, mas as mulheres negras e a população trans são frequentemente esquecidas nas campanhas de conscientização e nos serviços de saúde. O POVO discute as especificidades dessa neoplasia e onde precisamos avançar
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 A compreensão deveria ser direta: se uma pessoa tem mamas, ela tem o risco de desenvolver câncer de mama. Quanto maior a quantidade de tecido mamário e de fatores prejudiciais (ambientais e hereditários), maior o risco. Entretanto, o mês de outubro chega, as fachadas ficam rosas e surgem as campanhas que olham para uma parte da população: mulheres, brancas e cisgênero. Com isso, informações cruciais passam à margem, políticas públicas não se aprimoram e muitos deixam de se cuidar.

Você sabia que, no Brasil, mulheres negras diagnosticadas com câncer de mama vivem por tempo até 10% menor do que mulheres brancas? O dado é de uma tese de doutorado defendida em 2020 na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Além disso, a pesquisa observou que a proporção de mulheres negras diagnosticadas em estágio avançado da doença é maior.

Outro estudo publicado na revista científica Cancer, também no ano passado, indica que, após o diagnóstico, pacientes negras têm uma espera mais longa para o início do tratamento. Fabiana Tonelloto, chefe da seção de mastologia do Instituto Nacional do Câncer (Inca), expõe ainda que as mulheres negras têm menor acesso ao sistema de saúde; além disso tendem a ter tecido mamário mais denso, e a maioria dos exames existentes têm dificuldade em trazer um diagnóstico preciso.

“O câncer de mama acomete principalmente mulheres com mais de 50 anos, independente da raça. Porém alguns estudos apontam que mulheres negras tendem a ter câncer de mama mais jovens e em formas mais graves que em mulheres brancas”, aponta a ginecologista Lígia Mascarenhas Sousa. “Isso pode ter a ver com o tipo de trabalho, a que situações ela está exposta e também questões genéticas, mas ainda não temos uma resposta definitiva da ciência”, explica. 

Outra parte da população também ainda vive sem respostas certeiras. Será que o uso contínuo de hormônios – uma realidade para muitas pessoas transgênero – pode ampliar as chances de uma neoplasia maligna nas mamas? "O estrogênio é um promotor das alterações celulares que predispõem ao câncer de mama", explica Fabiana. "E a testosterona se transforma em estrogênio, ainda que numa quantidade menor. Mas de forma geral a doença pode, sim, se manifestar tanto em mulheres trans quanto em homens trans, especialmente os que não retiraram as mamas."

Como ela, a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) tem o mesmo entendimento. “Em um estudo observacional em Amsterdã, publicado em 2019, percebeu-se que, devido ao tratamento hormonal, houve um risco maior de câncer de mama em mulheres trans em relação aos homens cis”, cita Aline Rocha, presidente da SBM no Ceará. “Nesse estudo, de uma maneira geral, o risco de câncer de mama em pessoas trans permanece baixo. Mas elas devem fazer o rastreio de câncer de mama, contemplando as mesmas diretrizes de rastreamento da população geral.”

"Somos muito vulneráveis. Existem outras preocupações, e muitas não sabem que precisam fazer os exames. Às vezes percebo que os homens trans procuram mais os exames de mama, mas a maioria não vai ao médico", afirma Natasha Wonderfull, enfermeira e coordenadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros. "Tem exames que são difíceis de fazermos, ainda tem muitos profissionais que não estão preparados... Nosso País é muito defasado com a saúde da população trans", lamenta. 

Theodoro Rodrigues é um jovem trans que percebe no dia a dia os prejuízos de um sistema de saúde precisa avançar na inclusão. "É extremamente doloroso saber que devemos ter cuidados específicos porém não contamos com profissionais preparados para nos atender", aponta. "Imagina o tanto que é complexo: tenho compreensão da importância da prevenção, porém tenho muita disforia, particularmente com essa parte do meu corpo. É algo doloroso olhar no espelho, e imagine fazer o autoexame, tocar..."

"Lutamos todos os dias para acessar e acreditamos no SUS, porém a cada tentativa, cada não, porta na cara nos adoece, principalmente em relação a nossa saúde mental", conta lembrando que dezenas de pessoas, em muitos espaços de cuidado com a saúde, sofrem discriminação desde a portaria ao técnicos da saúde e até mesmo outros usuários.  "Cada um de nós temos nossas especificidades. As campanhas de prevenção devem sair da caixinha; o outubro rosa, assim como novembro azul, é para homens e mulheres. Desta forma vamos naturalizar a nossa existência."
 

