Desde o início de 2021, a alimentação da família de Antônia Alzivera da Silva Cabral, 61, depende das doações que ela consegue em um dos sinais de trânsito da rotatória Manoel Dias Branco, no bairro José Bonifácio. A mulher vive com outras 10 pessoas, incluindo filhos, netos e bisnetos, e tudo que recebe dos que passam pelo local é dividido entre todos.
O cenário de pessoas pedindo comida em Fortaleza pelas ruas, sinais de trânsito, supermercados e praças ficou mais evidente durante a pandemia de Covid-19. Pessoas que perderam renda ou que não conseguem manter os mesmos hábitos alimentares com o dinheiro de sempre, devido à alta no preço dos alimentos, recorrem a doações, apoio de instituições sociais ou coleta de descarte para sobreviver. Mesmo com a retomada econômica após a segunda onda de infecções do coronavírus, a situação da população mais pobre não parece melhorar na Capital.
Vera, como gosta de ser chamada, explica que o dinheiro que recebia do programa Bolsa Família era suficiente para pagar comida de todos e boa parte das despesas da casa. “Antes da pandemia eu não vinha pra cá, porque com R$ 100 eu ia na bodega e fazia uma ruma de compra. E agora? Se você almoçar você não janta, e se você jantar não almoça”, afirma. Antes, a família também contava com bicos do marido de Vera, de 75 anos, mas o homem precisou parar de trabalhar devido à saúde comprometida e a idade avançada.
No sinal, Vera costuma ganhar arroz, feijão, macarrão e, às vezes, algumas marmitas prontas. Enquanto O POVO acompanhava a rotina dela, passageiros de um carro entregaram bananas, que foram guardadas debaixo do viaduto da rotatória para que a mulher pudesse voltar para o meio do trânsito com seu cartaz pedindo ajuda para levar alimento para os filhos.
Outras comidas, como carnes, não fazem mais parte do que a família de Vera tem condições de consumir. “Lá em casa tá com dois anos que eu não sei o que é comprar um quilo de carne. É só ovo, salsicha e mortadela. Nem salsicha eu tô comprando mais porque uma salsicha é R$ 1. Pra um monte de gente que tem lá em casa, não tem como”.
Rosimeire Silva, 32, filha de Vera, também vai ao sinal de trânsito com a mãe. Ela tem a própria casa para alimentar, com cinco filhos menores de idade. Um deles, um bebê de menos de três anos, acompanhava a mãe e a avó. Segundo Rosimeire, a criança já estuda, mas com o rodízio de turmas para evitar aglomeração nas escolas da Prefeitura, há semanas em que o menino precisa acompanhá-la quando não tem aulas.
Quando ganhava R$ 1.200 pelo Auxílio Emergencial pago para mães chefes de família, durante os primeiros meses da pandemia, Rosimeire diz que não precisava pedir doações. Neste ano, ela teve o benefício cortado sem explicações e passou a viver apenas com o Bolsa Família, que ia praticamente todo para o aluguel.
“Tava muito difícil, só com o Bolsa Família pra quem mora de aluguel não tem condição, aí tem que vir pro sinal pedir. A gente é humilhado aqui, mas é assim mesmo. Pra sobreviver, minha filha, só não pode é roubar”, diz Rosimeire.
Em outro sinal da rotatória, mais cinco mulheres também pediam comida e dinheiro para alimentar a família. “Aparecendo, eu fazia uma faxina, fazia qualquer coisa, mas tá difícil aparecer. Às vezes, nós pede aqui e nós leva crítica, leva humilhação, dizem que a gente não gosta de trabalhar, já falaram muita coisa. Só que a gente pensa que ninguém sabe o que a gente passa em casa”, relata Francisca Regilane da Silva Oliveira, 31, que sai do bairro São João do Tauape, diariamente, para buscar doações.
Locais que vendem alimentos também se tornaram pontos buscados pelas pessoas em situação de fome da Capital que procuram algo para comer. Edivânia Rodrigues Lima, 30, arrisca entrar no Mercado São Sebastião, no bairro Centro, mesmo não sendo permitido pedir alimentos lá dentro. “Eu pego uma mistura, pego uma fruta. Aqui e acolá ganho um quilo de feijão, de arroz. Esse mercado é que me sustenta”, relata.
