Logo O POVO+
O país-reality: 20 anos que mudaram a TV brasileira
Reportagem Especial

O país-reality: 20 anos que mudaram a TV brasileira

Duas décadas após a estreia de "Casa dos Artistas", primeiro reality show de confinamento do Brasil, o gênero televisivo firma popularidade entre o público nacional

O país-reality: 20 anos que mudaram a TV brasileira

Duas décadas após a estreia de "Casa dos Artistas", primeiro reality show de confinamento do Brasil, o gênero televisivo firma popularidade entre o público nacional
Tipo Notícia Por

 

 

Há certo fascínio em observar a natureza humana através de lentes. Em se enxergar dentro de uma tela e, ao mesmo tempo, colocar uma lupa nos acontecimentos cotidianos ao redor. Com base nesta provocação, o conceito do cinema direto, da década de 1950, propôs a diminuição das intervenções dos diretores e a inclusão de depoimentos de entrevistados nos filmes. Foi a partir deste experimento que o cineasta Craig Gilbert decidiu investigar um novo gênero televisivo: o reality show.

Com 12 artistas no elenco, a "Casa dos Artistas" foi o primeiro reality show de confinamento do País(Foto: Reprodução/SBT)
Foto: Reprodução/SBT Com 12 artistas no elenco, a "Casa dos Artistas" foi o primeiro reality show de confinamento do País

O formato chegou ao Brasil nos anos 2000 com a sinopse instigante de “No Limite”. Os participantes deveriam testar suas limitações por meio de atividades de resistência em cenários paradisíacos e desertos. O sucesso desencadeou outro programa: a “Casa dos Artistas”, lançado no dia 28 de outubro de 2001. O público brasileiro via pela primeira vez um reality de confinamento, formado por 12 celebridades “vigiadas” pelos olhos atentos dos telespectadores. Mais de duas décadas depois, este gênero se difunde em narrativas do mundo externo e forma uma das principais apostas audiovisuais.

O modelo foi posto à teste pela primeira vez em "An American Family" - "Uma Família Americana", em tradução livre - produzido pela rede de TV PBS e exibido em 1973. O enredo apresentava as narrativas cotidianas da família Loud em 1970, mas não obteve êxito. A “paleotelevisão”, como define o filósofo e linguista Umberto Eco, se fortalecia. “Era um produto que tinha metáfora filosófica de valor, como se fosse uma janela aberta para o mundo. Por isso, escondia seus aparatos, os bastidores, para criar uma ilusão de realidade”, explica Naiana Rodrigues, professora do curso de jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da Universidade de São Paulo (USP).

Família Loud, protagonista de "Uma Família Americana", primeiro programa do gênero(Foto: John Dominis)
Foto: John Dominis Família Loud, protagonista de "Uma Família Americana", primeiro programa do gênero

Já na virada dos anos 90 para os anos 2000, o escritor caracteriza outra movimentação: a “neotelevisão”. Nesta época, mostrar aquilo que talvez fosse direcionado ao sigilo trazia credibilidade ao público. Surge, então, o período ideal para que o reality pudesse conquistar espaço na grade comercial. Atualmente, os efeitos e consequências desta erupção são notórios. Foram os realities que trouxeram visibilidade para nomes como a atriz Grazi Massafera, o cantor Thiaguinho, a apresentadora Sabrina Sato e o político Jean Wyllys, para citar alguns.

"Eu acho que o sucesso desse modelo, que só no Brasil já tem uns 20 anos, se deve ao aspecto lúdico desses programas", opina Naiana. O que envolve, entretanto, esta dimensão? "São jogos, de convivência, de estratégia, que você tem disputa por prêmios ou por visibilidade midiática, social. O lúdico trabalha com os sonhos, mexe com aspectos psicológicos diversos, desde a identificação, o sonho, o divertimento, o prazer".

A pesquisadora Naiana Rodrigues estudou a criação da "Casa dos Artistas" em dissertação(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal A pesquisadora Naiana Rodrigues estudou a criação da "Casa dos Artistas" em dissertação

Estes elementos, marca a professora, estão presentes independente das diversas roupagens que os programas vão ganhando. O reality de maior audiência no País é o Big Brother Brasil (BBB), inspirado no personagem O Grande Irmão, do clássico "1984", de George Orwell. Nele, a convivência dos participantes é o ponto chave, como também acontece em “A Fazenda”. Entre a lista incontável de categorias, algumas podem abordar talentos, como “The Voice” ou “Masterchef”; relacionamentos, como “The Power Couple” e “De Férias com o Ex”; e até mesmo situações extremas, como “Jogo Duro”.

Para ganhar a audiência e conquistar fãs em meio à concorrência, é necessário que o elenco seja escolhido de maneira estratégica. De acordo com o psicólogo Carl Jung, existem 12 arquétipos de personalidade que se repetem em todas as culturas. Cada participante, então, entra na dinâmica com uma história, composta por múltiplos arcos e contextos. "Você coloca pessoas para disputarem, você junta pessoas com perfis diferentes, propensas a gerar polêmicas, embates. O confronto é o elemento principal desses realities", complementa Naiara.

