Desde o início da vacinação contra a Covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) vinha avisando: "Ninguém estará seguro até que todos estejam seguros", evidenciando os riscos de parte da população global não ter acesso igualitário às vacinas. A recente identificação da variante Ômicron, sequenciada por cientistas da África do Sul, trouxe novamente o assunto à tona, com um alerta para a importância da equidade vacinal.
Apesar do avanço da vacinação em diversas regiões, com países ultrapassando 80% da população totalmente vacinada — como é o caso de Cuba (81,2%), Chile (83,8%), Portugal (87,7%), Emirados Árabes Unidos (88,4%) e Singapura (91,9%) — ainda há nações que não conseguiram vacinar totalmente nem 10% dos cidadãos, apontam dados do site Our World in Data, da Universidade de Oxford. Nesse segundo grupo estão países como Gâmbia (8,9%), Afeganistão (8,6%), Senegal (5,3%), Somália (3,4%) e Madagascar (1,7%).
São os países de baixa renda que estão ficando para trás — situação que o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, chamou de "apartheid da vacina". Neles, cerca de três pessoas a cada 100 estão totalmente vacinadas contra a Covid-19, enquanto nos países de alta renda esse índice é de aproximadamente 65 pessoas a cada 100, segundo dados da OMS, segundo a classificação do Banco Mundial.
A identificação da Ômicron, classificada como
"Onde há infecções, existe a possibilidade de termos novas variantes surgindo", destaca o virologista Anderson F. Brito, pesquisador científico do Instituto Todos pela Saúde (ITpS). "O vírus só sofre mutações quando entra no corpo de uma pessoa. É nesse momento que ele acumula essas mutações", explica.
Em um cenário de pandemia, que por definição se refere à disseminação mundial de uma doença, novas variantes surgem com frequência e "competem" umas com as outras para se impor. "Só chegam até nós aquelas que são detectadas", aponta o epidemiologista Rômulo Paes, pesquisador do Instituto René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais, e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
"Essas variantes podem ter certos comportamentos que são complexos, como uma maior transmissibilidade ou maior escape imunológico", complementa Mellanie Fontes-Dutra, biomédica e coordenadora da Rede Análise Covid-19.
A inequidade no acesso à vacina, portanto, está prolongando a pandemia de Covid-19. Esse foi um ponto destacado por Carissa F. Etienne, diretora da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS), em coletiva de imprensa realizada na última quarta-feira, 1º de dezembro. "É por isso que é crucial expandirmos a vacinação para todos", defende. Até o momento, a América Latina e o Caribe têm 54% da população totalmente vacinada. "Nossa região continua especialmente vulnerável", destacou a diretora.
Professora do programa de pós-graduação em Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Caroline Filla Rosaneli chama atenção, ainda, para outras desigualdades no acesso à vacina: pessoas sem documentos ou moradia, por exemplo, são "invisíveis". "Elas não são computadas nesse eixo '83% vacinados'", exemplifica. "Esse cenário que se monta de vacinas é muito (voltado) para aqueles que já têm acesso."
A desigualdade vacinal, para a docente, é consequência da dificuldade de as pessoas se reconhecerem como parte de um coletivo — da mesma forma para os governos. "Há um espaço de fronteiras geográficas, e nós não nos reconhecemos através do outro. Então, é um problema do outro: do outro país, da outra rua, da outra cidade, da outra unidade de saúde, mas eu sou outro também."
Para Rômulo Paes, que é membro do Policy Committee da Federação Mundial de Associações de Saúde Pública (WFPHA, em inglês), a Ômicron está mostrando "um novo percurso da pandemia", no sentido mais geral. "Nós estamos muito interligados. Então, se nós não resolvermos o problema do planeta, os países vão continuar sofrendo."
Não é porque a variante Ômicron foi sequenciada por cientistas da África do Sul que se pode dizer que ela surgiu nesse país. A origem dela, na realidade, é incerta. Dados provenientes da vigilância genômica apontam a possibilidade de a variante ter circulado por meses em outras regiões até ter sido detectada.
"Então, esse vírus estava passando por fora do nosso radar de detecção até que eventualmente foi introduzido na África do Sul, que tem uma boa vigilância genômica e finalmente o detectou", explica o virologista Anderson F. Brito. De acordo com o pesquisador, isso aponta o problema da falta de vigilância genômica em muitas regiões: "outro aspecto de desigualdade".
