Logo O POVO+
Como a esquerda brasileira revisita a URSS 30 anos após a queda
Reportagem Especial

Como a esquerda brasileira revisita a URSS 30 anos após a queda

Ao mesmo tempo em que reconhecem os erros históricos do período, personagens defendem que reivindicar ideais da revolução russa não implica em uma concordância automática com tudo o que ocorreu na URSS

Como a esquerda brasileira revisita a URSS 30 anos após a queda

Ao mesmo tempo em que reconhecem os erros históricos do período, personagens defendem que reivindicar ideais da revolução russa não implica em uma concordância automática com tudo o que ocorreu na URSS
Tipo Notícia Por

 

 

No Natal deste ano, em 25 de dezembro, completa-se 30 anos do dia em que Mikhail Gorbachev reconheceu e oficializou o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). De lá para cá, o debate sobre comunismo e socialismo foi reaceso em diferentes períodos, inclusive em anos eleitorais recentes no Brasil, para marcar posições ideológicas e territórios de atuação política a nível nacional e mundial.

O POVO conversou com personagens políticos, historiadores e especialistas para saber em que medida o legado do bloco soviético ainda influencia correntes consolidadas da esquerda três décadas depois do seu fim. Como elas enxergam e reproduzem a URSS e seus ideais? Qual a percepção do fim do conglomerado e daquilo que o sucedeu?

Mikhail Gorbachev, último líder da União Soviética, em discurso em 2011(Foto: ANDREY SMIRNOV/AFP)
Foto: ANDREY SMIRNOV/AFP Mikhail Gorbachev, último líder da União Soviética, em discurso em 2011

Filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT) desde 1986, o ex-deputado, historiador e hoje secretário estadual do Meio Ambiente, Artur Bruno, revisita a bipolaridade pós-segunda guerra mundial que dividiu ideologicamente os que militaram na política entre lideranças do mundo capitalista, representadas sobretudo pelos Estados Unidos, e do mundo socialista, que encontravam-se alinhados à URSS.

Após a revolução bolchevique, em 1917, na Rússia, a doutrina de Lênin (1870-1924), um dos líderes do movimento, passou a vigorar a partir da aplicação de teorias marxistas no país. Com a morte de Lênin, outras correntes (ver quadro) surgiram, com predominância do stalinismo que ficou 30 anos no poder, e alterou a percepção do modelo.

De acordo com Bruno, a revolução socialista que formaria a URSS teve forte influência nas esquerdas mundiais. No entanto, já no fim dos anos 1960-1970, “muitos socialistas se desiludiram com o chamado socialismo real”. Segundo ele, o modelo foi semelhante em todos os locais: “Partido único, ditadura do proletariado e falta de democracia, já que havia a imposição de um sistema onde a oposição era perseguida e as eleições não eram livres”.

O petista reconhece que dentro da esquerda havia correntes consideradas stalinistas. No entanto, ressalta que elas eram minoritárias e traça um paralelo com o cenário atual. “Hoje essas correntes estão reduzidas a grupos muito específicos tanto no PT como na esquerda em geral. Mesmo os partidos comunistas existentes no Brasil defendem o pluralismo e eleições livres. Aquele modelo foi derrotado historicamente”.

Bruno conclui, portanto, que os ideais soviéticos “influenciam muito pouco” na prática das esquerdas atualmente e aponta que o desgaste do modelo é claro quando somente cinco países ainda apregoam ideais similares: China, Coreia do Norte, Laos, Vietnã e Cuba. “O socialismo já teve entre 20% e 30% da população e da economia mundial. A sociedade percebeu a distância entre teoria e prática e o derrotou”, encerra.

Soviete de 1917, ano da Revolução Russa. Sovietes eram os conselhos constituídos pelos delegados dos trabalhadores, com função deliberativa(Foto: Domínio Público)
Foto: Domínio Público Soviete de 1917, ano da Revolução Russa. Sovietes eram os conselhos constituídos pelos delegados dos trabalhadores, com função deliberativa

Cleyton Monte, cientista político vinculado ao Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC), analisa que grande parte da esquerda progressista brasileira entendeu que a URSS foi um grande sonho no início, mas que logo após a chegada de Stalin ao poder, a experiência se transformou em totalitária. “Foi uma utopia frustrada ao longo do tempo. A revolução permanece como referência de mobilização de massas e combate à opressão, mas também fica como lição de que transformações que não tenham liberdade e democracia descambam em autoritarismo.”

Ailton Lopes, dirigente do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), explana alguns entendimentos que considera majoritários na sigla a respeito da temática. O primeiro é de que a revolução russa foi “um dos processos fundamentais para a classe trabalhadora em nível mundial” e o segundo é uma “compreensão antistalinista” dentro do Psol.

Segundo Lopes, defender os ideais do processo revolucionário não implica em uma concordância automática com tudo o que ocorreu na URSS. “Nós somos críticos ao processo de fechamento; de autoritarismo e somos críticos ao stalinismo que perseguiu os que pensavam diferente a ponto de exterminar companheiros”, explica.

