O cenário político na América do Sul é dividido, atualmente, em dois blocos. Enquanto países como Brasil, Colômbia, Uruguai, Paraguai, Equador e Chile têm governantes em diferentes espectros da direita; nações como Argentina, Bolívia, Peru e Venezuela figuram num quadro político à esquerda. As próximas eleições presidenciais, no Chile, neste domingo 19, podem apontar um redesenho político regional.
Com o segundo turno presidencial chileno sendo disputado entre Gabriel Boric (esquerda) e José Kast (extrema direita), ocorreu o fim da hegemonia de nomes ligados à centro-direita e à centro-esquerda; que governaram o país andino nas últimas décadas. Analistas ouvidos pelo O POVO apontaram que o Chile indica um cenário de acirramento que pode ser reproduzido em outros países com governos desgastados em seus respectivos contextos.
Brasil e Colômbia estão prestes a entrar em ano eleitoral (2022) e têm as gestões de seus presidentes Jair Bolsonaro e Iván Duque, respectivamente, questionadas ao longo dos últimos anos. Já a Argentina, que recém-elegeu o peronista Alberto Fernández (2019), impôs derrota ao gestor nas eleições legislativas deste ano negando a maioria ao governo.
Carolina Pedroso, professora de Relações Internacionais e especialista em América Latina, analisa que a incapacidade de trazer mudanças estruturais tem sido uma “tendência regional” e um problema para a maioria dos últimos governos da região. Segundo ela, o que acontece no Chile sinaliza que veremos disputas mais acirradas na região e insatisfação mais frequente com diferentes projetos políticos consolidados em cada País.
A professora aponta que a eleição chilena será “decisiva para a região” porque a América Latina, desde a sua colonização e dos processos posteriores a ela, apresentou tendências mesmo com as particularidades de cada local. “Nós fomos uma região colonizada e depois independente; a maioria dos países se organizou em forma de República, com caráter bastante militarizado; depois tivemos o período das ditaduras militares e o processo de redemocratização. Existem ciclos que abarcam boa parte dos processos da região. Faz sentido pensarmos que o que pode acontecer em um país terá repercussão nos outros”.
Pedroso aponta ainda que as mudanças de espectros ideológicos têm influência sobre os arranjos regionais. “Há uma influência entre o que acontece num país e os projetos em disputa nos outros. O Brasil foi um dos lugares onde a extrema direita chegou ao poder pela via eleitoral e isso serviu para fortalecer movimentos similares em outras nações”, diz.
Já o professor de Relações Internacionais Matheus Oliveira, da Universidade de Ribeirão Preto, avalia a questão de forma distinta ao lembrar que, em 2018, Bolsonaro venceu a eleição no Brasil, o que seria uma sinalização de postura mais à extrema direita. Mas, no ano seguinte, o peronismo venceu novamente na Argentina. Posteriormente, eleições na Bolívia e no Peru consolidaram projetos mais à esquerda e no Equador mais à direita.
“Não sei se há recados em caso de vitória da extrema direita ou da esquerda (no Chile). Acho que essa noção, embora seja atraente, não necessariamente quer dizer muita coisa. É uma situação muito em aberto. Se eu pudesse falar em uma tendência; eu não situaria (a região) entre blocos, mas o que tem acontecido, de maneira geral, é que contradições estruturais e problemas históricos foram muito agravados, principalmente na pandemia, e essas contradições mobilizam energias políticas que adquirem formas diferentes”, aponta.
O Chile volta às urnas neste domingo, 19, para o segundo turno de uma eleição presidencial disputado por um ex-líder do movimento estudantil de um lado e, do outro, e por um admirador do presidente Jair Bolsonaro (PL). O país andino escolhe um novo presidente após 16 anos de alternância de poder entre o atual mandatário Sebastián Piñera (centro-direita) e a ex-gestora Michelle Bachelet (centro-esquerda).
Um dos principais palcos de tensões políticas e sociais da América do Sul nos últimos dois anos, o Chile vai às urnas pela quinta vez em pouco mais de 12 meses. Desde 2020 o país realizou votações envolvendo o referendo sobre uma nova Constituição (aprovado); eleições para prefeituras, governos e deputados constituintes; primárias presidenciais; e o primeiro turno das eleições presidenciais e parlamentares de 2021.