 

 

 

Reality muda com nova dinâmica das mídias sociais 

 

"Se essa é a intenção / Toda essa pressão e tensão / Sinto uma sensação de que foi tudo em vão / Quanto tempo ainda tenho? Eu vou com quem e quem são?". Os primeiros versos da música "Dilúvio", da rapper Karol Conká, expõem os sentimentos controversos causados pelos combates que viveu durante o Big Brother Brasil 21 (BBB 21). Após episódios de conflito com os demais jogadores, Karol foi eliminada com 99,17% dos votos - o maior índice de rejeição da história do programa.

A edição da cantora ficou marcada pelo “cancelamento”, termo presente - e temido - nos últimos formatos do gênero. Todo e qualquer erro no jogo pode levar à destruição dos participantes, sejam eles anônimos ou artistas. Em paralelo, as pautas sociais são amplificadas e temas como racismo, homofobia e racismo ganham novas dimensões dentro dos programas.

"Tem havido uma cobrança por parte das audiências em relação à coerência dos discursos produzidos pelos influenciadores e uma consciência política, ainda que mínima, de que informação é poder", informa a professora do curso de Sistemas e Mídias Digitais da Universidade do Ceará (UFC) Georgia Cruz. Os grupos sociais, portanto, cobram mais ativamente quem alcança a popularidade ou são "sustentados lá por esse público".

A professora Georgia Cruz pontua a cobrança do público nas mudanças dos temas dos reality shows(Foto: Arquivo pessoal )
Foto: Arquivo pessoal A professora Georgia Cruz pontua a cobrança do público nas mudanças dos temas dos reality shows

"As mídias podem influenciar nesses movimentos pela projeção que dão para determinadas mensagens, além do modo como os assuntos pautados reverberam em todo o ecossistema midiático", prossegue. Georgia reforça que, ao longo desses mais de 20 anos de realities, diversos foram os casos de assédio e discurso de ódio, mas somente agora os participantes são punidos pelos atos. “Existe uma demanda do público para que as produções midiáticas sejam mais socialmente responsáveis, para que discursos e condutas violentas não sejam abonados com visibilidade e recompensados financeiramente".

Além disso, embora uma parcela desses jogadores permaneçam em confinamento, todos carregam “valores, ideologias e visões de mundo”, acrescenta Naiana. A professora de jornalismo frisa que, embora essas pautas sociais estejam inseridas no gênero, os realities continuam reproduzindo padrões. “É um modelo que faz sucesso pela reprodução do modo capitalista, que se ancora na repressão de um grande número de pessoas que não são consideradas padrões ou normais para a sociedade do desempenho”, conclui.

 

 

 

 Fenômenos midiáticos, os influenciadores puxam audiência 

 

Da mesma maneira, a exposição pode alavancar a trajetória de um participante. Um exemplo claro é a vencedora do último Big Brother Brasil (BBB 21), a advogada Juliette Freire. A também maquiadora cumpriu uma jornada excepcional na edição. Conquistou mais de 20 milhões de seguidores, ganhou o coração de famosos e saiu da casa mais vigiada do País com contratos milionários. Grande parte dos feitos foram provenientes das redes sociais, componente fundamental na constante reformulação do reality show.

A advogada Juliette Freire foi a campeã do Big Brother Brasil 2021(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação A advogada Juliette Freire foi a campeã do Big Brother Brasil 2021

Se antigamente o lucro dos ex-integrantes vinha de ensaios em revistas para adultos, como a Playboy ou GQ, e presença VIP em eventos, eles agora contam com a chance de alcançar o posto de influenciadores e o benefício do patrocínio de marcas. Depois da participação da cantora Manu Gavassi no BBB, até o processo de seleção mudou. Para os modelos que possuem votação do público, é comum que os conteúdos dos participantes fiquem prontos para serem publicados por administradores exclusivos de suas redes sociais. Assim, já se constrói uma legião de fãs que deverá passar os próximos episódios apoiando os escolhidos.

Para o psicanalista Mauro Reis, grande parte do sucesso do formato vem da identificação do público. "Muitas vezes aquele programa busca apresentar uma verossimilhança que faça com que pareça para o telespectador que as coisas que estão acontecendo são reais. Têm determinantes fatores para que isso aconteça e, a partir do momento que o espectador vai percebendo, é que o programa se desenvolve", aponta. Ele considera esse engajamento como um mecanismo psíquico, no qual “a pessoa deposita em alguém que é admirada, muito estimada, características que ela aspira ou considera muito valiosas".