Foi para evitar estigmas e preconceitos contra os países que primeiro detectam as variantes que a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a utilizar letras do alfabeto grego para identificá-las. Porém, logo após o anúncio da Ômicron, além de passarem a chamá-la de "variante africana", diversos países — incluindo o Brasil — bloquearam voos da África do Sul e de países vizinhos.
A medida "faz até algum sentido" na primeira semana, segundo Brito. Mas o pesquisador considera a decisão "precipitada e equivocada" a longo prazo, devido à facilidade com que o vírus se espalha. "Bloquear apenas os voos dos países que primeiro detectam variantes é uma ação meramente simbólica, no longo prazo, e em muitos países é uma medida usada mais para passar uma impressão de que uma ação enérgica está sendo tomada", avalia.
Segundo o epidemiologista Rômulo Paes, um bloqueio geral funcionaria, mas um bloqueio seletivo é "pouco eficaz". "Ele denota mais uma certa repetição de preconceitos coloniais do que alguma efetividade em termos de barreira sanitária", afirma.
Ayoade Olatunbosun-Alakija, co-presidente da Africa Vaccine Delivery Alliance, tem falado nas redes sociais e em entrevistas sobre essa reação do mundo à Ômicron. A situação mostra, de acordo com ela, que "o mundo talvez teria trancado a África" caso o Sars-Cov-2 tivesse sido identificado inicialmente naquele continente, no começo de 2020.
"Países africanos, que têm décadas de experiência no combate ao Ebola, ao HIV/Aids e à pólio com sucesso, estão usando sua tecnologia e know-how para monitorar o vírus. Mas, ao invés de serem chamados para contribuir para o rastreio da disseminação, nosso continente tem sido recompensado com exclusão", escreveu Ayoade Olatunbosun-Alakija, em artigo publicado no The Guardian.
Os problemas enfrentados pelos países com baixa cobertura vacinal não são os mesmos. Enquanto para alguns faltam vacina e infraestrutura, para outros sobra desinformação
Pelo nível de exposição à Covid-19, os profissionais de saúde foram considerados público prioritário para receber a vacina contra a doença. Mas, no continente africano, apenas um em cada quatro profissionais de saúde está totalmente vacinado. Esse balanço, informado em 25 de novembro pelo escritório regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a África, é mais uma mostra da desigualdade vacinal.
São vários os desafios para a campanha de vacinação no continente. O epidemiologista Rômulo Paes, membro do Policy Committee da Federação Mundial de Associações de Saúde Pública (WFPHA, em inglês), explica que, além da falta de vacinas, há países africanos na África Subsaariana — com exceção da região sul — com diversos problemas logísticos.
"Existe um problema de transporte que é gravíssimo. Países como o Congo não têm estradas. As estradas são muito ruins e perigosas, então a principal forma de transporte é através dos rios, principalmente pelo rio Congo. Isso acontece em vários lugares", exemplifica Paes, pesquisador do Instituto René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais, e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Em setembro, Augusto Paulo Silva, pesquisador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) para Assuntos sobre a África e para a Cooperação África & Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), apontou, entrevista à Agência Fiocruz de Notícias, problemas estruturais que têm impacto na vacinação contra a Covid-19.
"Um programa de imunização tem toda uma logística por trás. E essa logística tem gastos. Por isso, muitos desses 55 países tiveram que devolver vacinas porque não conseguiram aplicá-las por falta de dinheiro para sustentar as campanhas", afirmou.
"Precisa ativar os mecanismos de cooperação técnica internacional para ajudar esse esforço global, direcionado para a África, tanto na oferta de vacinas quanto na forma de treinar a população e transferir tecnologia em termos de logística", pontua Paes.
Em comunicado conjunto, o African Vaccine Acquisition Trust (Avat), os centros africanos de Controle e Prevenção de Doenças, reunidos no Africa CDC, e o Covax Facility— consórcio criado pela Aliança para as Vacinas (Gavi) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) — afirmaram que a maioria das doações de vacinas contra a Covid-19 para a África "tem sido feita com pouca antecedência e com vida útil curta". Isso, segundo as organizações, aumenta "exponencialmente" a carga logística sobre os sistemas de saúde.
Em outros locais do mundo, as dificuldades enfrentadas para vacinar a população são outras. Em países como Bulgária e Eslováquia, o desafio é a hesitação vacinal. "A pessoa não é contra vacinas, mas, por algum motivo, está um pouco hesitante em relação àqueles imunizantes especificamente. A essas pessoas, o que podemos oferecer é informação", aponta o virologista Anderson F. Brito, pesquisador científico do Instituto Todos pela Saúde (ITpS).