"A gente tem que começar a pensar política pública olhando cada segmento de uma forma diferenciada, para que todo mundo possa chegar no objetivo final, que é ter saúde integral." Natasha Wonderfull, coordenadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros


No Ceará, ainda não há estatísticas sobre o câncer de mama entre a população trans. Já as mulheres negras passam por situações semelhantes a todo o País: menor renda e menor acesso à informação e à saúde, como apontaLuiz Porto, mastologista e coordenador do Comitê Estadual de Controle do Câncer.

Para Lígia, o primeiro passo necessário é cumprir o que está na Constituição: a saúde é “um direito de todo mundo e tem que ser equitativo e universal”. “A gente tem que começar a pensar política pública olhando cada segmento de uma forma diferenciada, para que todo mundo possa chegar no objetivo final, que é ter saúde integral”, opina. "E precisamos fazer ações de saúde voltadas para essas populações. Tanto para chamar para o posto de saúde, quanto de ter melhor formação dos profissionais", completa Natasha.

 

 

Exame genético e novas drogas expandem as possibilidades de cura

Ao longo dos últimos anos, o protocolo de mamografia, mastectomia, quimioterapia e radioterapia ganhou rotas alternativas para o diagnóstico e tratamento do câncer de mama. Mapeamento genético, terapia-alvo, imunoterapia e hormonioterapia estão cada vez mais presentes no vocabulário de especialistas e pacientes.

Hoje entende-se que o câncer de mama é uma doença múltipla. Os tumores são divididos em pelo menos três categorias e para cada um deles, dependendo do quadro clínico do paciente e do estágio da neoplasia, novas terapias estão sendo desenvolvidas. “Avanços substanciais ocorreram nas últimas décadas, com drogas que potencializam a hormonioterapia, que promovem maior bloqueio de receptores e anticorpos monoclonais conjugados à quimioterapia”, afirma a oncologista Angélica Nogueira, membro do comitê científico da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama).

Outra tecnologia são testes que detectam mutações hereditárias nos genes BRCA1 e BRCA2. Clarissa Picanço, oncogeneticista do Instituto do Câncer do Ceará (ICC), explica que 10% dos casos de câncer de mama são hereditários, e os exames genéticos conseguem identificar se o paciente tem maior propensão a desenvolver câncer.

Ela explica que esse tipo de exame não é feito para diagnóstico e é recomendado em casos específicos. “Aqui no Hospital Haroldo Juaçaba temos um projeto de pesquisa em oncogenética no qual oferecemos este estudo molecular para os pacientes que preenchem os critérios clínicos para síndromes de predisposição ao câncer hereditário”, conta. Entre tais critérios estão pacientes que tenham desenvolvido câncer com menos de 45 anos, tenham histórico de diversos tumores na família ou desenvolveram algum câncer raro (como no ovário, no pâncreas e câncer de mama masculino).

Desde 2018, a pesquisa mapeou 512 famílias. No período, foram identificadas cerca de 60 famílias com mutações características da Síndrome Hereditária do Câncer de Mama e Ovário. “A partir daí, é possível traçar estratégias de prevenção diferenciada e até cirurgias redutoras de risco, como a mastectomia profilática”, indica Clarissa.

Mesmo com a evolução científica, Angélica Nogueira chama a atenção para a importância da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer por meio dos exames de rotina. “Infelizmente há significativas diferenças no acesso. O sistema de saúde público brasileiro não incorporou as novas tecnologias com a mesma velocidade que o privado”, aponta.

 

 

Câncer de mama não tem idade

 

A maioria dos tumores nas mamas surgem após os 50 anos, dizem as estatísticas. Recentemente, a Ciência vem apontando que em mulheres negras eles podem aparecer antes dos 40. Ainda assim, Priscila de Jesus não imaginava que o autoexame aos 19 seria o início de diversos exames e tratamentos.