O “sofrimento medonho” que Edivânia relatou viver durante a pandemia não é estranho para diversas famílias que, como ela, precisam cortar gastos até mesmo com as coisas mais essenciais. Para a mulher, é preciso escolher como usar o pouco dinheiro que ela e o marido ganham todo mês. Pagar o aluguel, comprar remédios e fraldas para o filho de 1 ano e sete meses ou conseguir se alimentar? A conta não fecha e pedir os alimentos é a única alternativa.
Em outubro, um vídeo gravado no bairro Cocó mostrou pessoas pegando comida de um caminhão de lixo que recebia alimentos descartados de um supermercado. As imagens foram compartilhadas nas redes sociais e chocaram o País. O grupo de pessoas era formado principalmente por mulheres que precisavam recorrer ao lixo para alimentar filhos e netos. Pelo menos 10 famílias dependem dos descartes para comer, segundo a Central Única das Favelas (Cufa).
Se antes da pandemia os projetos sociais de comunidades de Fortaleza conseguiam focar em ações de educação, lazer e saúde, desde 2020 a urgência mudou. A fome de moradores da periferia fez com que os movimentos instalassem cozinhas sociais e pedissem doações para alimentar aqueles que já não conseguiam arcar com os custos de colocar comida no prato todos os dias.
“Eu sempre venho para o sopão, desde que o projeto abriu. As coisas estão muito caras. Meu marido está desempregado e quem tá ajudando em casa é só minha sogra, que é aposentada. Mas não dá pra nada”, disse Denise Correia de Lima, 38, após pegar a sopa fornecida pela União dos Jovens do Vicente Pinzón (UJVP), ainda em novembro.
A UJVP, localizada a poucos metros da praia do Titanzinho, começou a fazer sopões para a população do bairro durante a pandemia. Denise e outras dezenas de pessoas fazem fila na porta da associação em dia de sopa para levar um litro do alimento para a família. “Eu acho que só vai alimentar a metade, né, porque é muita gente. Lá em casa são oito pessoas”, afirmou Denise sobre a quantidade de comida que recebeu.
A situação de insegurança alimentar — não saber como todas as pessoas da casa vão comer todas as refeições —, virou realidade também na casa da mãe de Denise. Ela contou que matriarca já precisou procurar comida descartada para se alimentar.
Desempregada, Denisa precisa da cozinha social da associação para lidar com a fome. "Quando não tem, a gente tem que ficar em casa esperando um milagre".
Maria das Neves da Silva, 58, também pega a sopa para jantar e alimentar a neta de oito anos que mora com ela. Como forma de receber mais ajuda da associação, a moradora ainda auxilia na preparação dos alimentos. Ela perdeu os trabalhos que fazia como diarista com a chegada da pandemia e afirmou que sem a comida da UJVP a situação estaria "muito mais difícil".
No bairro Vila Velha, a associação Casa Dodô também criou uma cozinha social para entregar marmitas à população do bairro. De acordo com Roberto Bezerra, presidente da entidade, pessoas de comunidades vizinhas chegam a ir a pé até o local no dia de entrega. Cerca de 300 refeições são distribuídas às segundas, quartas e sextas-feiras, e muitas vezes pessoas que chegam mais tarde não conseguem se alimentar.
Roberto conta que as pessoas da comunidade ficam preocupadas com um possível fim da ação, já que pegam comida não só para si, como também para outros integrantes da família. “A gente não para não. Se parar, vira um tsunami de desespero dentro da comunidade. 10 horas da manhã a fila já tá bem grandona lá”, explica.
O impacto da pandemia da Covid-19 em renda e condições de vida da população afetou diretamente o acesso a alimentos em frequência, quantidade e qualidade adequadas. Em 2020, menos da metade dos domicílios brasileiros, cerca de 44,8%, estavam em situação de segurança alimentar. Enquanto isso, 9% das residências tinham moradores em situação de fome. No Nordeste, o número de domicílios com falta de alimentos chegou a 13,8%.
Os dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). O estudo mostrou ainda que o nível de segurança alimentar atual é menor do que o registrado em 2004, quando uma pesquisa utilizando a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) foi feita pela primeira vez pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A escala separa os domicílios naqueles que têm segurança alimentar — ou seja, que têm acesso a alimentos de forma adequada e permanente —; naqueles que têm insegurança alimentar leve — preocupação ou incerteza relacionada ao acesso a alimentos —; domicílios que têm insegurança alimentar moderada — há redução da quantidade de alimentos disponíveis para os adultos —; e naqueles em que há insegurança alimentar grave — falta alimento para todos os moradores, incluindo crianças, que vivem situação de fome.