Também há resistência à vacinação em países do Caribe, apontou o vice-diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Jarbas Barbosa, em coletiva de imprensa na última quarta-feira, 1º de dezembro.
Como principal empecilho para a campanha da Covid-19 nas Américas, Barbosa apontou a prioridade, por parte dos produtores, para a entrega de vacinas aos países que fizeram compras diretas, e não por meio do Fundo Rotatório, mecanismo de compra para o Covax Facility para os países da região das Américas.
A iniciativa, criada em 1977, realiza cooperação técnica entre os países da região para atividades relacionadas à vacinação — como revisão de planos nacionais de imunização e treinamento de profissionais.
"É graças a esse fundo que a América Latina e o Caribe têm sido pioneiros em implantar novas vacinas, como a vacina contra a meningite meningocócica, a vacina contra o vírus HPV. (...) Nossa região foi a primeira a implantar porque, com a compra regional feita pelo Fundo Rotatório, consegue-se um preço mais acessível", explicou.
Na segunda-feira, 29, em discurso na abertura do Fórum de Cooperação China-África, o presidente da China, Xi Jinping, anunciou a doação de 1 bilhão de doses de vacina contra a Covid-19 para o continente africano. Anteriormente, o país já tinha fornecido quase 200 milhões de doses. Para o epidemiologista Rômulo Paes, essa "é uma informação bem-vinda" e deve servir de estímulo para que outros países façam o mesmo. "Isso se aplica ao Brasil. O Brasil precisa ter mais responsabilidade com os outros países", afirma o pesquisador.
Superados problemas iniciais com a campanha de vacinação contra a Covid-19, Paes defende que o Brasil tem que "pensar grande". " No primeiro momento houve uma desorganização muito grande tanto na produção inicial, na aquisição de vacinas e também na distribuição. Isso está resolvido. O Brasil conseguiu superar essas dificuldades todas, apesar da descoordenação inicial, e agora tem que pensar grande. Não pode pensar apenas na resolução do seu problema, mas também na resolução do problema global", defende.
Criado com objetivo de assegurar a distribuição equitativa da vacina no mundo, o Covax tem enfrentado alguns problemas para fazer a entrega das doses. O primeiro deles, explica Paes, foi a dificuldade dos grandes produtores para cumprir os cronogramas. "O segundo grande problema foi os países mais ricos reterem as vacinas nos seus territórios para vacinar prioritariamente as suas populações", acrescenta.
O terceiro, conforme o pesquisador, é a retomada do compromisso de fazer a distribuição. "Então, nesse sentido, esse anúncio governo chinês é muito positivo, porque faz uma cobrança, na prática, de uma maior solidariedade na direção dos países mais pobres desse continente", avalia o pesquisador.
Em nota enviada ao O POVO, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) afirmou que, desde que sejam atendidas as necessidades estabelecidas pelo Programa Nacional de imunizações (PNI) do Ministério da Saúde para o Brasil, e em acordo com o parceiro tecnológico (AstraZeneca), existe a possibilidade de futuramente a vacina Covid-19 ser exportada.
"Além disso, a instituição foi selecionada em 21 de setembro pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como centro para desenvolvimento e produção de vacinas com tecnologia de RNA na América Latina. A seleção foi resultado de uma chamada mundial lançada em 16 de abril de 2021, cujo objetivo é aumentar a capacidade de produção e ampliar o acesso às vacinas contra a Covid-19 nas Américas", acrescenta o comunicado.
A vacina candidata, baseada na tecnologia de RNA auto-replicativo, está em fase de estudo pré-clínico. "Uma vez desenvolvida, a vacina candidata passará pelo processo de pré-qualificação da OMS. Para assegurar o acesso equitativo, a vacina desenvolvida será oferecida aos estados-membros e territórios da Opas por meio de seu Fundo Rotatório", complementa.
Como parte do escopo do projeto apresentado à OMS, a Fiocruz se comprometeu a compartilhar conhecimento para a produção da vacina com demais laboratórios da região, garantindo a transferência de tecnologia para ampliar a capacidade produtiva regional.
Questionado pelo O POVO sobre a existência de alguma iniciativa do Governo Federal para doação de vacinas ou realização outras ações para colaboração com outros países, a fim de promover a equidade no acesso às vacinas globalmente, o Ministério da Saúde (MS) não respondeu até o fechamento desta reportagem. (Com Agência Brasil)