O pessolista aponta para críticas em relação à perseguição de pessoas LGBTs por regimes considerados comunistas até hoje. “No começo da revolução (russa), os bolcheviques, por exemplo, garantiram direitos às mulheres e aos LGBTs e depois houve uma distorção com o processo de autoritarismo e do stalinismo na URSS. Então é importante dizer que ao reivindicarmos os avanços, não significa que pactuamos com os erros cometidos.”

O dirigente defende que há ideais da revolução que tem a ver com lutas atuais e que o Psol hoje reivindica o movimento como referência para formar uma “sociedade igualitária”. Nesse contexto, ele entende que a queda da URSS impactou todas as esquerdas, desde as mais alinhadas até as mais críticas, pois o fato representou uma vitória capitalista.

Iago Caubi, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Geopolítica, Integração Regional e Sistema Mundial (GIS/UFRJ), ressalta que partidos da esquerda tinham a experiência russa como vanguarda e que, após a queda da URSS, houve sentimento de derrota e posteriormente uma readaptação. “Após a queda da URSS, a ideia de revolução passa a ser algo distante. Os partidos mantêm a ideologia de esquerda, porém, em grande parte dos países, passam a flertar com o capitalismo. O viés ideológico e o econômico se distanciam e há uma adaptação numa ideia de jogar dentro das regras do capitalismo”, diz.

O professor de História e dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Evaldo Lima, entende que nem tudo na experiência do socialismo real deve ser analisado de forma negativa. “Tentam desconstruir a imagem da revolução russa e do seu legado, associando a ela apenas um amontoado de erros e equívocos”, pontua.

Segundo Lima, o socialismo salvou o capitalismo duas vezes. Uma na guerra e outra na paz. “Salvou na guerra porque o Exército Vermelho soviético deu contribuição fundamental para a derrota do nazifascismo na 2ª guerra mundial”, relembra, explicando que o capitalismo foi salvo também na paz porque o “estado de bem-estar social que surgiu na Europa no pós-guerra, foi uma das várias concepções para barrar o avanço do socialismo. Ele não teria sido possível sem o ‘fantasma’ de uma possível revolução socialista”, comenta.

Personagens ouvidos pelo O POVO apontaram que os acontecimentos que precederam a queda da URSS como as mudanças a partir da ascensão de Gorbatchev (1985), a derrubada do Muro de Berlim (1989) e a dissolução do bloco (1991) significaram uma grande crise para o mundo socialista. Apesar disso, nenhum deles negou o que consideram “erros históricos” do período do socialismo real no bloco soviético.

“Precisamos admitir equívocos na construção do modelo. Dentre eles os limites às liberdades democráticas. A democracia é um caminho que precisa ser preservado com pluralismo, debate e a compreensão da política como a negação da barbárie”, conclui Lima.

 

 

As reações à "demonização" da URSS

 

A revolução que virou referência para movimentos da esquerda e da classe operária mundo afora, também impulsionou um sentimento anticomunista visível até hoje. Na prática, o anticomunismo nasceu junto com o comunismo real, porque a forma e o sucesso inicial da revolução na Rússia assustava setores conservadores de países ocidentais que viam naquele momento histórico fantasmas que ameaçavam suas hegemonias.

Atores políticos de espectros mais à direita utilizam, ainda hoje, a retórica do comunismo e do socialismo eleitoralmente, como forma de atrelar os erros históricos da URSS a adversários políticos. O discurso foi visto no Brasil durante a campanha presidencial de 2018 com o então candidato Jair Bolsonaro, e seus apoiadores, e possivelmente estará presente, em alguma medida, no processo eleitoral de 2022.

Artur Bruno diz que há “muita ignorância e má-fé”, na tentativa de imputar a partidos de esquerda a imagem de comunismo radical; “Ignorância porque a população não percebe que esse modelo foi derrotado pela história. Não sabe o que é comunismo e socialismo e que os próprios partidos comunistas no brasil não defendem esse modelo. Minúsculas frações ainda tem essa visão radicalizada e totalmente minoritária dentro da esquerda”.

Para o historiador filiado ao PT, há má fé porque grupos entendem que ao acusarem um adversário de “comunista”, isso geraria uma situação de dificuldade de imagem. “Ao propagar preconceitos e chavões, há má fé para confundir a opinião pública”, defende.

“Hoje os que defendem partidos de esquerda consolidados convivem com a necessidade de mercado. Desde 2002, o PT percebeu que só dá para governar o Brasil numa aliança com o centro. A partir de ideias de reformas, com prioridade para o social e inclusão dos mais pobres, mas dentro de uma visão ampla de uma proposta que beneficie a todos.”