Em 2004, 64,8% dos domicílios brasileiros tinham segurança alimentar, enquanto 9,5% das residências tinham situação grave, com moradores em situação de fome. O retorno da fome a valores próximos aos encontrados há 16 anos mostra como a crise sanitária e econômica vivida na pandemia agravou as condições de vida dos brasileiros.
No entanto, a pesquisadora da rede Penssan Juliana de Bem Lignani defende que não foi apenas a pandemia que causou o aumento da fome no Brasil. “Em 2004, a gente estava começando esse investimento em políticas públicas, principalmente as de segurança alimentar. E agora a gente tem um outro cenário. A gente está reduzindo os investimentos nessas políticas”.
Desde a primeira pesquisa até 2013, os níveis de segurança alimentar apresentaram aumento, chegando a 77,3% em 2013. Depois disso, a situação de insegurança foi aumentando e a de segurança diminuindo. Para Juliana, isso já era reflexo dessa redução de investimentos nas políticas sociais, com a pandemia intensificando a queda das condições ideais de forma ainda mais intensa.
“A gente vê que a ausência dessas políticas piora as condições de vida da população, piora o acesso à alimentação”, diz Juliana. A pesquisadora, que estuda o impacto de políticas sociais na alimentação e nutrição dos brasileiros, afirma que programas como o Bolsa Família tiveram impacto direto na situação alimentar dos beneficiários. O programa passou por cancelamentos de contas e grandes filas de espera nos últimos anos. “O Auxílio Emergencial tentou suprir um pouco isso, mas a gente viu que não foi suficiente para manter o acesso à alimentação".
Em agosto de 2021, o Bolsa Família foi revogado pelo Governo Federal, sendo extinto no dia 8 de novembro. O Planalto criou o Auxílio Brasil, outro programa de transferência de renda, que ainda passa por entraves e incertezas no orçamento. E mesmo com a criação do programa, famílias em extrema pobreza podem continuar desassistidas. Isso porque a primeira parcela do Auxílio Brasil, paga em novembro, contemplou cerca de 14 milhões de pessoas. No entanto, de acordo com dados do Cadastro Único, pelo menos 15.064.443 famílias cadastradas têm renda de R$ 0 a R$ 89.
“A proporção de pobres ainda não voltou ao patamar dos anos 90, antes da estabilização econômica, mas isso pode ocorrer se nós não tivermos uma política social eficiente de combate a pobreza e de combate à fome e, concomitante a isso, a estabilidade de preços”, diz a economista Lílian Lopes, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) do campus de Sobral da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A pobreza e os níveis de insegurança alimentar ainda atingem desproporcionalmente parte da população. Em geral, mulheres, pessoas negras e aqueles com baixa escolaridade são os que mais sofrem com a situação econômica atual.
“Esse perfil sempre foi o mais vulnerável a estar em insegurança alimentar. A questão é que a pandemia trouxe uma diferença ainda maior. Antes a diferença entre esses perfis era um pouco mais amena. E os dados do inquérito mostraram que essa desigualdade entre gêneros, raças, se agravou com a pandemia”, explica Juliana.
“São pessoas que antes eram pobres, mas tinham condições financeiras para coisas básicas e hoje não tem. A pandemia atingiu principalmente as pessoas extremamente pobres”, afirma Lílian. A economista acredita que as consequências da falta de políticas sociais atrelada à crise econômica podem influenciar também no desempenho escolar e capacitação dessas pessoas para o mercado de trabalho a longo prazo.
“Os filhos desses pobres, se não fosse pela pobreza extrema que estão passando agora, poderiam romper com o ciclo da pobreza. E agora ,com o agravamento, se a pessoa não não se alimenta bem, não vai ter produtividade no que ela faz. Isso vai refletir futuramente. A competitividade desse jovem pobre tende a ficar mais comprometida, sem dúvida alguma. E, com isso, reproduzir a mesma pobreza que os pais têm hoje”, opina a economista.
Juliana Lignani acredita também que o setor da saúde possa ficar mais sobrecarregado com o passar do tempo, já que pessoas em situação de insegurança alimentar têm mais propensão a desenvolver doenças crônicas e fatores de risco para obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares, segundo a nutricionista.