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A candidatura mais à esquerda é representada pelo deputado Gabriel Boric, 35 anos, que ganhou projeção nacional pela atuação como líder estudantil, pelas críticas ao modelo econômico herdado da ditadura de Pinochet (1973-1990) e pela atuação no processo da Constituinte.
O adversário na disputa pelo La Moneda (palácio presidencial) é o advogado José Antonio Kast, que ao contrário de Boric fez campanha contra a nova Constituição e tem discurso alinhado às práticas da extrema direita mundial. Kast é um admirador do período ditatorial e é chamado de "Bolsonaro chileno" pelas semelhanças discursivas com o líder brasileiro.
O resultado é tido como incerto mesmo com as pesquisas realizadas antes da chamada proibição eleitoral, quando a divulgação de levantamentos passa a ser vedada, apontando vantagem de Boric contra Kast. Segundo o El País, o candidato da esquerda aparece com 53,8% das intenções de voto contra 45,5% de Kast na média dos levantamentos.
No Chile, o voto não é obrigatório. Portanto, a transferência de votos do nome da centro-direita Sebastián Sichel (12,79% dos votos) ou da centro-esquerda representada por Yasna Provoste (11,60% dos votos) não será automática para Kast ou Boric. Há ainda o fator Franco Parisi, candidato que ficou em terceiro lugar no primeiro turno (12,81%) fazendo campanha do Alabama (EUA) e que tem o eleitorado como uma incógnita.
Governado nas últimas décadas por partidos de centro-direita ou centro-esquerda, a parcela da população chilena que foi votar demonstrou, além de um cenário de polarização com diferença menor que 3 pontos percentuais entre Boric e Kast, insatisfação com os projetos continuístas que fracassaram em promover mudanças significativas nas últimas décadas.
Matheus Oliveira, professor de Relações Internacionais da Universidade de Ribeirão Preto, avalia que o resultado do primeiro turno aponta para uma ruptura e um questionamento a modelos herdados da ditadura. Segundo ele, “não é surpreendente” que candidaturas de fora desse espectro mais tradicional estejam na disputa.
“Embora tenha ocorrido um revezamento (entre centro-esquerda e centro-direita), isso não significou uma mudança substancial no modelo político-econômico da ditadura. Um modelo com fragilidades e marcado por desigualdades que atingem a população no acesso a serviços básicos”, comenta.
O voto facultativo é uma realidade desde 2012. De lá para cá o país acumula altos índices de abstenção. Nas presidenciais de 2017, menos de 50% da população participou. Na decisão favorável à nova constituinte pouco mais da metade do país foi às urnas. No primeiro turno da eleição deste ano, cerca de 53% dos inscritos não votaram. Nesse contexto, seria correto dizer que o Chile é um país “polarizado” ou seria mais apropriado o entendimento de que há uma crise de representatividade em curso?
Carolina Pedroso, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia que uma coisa não exclui a outra. “A democracia representativa tem passado por desafios no mundo inteiro. As pessoas não se sentem representadas pelos governos e o que sustenta esses governos é uma parcela menor, mas mais aguerrida da população. Faz sentido falarmos em crise de representatividade e em polarização também, porque aqueles que tomam partido o fazem de forma mais intensa”, explica.
“No caso do Chile, o voto facultativo tem menos de 10 anos; é muito recente. O que acontece é que a maioria da população que não vota é porque não se sente representada, mas aqueles que vão às urnas estão convencidos de que aquele projeto que defendem trará mudanças. Primeiro vem a crise de representatividade e depois vem a polarização”.
Matheus Oliveira concorda com a coexistência dos dois fatores no Chile, mas aponta que o que existe, de fato, não é uma polarização. Para ele, trata-se de uma “falsa simetria” apontar as duas candidaturas (de esquerda e extrema direita) como pólos exatamente opostos. “Uma não representa necessariamente o extremo da outra”, sustenta.
"Que seja pelo mal menor", diz Mathias, resignado, enquanto promove entre os jovens o candidato esquerdista Gabriel Boric. Outros, também com ressalvas, se mobilizam por José Antonio Kast, de extrema direita. Aquele que conquistar os votos dos jovens pode ganhar no domingo (19) a Presidência do Chile.
Os eleitores com menos de 29 anos são parte importante dos 53% que se abstiveram no primeiro turno, em 21 de novembro e, ao lado das mulheres, podem inclinar a balança para qualquer lado, pois os indecisos oscilam entre o desencanto geral com a política e a revolta com um país tão desigual.
