A voz de movimentos ligados à diversidade sexual e de gênero ganhou eco Brasil afora nos últimos anos, sobretudo com as tentativas de fazer com que a língua possa englobar ainda mais pessoas que não se identificam com os gêneros masculino nem feminino. Apesar da gramática determinar o uso padrão do português, a prática e o entendimento social são vivos e mudam ao longo do tempo, trazendo hoje a discussão sobre a legitimidade do uso do “gênero neutro”.
O “gênero neutro” já é usado por grupos não-binários incorporando à língua não oficial um comportamento linguístico que já chegou à academia e está despertando o interesse de estudiosos da língua. Mar Facciolla é ume dos representantes de movimentos sociais de diversidade sexual que lutam por uma linguagem não-binária.
“Quando a gente fala de linguagem, não está falando somente do pronome, a gente fala de todo um movimento de criação de realidade”, destaca Mar Facciolla, usuárie de pronomes neutros e coordenadore do eixo de psicologia do Projeto Sobreviver, que proporciona psicoterapia a valores sociais para a população
No início, não foi fácil. Mar costumava atender por pronomes masculinos e neutros por acreditar que seria “muito difícil” para o público geral acertar o uso de “elu”, “delu” e flexionar adjetivos. “Todas as vezes que eu me apresento (agora) eu sempre falo: meus pronomes são elu/delu ”, conta.
Hoje Mar responde aos pronomes neutros. “Se você não souber utilizar, fale comigo: tenho um material que pode te ajudar”, é sua frase para oferecer auxílio e paciência ao encontrar alguém com dificuldades para integrar essa variação linguística ao vocabulário.
No Brasil, algumas modalidades que se popularizaram inicialmente estão entrando em desuso. “Vertentes com ‘@’ ou ‘x’ substituindo a última vogal acabam excluindo pessoas que não processam estímulo visual e estão dando lugar ao final ‘e’”, explica o professor Yago Bezerra, mestrando em linguística aplicada na Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Hoje, as formas de utilizar gênero neutro destacadas por Yago são: os pronomes “ile”, “elu” e “ilu”; preferir palavras “assexuadas” no discurso, como “gente”, “povo” ou “sujeito”, e suprimir artigos definidos.
Segundo ele, essas são apenas algumas estratégias de inclusão, já que “o gênero, na língua portuguesa, já pode ser neutralizado, como fazemos quando utilizamos o masculino para determinar um grupo formado por mulheres e homens. O problema é que isso não atende à demanda (das minorias)”, explica.
O debate sobre o uso do gênero neutro já chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Neste ano, um decreto estadual de Santa Catarina proibiu a alusão desta linguagem em documentos oficiais, ou seja, flexão de substantivos, adjetivos e numerais não reconhecida pela gramática normativa. O ministro Edson Fachin, do STF, derrubou a medida estadual catarinense. No último dia 8 de dezembro, o ministro Nunes Marques, do STF, pediu destaque e o suspendeu o julgamento virtual do tema, o que deve ser feito em plenário físico, mas sem data para acontecer.
Segundo Mar Facciolla, projetos desta estirpe não entendem o uso da linguagem neutra. A proposta é incluir. “Quando falam sobre saúde, sempre falam de saúde da mulher e saúde do homem, como eu me encaixo nesse contexto?”, questiona.
Enquanto o tema ganha força nas redes, personagens políticos reagem. Em novembro passado, o presidente Jair Bolsonaro criticou a proposta e comentou que há "aparelhamento na educação" e questionou: "qual o futuro da nação que age dessa maneira com a educação?". Aldo Rebelo, ex-presidente da Câmara dos Deputados afirmou que a defesa do gênero neutro na língua portuguesa no Brasil é um "atentado à sociedade, algo importado" e uma "imposição" ao idioma.
A defesa pela pureza da língua é o principal argumento contrário ao gênero neutro, mas “a proposta é de acréscimo”. “Não se está querendo tirar palavras, mas adicioná-las para que sejam ou não utilizadas”, afirma Rodrigo Borba, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De acordo com ele, a inclusão da variação neutra não excluiria do vocabulário pronomes e substantivos existentes, apenas agregaria novos.