“Você tem uma população com maior fator de risco para o desenvolvimento de doenças que acompanham a vida dessas pessoas a partir do momento que elas se desenvolvem, e isso gera um gasto para o setor de saúde, é uma demanda de medicação, uma demanda de atendimento. E isso sobrecarrega o sistema de saúde a longo prazo”.
2004
Segurança alimentar: 64,8%
Insegurança alimentar leve: 13,8%
Insegurança alimentar moderada: 12%
Insegurança alimentar grave: 9,5%
2020
Segurança alimentar: 44,8%
Insegurança alimentar leve: 34,7%
Insegurança alimentar moderada: 11,5%
Insegurança alimentar grave: 9%
Fonte: Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil
Segurança alimentar: acesso a alimentos de forma adequada e permanente
Insegurança alimentar leve: preocupação ou incerteza relacionada ao acesso a alimentos
Insegurança alimentar moderada: redução da quantidade de alimentos disponíveis para alguns membros da família, principalmente os adultos
Insegurança alimentar grave: falta alimento para todos os moradores, incluindo crianças, que vivem uma situação de fome.
Extinto pelo Governo Federal na mesma portaria que acabou com o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) não recebeu nova verba em 2021 no Ceará. A política, criada em 2003, é uma das responsáveis por parte da renda de pelo menos 3.256 agricultores familiares do Estado. De acordo com a coordenadora do programa no Ceará ligado a Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA), Mônica Macêdo, o dinheiro executado ainda é o de 2020.
Além de comprar os alimentos dos agricultores, o programa ajuda 130 mil pessoas e 908 instituições sociais de 132 municípios cearenses com as doações desses produtos comprados dos pequenos agricultores. Segundo Mônica, o valor orçado pelo Ceará para 2020 era de R$ 14 milhões. No entanto, em janeiro o dinheiro recebido foi de R$ 2 milhões. Em junho, mais R$ 8,5 milhões foram repassados ao Ceará para serem gastos em até 12 meses, ou seja, até junho de 2021.
Em outubro, outros R$ 5,045 milhões foram somados aos outros dois aportes pela portaria de número 96/2020, do Ministério da Cidadania, também com validade de 12 meses. Até novembro de 2021, nenhum outro aporte foi feito ao PAA, segundo Mônica, e o dinheiro da última portaria ainda está sendo executado.
“Fica difícil para você planejar uma execução quando você planeja uma coisa e vem quebrado. Foram três editais, e os três têm agricultores diferentes”, explica a coordenadora. Ela conta que a cada repasse, um novo planejamento orçamentário precisou ser feito.
Com a extinção do PAA, que será substituído pelo programa Alimenta Brasil, as incertezas aumentam. O decreto que regulamenta a nova iniciativa do Governo Federal foi publicado na semana passada. O valor anual por agricultor foi de R$ 6,5 mil para R$ 12 mil anuais, mas ainda há incerteza sobre a execução e extensão do programa.
Para Mônica, o PAA foi responsável por mais do que gerar emprego e renda no campo. “Ele fortalece a agricultura familiar, melhorando a qualidade da alimentação das pessoas. Os próprios agricultores passam a ter alimentação de qualidade, com alimentos sem agrotóxicos. O PAA é um programa que também promove essa alimentação adequada, em quantidade, qualidade, regularidade, para essas pessoas em insegurança alimentar”.
Procurado, o Ministério da Cidadania enviou nota ao O POVO sobre a execução de recursos do Programa de Aquisição de Alimentos.
"O Ministério da Cidadania pactua junto aos estados e municípios os recursos que devem ser destinados para a compra de alimentos da agricultura familiar por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Cada estado e município planeja e executa a política conforme prevê a legislação do programa.
Somando o orçamento repassado em 2020 com os recursos extraordinários de combate a pandemia de Covid-19, o Ceará recebeu um aporte total de R$ 13,5 milhões, cuja execução atual encontra-se em pouco mais de 50%. O estado possui ainda cerca de R$ 6,5 milhões para a aquisição de alimentos dos agricultores familiares e doação às entidades.
Em 2021, o orçamento foi utilizado prioritariamente para municípios que não possuíam recursos para execução, já que todos os estados receberam aporte no segundo semestre de 2020 e ainda possuem recurso a ser executado.
Atualmente o orçamento do programa encontra-se com execução próxima a 100% .
A alocação de recursos do Alimenta Brasil será planejada após a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2022."