"Fomos marginalizados ao longo de todos esses anos. Acredito que nós, jovens, estamos desiludidos", assinala Mathias Matta, um fotógrafo de 25 anos de Villa San Miguel, um bairro de classe trabalhadora no sul de Santiago, que não votou no primeiro turno, mas vai fazê-lo no domingo.
As queixas contra o modelo econômico e a insatisfação em relação aos partidos políticos são as opiniões mais comuns entre os jovens, com 18 anos recém-completados, de um complexo habitacional, como também entre idosos e adultos que reclamam que não tiveram acesso ao bem-estar social e a melhores oportunidades nos anos de bonança econômica no Chile, entre 1995 e 2010.
"Não posso ficar sem votar", porque é "um momento crucial, com dois candidatos que estão nos extremos", opina Matta, que votará em Boric.
Usando quase as mesmas palavras, Florencia Moraga, uma estudante de Ciência Política de 19 anos, afirma que votará em Kast.
Além dos 20 anos de diferença entre os dois candidatos, ambos possuem visões completamente antagônicas sobre como o Estado deve ser.
Boric, de 35 anos e formado em Direito na Universidade do Chile, vem do extremo sul do país, de Punta Arenas. É agnóstico, solteiro e sem filhos. Kast, de 55, também é advogado, mas estudou na Universidade Católica. Está casado desde 1991 com María Pía Adriasola, tem nove filhos e pertence ao movimento católico Schönstatt.
Nas áreas mais populares da Região Metropolitana de Santiago - a mais populosa do país -, cerca de 2,5 milhões de eleitores não votaram no primeiro turno. No Chile, são 15 milhões de cidadãos aptos a votar. "Aí é onde está o xis da questão", afirma a economista Marta Lagos, fundadora da organização Latinobarómetro.
No plebiscito constitucional de outubro de 2020, os jovens compareceram às urnas e inclinaram a balança em favor da redação de uma nova Constituição. Contudo, nas eleições que se sucederam - de deputados constituintes, prefeitos e as primárias presidenciais - o interesse dos jovens desapareceu. (Da AFP)
"Os jovens votam mais em causas e indivíduos", e não em partidos ou ideologias, pontua Claudio Fuentes, acadêmico de Ciência Política da Universidade Diego Portales.
"Eles se mobilizam por causas como o meio ambiente, os direitos humanos", indica Fuentes, ao revelar que faz mais de uma década que o Chile constata uma alta abstenção entres os eleitores com menos de 30 anos, onde o voto não é obrigatório desde 2012.
A desigualdade social, as mudanças climáticas, a inclusão das minorias e a igualdade de gênero são temas que mobilizam eleitores de Kast e Boric, mas com posições completamente antagônicas.
Florencia Moraga não tem dúvidas sobre votar em Kast, o candidato mais conservador dos últimos 31 anos de democracia, e admite que, apesar de não gostar de sua postura contrária ao casamento entre homossexuais, acredita que ele é "capaz de respeitar a institucionalidade".
"Para mim, não interessa o que as pessoas fazem em sua vida privada", ressalta a estudante, que fez sua estreia como eleitora no plebiscito de 2020.
Com pouca afinidade a nenhum partido político, os jovens ouvidos em diversas partes de Santiago se mobilizam, principalmente, para que o "outro lado não vença por nada" o pleito, seja Boric ou Kast.
"Foi muito difícil chegar a uma decisão, porque é muito difícil eu me sentir representada pelo mundo político", afirma Florencia Calvo, de 22 anos, estudante de engenharia civil na Universidade Católica. Identificada como "muito liberal", votou no primeiro turno no candidato da direita moderada Sebastián Sichel.
"Não queria votar em nenhum dos extremos, pois não me representam. Os extremos para mim, sem dúvida, eram Kast e Boric. Agora, eu não sinto o mesmo nível de medo caso vença Boric ou ganhe Kast".
Para Calvo, a única opção para o segundo turno "é Boric", apesar de algumas de suas posturas não lhe convencerem: "Acho que ele está ganhando mais apoio do centro, que é o que, por fim, necessitamos".
Diego Lacroix, professor de educação física de 33 anos, não compareceu às urnas no primeiro turno, assim como seu amigo Matta, "mas, neste domingo, vamos sem falta", afirma, em uma comunidade onde pede voto para Boric.
"Não era o candidato que eu gostaria, mas o outro representa um retrocesso muito grande", acredita. (Da AFP)