 

"As situações dos programas também são sobredeterminadas por fatores que fogem do controle dos participantes" Mauro Reis, psicanalista

 

A hibridização midiática, ou seja, o alcance conquistado em diferentes mídias, faz com que os realities se tornem verdadeiros espetáculos. A grande produção intensifica a proporção dos acontecimentos e potencializa a comunicação entre quem produz e quem assiste. As interações espontâneas do público aumentam, criam uma cultura própria do gênero e reproduzem uma cadeia de sentidos para diversos segmentos de espectadores.

O psicanalista Mauro Reis considera a identificação do público um fator para o sucesso(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal O psicanalista Mauro Reis considera a identificação do público um fator para o sucesso

Mauro relembra, entretanto, que a maioria dos programas não possuem acompanhamento por 24 horas e passam por roteiros, edições e cortes. "Dizer que as histórias que esses programas contam não são a realidade também seria um grande exagero, porque são eventos que estão de fato acontecendo, filmados em cima de situações que as pessoas que estão participando vivem e viveram. Mas, assim como a nossa realidade é sobredeterminada por fatores que fogem do nosso controle, as situações do programa também são sobredeterminadas por fatores que fogem do controle dos participantes".

O olhar da câmera, pensa o psicanalista, combinado com a ideia de exibição contínua pode ser um catalisador para funções psíquicas. O experimento também pode ascender questões inconscientes e despertar ações pela primeira vez. "A pessoa buscou estar ali e isso pode afetar cada um de formas muito variadas. É aí onde está uma das riquezas desse formato. Assim como existem muitos sujeitos, existem muitas formas das pessoas serem afetadas. Cada pessoa passa por isso de uma forma diferente e a gente pode assistir isso como telespectador”, comenta.

 

 

Marcas aproveitam o aumento da exposição 

 

O alcance chama a atenção de marcas, que utilizam o espaço televisivo como vitrine de exposição para os produtos. Segundo pesquisa do Kantar Ibope Media, a publicidade em reality shows teve um aumento de 26% neste ano em comparação a 2020. Uma vantagem dos canais de comunicação é que eles são, naturalmente, um espaço emotivo para as audiências, de acordo com o professor e consultor de marketing W. Gabriel.

"Dessa forma, as marcas podem aproveitar o momento para fixar muito mais seu posicionamento, ganhando mais visibilidade e, principalmente, mapeando a audiência para oferecer uma continuidade de publicidade para ela, durante ou após o reality". Por isso, ressalta o profissional, a fórmula é um sucesso no marketing digital. As empresas deixam de aparecer apenas nas propagandas e integram as provas, as festas, a rotina. Tudo, claro, feito de acordo com a proposta de cada organização. "É necessário que essa marca veja se o espaço está adequado ao que promove de valores éticos, morais e de posicionamento de mercado".

Para o consultor de marketing W. Gabriel, o gênero televisivo é uma vitrine para as marcas(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Para o consultor de marketing W. Gabriel, o gênero televisivo é uma vitrine para as marcas

No primeiro momento, explica W., as marcas desejam que as pessoas vejam que elas estão presentes agregando valor. Consequentemente, cresce o número de interações dos possíveis clientes. Já o próximo passo é reforçar o pensamento do público com a hipersegmentação dos processos. “Pode vir com banners, vídeos, links patrocinados e outros modelos de anúncios aparecendo nas redes sociais, Google e demais espaços online”.

Uma vez vistas e lembradas, as empresas continuam investindo para ganhar validação e gerar lucro. "Obviamente, os valores de investimento são altíssimos, mas também a audiência é explosiva, dando margem para que muitas marcas possam se divulgar em escala nacional e ganhar mais envolvimento. É um investimento que vale a pena", garante o consultor.

 

 

O jogo dos realities no streaming

 

Assim como os outros gêneros audiovisuais, os realities shows não escaparam das mudanças causadas pelo streaming. De acordo com dados da pesquisa The State of Mobile 2020, o Brasil é o terceiro país que mais consome este tipo de serviço no mundo. No mês de outubro, a estreia de “Casamento às Cegas Brasil”, na Netflix, se tornou o principal assunto das redes sociais, assim como as versões inéditas de “Brincando com Fogo” e “The Circle”. O Amazon Prime Video, por exemplo, também aposta no formato com programas como “Soltos em Floripa”.

“Vivemos um cenário de migração de conteúdos da TV para as plataformas de streaming, sejam de produções da TV aberta ou fechada”, diz a professora Georgia Cruz. Neste contexto, analisa a profissional, as empresas de mídia devem melhorar o produto inicial para atrair o público para opções pagas. Quando se trata dos realitys produzidos pelo streaming, o foco é: polêmicas, competições e histórias de vida.

"Acho que a principal mudança que podemos identificar pode ser no sentido de como a TV vai se tornar cada vez mais uma janela de divulgação para os conteúdos adicionais disponíveis nas plataformas de streaming", expande Georgia. Os espectadores, entretanto, não devem ser incompatíveis: há reality para todo mundo. "A chave é pensar em estratégias de comunicação que entreguem às diversas faixas de público algo interessante e com o qual as pessoas estão dispostas a interagir".

O que você achou desse conteúdo?