“A linguagem neutra é necessária. Ela é um exercício dos direitos humanos porque a gente está respeitando a individualidade e a dignidade de outras pessoas”, declara Mar.
Yago Bezerra Pessoa *
No mundo ocidental, a ideia de gênero na linguagem está presente na estrutura das línguas desde o surgimento da primeira gramática de que temos conhecimento, elaborada por Dionísio, o Trácio no século II a.C e voltada ao estudo da língua grega. Desde os tempos primeiros de nossa civilização, gramáticos se atentaram para o fato de que o gênero neutro é algo incrustado ao sistema linguístico, afinal, a própria linguagem carece de formas neutras que deem conta de elementos que não cabem no universo bivalente de masculino ou feminino.
Encontramos o gênero neutro na estrutura não somente da língua grega, mas também no latim (língua-mãe da língua portuguesa). A indicação de neutralidade para os nomes também pode ser encontrada, em nossos dias, no inglês, alemão e romeno. Esses exemplos nos servem como indicadores de que não há nenhum ineditismo nessa pretensa reforma linguística proposta pelos movimentos sociais representantes dos grupos minoritários.
Essa discussão da linguagem neutra de gênero tem ganhado força nas redes sociais e gerado muitos pontos de tensão entre seus defensores e seus detratores. Os movimentos representativos dos grupos minoritários incluíram em suas agendas a luta contra toda e qualquer forma de opressão, dentre elas a de natureza linguística.
Para seus defensores, a linguagem elaborada em torno dos gêneros masculino e feminino só reforçam os muitos preconceitos sofridos pelas minorias sociais. Como saída para tal opressão linguística de gênero, os movimentos seguem na defesa de uma neutralidade para os nomes da língua, mediante alterações na estrutura da língua que permitam a inclusão de referentes neutros de gênero no vocabulário.
Assim sendo, penso que a busca pela linguagem neutra de gênero não seja em si mesma um fenômeno mundial. Acredito que essa agenda manifestada na esfera linguística, nos últimos tempos, advém de uma agenda de luta bem maior, representada historicamente pelos grupos minoritários que reivindicam os seus lugares de direito, ao passo em que contestam o histórico lugar de privilégio e de hegemonia ocupado por determinados grupos que operam na sociedade sob a lógica do machismo e do sexismo.
"Os processos de mudança na língua são naturais e necessários, porém, são por demais lentos"
A origem dessa questão tem gênese na compreensão de que a língua portuguesa foi difundida por mecanismos de opressão e violência, desde a chegada dos portugueses ao Brasil. O nosso sistema linguístico, segundo o movimento defensor da linguagem neutra de gênero, tem bases elitistas, discriminatórias e que tendem a privilegiar o homem em detrimento da mulher.
Essa leitura tem ganhado corpo dentro das redes sociais e no núcleo de alguns espaços acadêmicos dedicados aos estudos da língua, principalmente os associados aos estudos da Sociolinguística. Nesse movimento, os grupos que não se identificam com a identidade binária, tais como os integrantes da comunidade LGBTQIA+, somaram agendas de luta e contestação, erguendo a bandeira de uma linguagem que dê conta dos muitos todos, todas e todes.
Esse caminho será, enfim, possível? Sem dúvidas! Temos exemplos históricos da presença do gênero neutro em línguas de rica tradição cultural no Ocidente. No entanto, reconhecer a sua viabilidade não significa dizer que as mudanças pretendidas pelos movimentos que defendem a implantação e a regulamentação da linguagem neutra nos usos da língua venha a acontecer de um dia para o outro, por força somente de uma agenda política.
Os processos de mudança na língua são naturais e necessários, porém, são por demais lentos. Essas mudanças dependem da adesão dos falantes, da reprodução em larga escala nas mais diversas formas de expressão (fala e escrita), de um letramento que envolva essas mudanças como usos reconhecidos pela norma-padrão da língua, de uma política editorial que se utilize das novas formas linguísticas neutras em seus textos, enfim, de uma política linguística inclusiva e atenta às novas demandas.
* Yago Bezerra Pessoa é graduado em Letras, mestrando em Linguística Aplicada e professor da rede municipal de Fortaleza-CE