Priscila de Jesus, de 23 anos, natural de Salvador-BA, descobriu câncer de mama aos 19 anos. É co-fundadora do projeto (Foto: Fernanda Barros| Especial Para O Povo)
Foto: Fernanda Barros| Especial Para O Povo Priscila de Jesus, de 23 anos, natural de Salvador-BA, descobriu câncer de mama aos 19 anos. É co-fundadora do projeto

"Cocei o meu seio e percebi que estava algo diferente, porém não passou a ideia de ser um câncer de mama, devido à minha idade", conta. "Fiz uma ultrassonografia e fui tranquilizada pela médica que disse: 'É apenas um nódulo comum, você é nova para ser câncer'." Como o nódulo continuava crescendo, ela buscou uma mastologista e fez exames de investigação. "Depois de vários meses, recebi o diagnóstico de carcinoma ductal invasivo no grau 3 e precisaria começar imediatamente o meu tratamento."

Para uma jovem que não tinha passado por uma cirurgia, ir à sala de operação foi assustador. Ainda assim, o período mais difícil veio depois: o tratamento quimioterápico. “Fiquei bastante debilitada. Sempre fui uma pessoa ativa, então foi bem complicado, incluindo psicologicamente”, lembra.

 

 

Naquele momento, a rede de apoio foi essencial. “Amigos, família, profissionais de saúde e pessoas que eu não tinha um vínculo diário, mas estavam disponíveis e emanando bons pensamentos", cita a estudante de Geografia e empreendedora, hoje aos 23 anos. "Ter acompanhamento psicológico foi algo que me ajudou bastante também. E a minha fé em Deus que era constante", completa.

 

 

O ponto de partida para uma rede de acolhimento e representatividade

 

Carolina Magalhães tinha 29 anos quando, fazendo um autoexame, sentiu o nódulo no seio. Na ida ao mastologista, a esperança era que fosse mais um nódulo benigno, como o que tinha tido dez anos antes. “Porém minhas biópsias todas davam inconclusivas... Fiz a primeira cirurgia sem saber, de fato, que estava com câncer”, conta.

Foi então que começou um vai e vem. O material foi analisado em dois laboratórios em Salvador, cada um com um resultado diferente. Uma biópsia, realizada em São Paulo, confirmou a malignidade. “A médica sugeriu avaliar a tireóide, porque o câncer poderia ter vindo de lá. Tinha um nódulo benigno e achamos melhor retirar”, relata. A nova cirurgia veio quatro meses depois, e nesse tempo o câncer reapareceu na mama.

A publicitária e escritora Carolina Magalhães descobriu um câncer na mama aos 29 anos. Durante o tratamento criou, com duas amigas, o projeto (Foto: Arquivo pessoal/ Bruno Ricci)
Foto: Arquivo pessoal/ Bruno Ricci A publicitária e escritora Carolina Magalhães descobriu um câncer na mama aos 29 anos. Durante o tratamento criou, com duas amigas, o projeto

“A parte mais difícil com certeza foi a recidiva. Junto com o retorno da doença, veio um exame que constatou um nódulo no fígado. E, para variar, inconclusivo. Até descobrir que não era metástase, foi muito tenso”, lembra. Quimioterapia, outra cirurgia e radioterapia foram o plano de tratamento, além de quase cinco anos de hormonioterapia.

Aos 34 anos, a publicitária e escritora afirma que tudo tem um lado bom, um aprendizado. “Foi bom ter o apoio de minha família, foi bom ter amigos verdadeiros por perto... E no meio da quimioterapia eu me casei. Então, tenho muitas memórias boas.” E não foi só no âmbito pessoal que as conquistas aconteceram.

Desde a descoberta do nódulo, Carolina sentiu falta de algo crucial: representatividade. Quando começou a falar sobre câncer de mama nas redes sociais, outras mulheres negras encontraram um espaço para compartilhar suas histórias e dividir suas experiências com lenços, turbantes, cuidados com a pele, prevenção e acolhimento. Com duas amigas que também são pacientes oncológicas criou o projeto “Se cuida, preta”, no Instagram.

“Me sinto feliz por ser referência para alguém, mas não quero estar só. Quero que mais mulheres negras tenham voz, tenham espaço, visibilidade”, expõe. “Quero que se torne comum e não algo extraordinário."

 

  

Prevenir e detectar precocemente é fundamental

 

A prevenção do câncer de mama não é totalmente possível em função da multiplicidade de fatores relacionados ao surgimento da doença. De modo geral, ela baseia-se no controle dos fatores de risco e no estímulo aos fatores protetivos. Confira alguns deles:


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