O cientista político Cleyton Monte, considera que a tentativa de atribuir processos da era soviética a personagens da esquerda moderada brasileira é uma tentativa de caricatura. “Isso não é novo no Brasil, qualquer crítico à ditadura militar brasileira era chamado de ‘subversivo’, ‘comunista’ e outras coisas. Chamaram Edson Fachin de trotskista; FHC de comunista. É uma caricatura para tentar inferiorizar o outro”.

Já Ailton Lopes (Psol), aponta a tentativa de membros da direita em tentar demonizar o período histórico, “destacando alguns dos erros cometidos anteriormente” e os atribuindo aos partidos que têm inspiração na revolução russa. “Vale lembrar que foram as conquistas da URSS, com todas as contradições, que influenciaram países capitalistas a adotar políticas sociais (...) Nós queremos que todos cheguem juntos e isso diz respeito a entender que queremos uma sociedade de fato igualitária. A nossa ideia é essa”.

Made with Flourish

 

A Rússia 30 anos após a dissolução da URSS

 

Trinta anos após o então presidente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Mikhail Gorbatchov, renunciar ao poder, em 1991, a Rússia segue como o maior símbolo do período e país com o maior impacto internacional entre as ex-repúblicas do bloco soviético.

Liderados pelo presidente Vladimir Putin, um ex-agente do serviço secreto, praticamente desde os anos 2000 os russos são comandados por um regime que, assim como a URSS, centraliza o poder e é tido, muitas vezes, como autoritário.

Nos últimos 30 anos, a Rússia teve apenas três presidentes; Bóris Yeltsin comandou o país entre 1991 e 1999, com o desafio de reerguer o gigante território deixado após a dissolução da URSS. Yeltsin buscou a aproximação com o ocidente e a abertura política e econômica da Rússia, mas falhou em atingir metas e acabou renunciando com alta reprovação interna.

Veio então a era Vladimir Putin, a partir do ano 2000, com e exceção do governo de Dimitri Medvedev (2008-2012) que liderou o país num período em que Putin não poderia assumir um terceiro mandato consecutivo. Medvedev escolheu Putin como primeiro-ministro; escancarando a influência de Putin que, na prática, ditou as regras naquele período.

Vladimir Putin, presidente da Rússia (Foto: SERGEI CHIRIKOV/AFP)
Foto: SERGEI CHIRIKOV/AFP Vladimir Putin, presidente da Rússia

Portanto, nos últimos 20 anos Putin é o homem forte da política Russa, que liderou o processo de reconstrução a mão de ferro. Cabendo aqui o amplo debate entre apoiadores e opositores sobre se a forma como vem se perpetuando no poder é democrática ou não.

Um referendo aprovado em 2020 por quase 80% da população, e com alegações de fraude por parte de opositores, deu a Putin a chance de se reeleger até 2030, ficando no poder até 2036. Apesar de o direito de ser candidato, em teoria, não garantir a eleição é o que vem ocorrendo nos últimos 20 anos.

Na Rússia, após outra reforma da era Putin, o mandato presidencial passou de quatro para seis anos. Incluindo o período como premiê do governo Medvedev, Vladimir Putin poderá somar, ao todo, 36 anos à frente do governo russo. Sete anos a mais do que Stalin.

A perpetuação do poder é uma marca histórica no atual território da Rússia. Esteve presente na época do Czarismo (1547-1917) e, após a revolução de 1917, adquiriu novas formas de centralização no período socialista/comunista (1917-1991). O historiador filiado ao PT, Artur Bruno, lembra que Putin era um “forte militante da URSS" e que hoje o seu governo é “uma coisa mais próxima de um conservadorismo do que de ideais da esquerda" revolucionária.

Para o cientista político Cleyton Monte, a Rússia ainda não viveu uma experiência de liberdade política plena. “Saiu dos czares para a URSS e do bloco soviético praticamente para duas décadas de Putin. É um país que ainda tem seu raio de influência, um poder militar extraordinário, mas ainda muito aquém do que um dia foi a URSS”, explica.

Monte considera que a Rússia “tem um capitalismo presente e se pretende moderna”, mesmo sendo um dos grandes símbolos antiocidentais. Os russos hoje colocam-se também como ponto de tensão com a União Europeia (UE). Apesar disso, a dependência do bloco europeu do petróleo e do gás russos forçam a continuidade da relação.

O professor de História Evaldo Lima, filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), diz que a Rússia continua sendo um símbolo da URSS em termos históricos e que, juntamente com a China, é a negação de um império único representado pelos Estados Unidos. “É um país que ainda preserva características da época (da URSS), mas suscetível a críticas. O governo atual de Putin lembra mais o regime pré-revolução do que o legado da revolução”.

Se a China é a grande rival econômica dos EUA, a Rússia segue exercendo papel preponderante em conflitos com o ocidente e rivaliza do ponto de vista militar, assim como a URSS o fez nos longos anos de guerra fria onde a rivalidade com os Estados Unidos foi escancarada. Atualmente, a questão da Crimeia, região separatista anexada pelos russos em 2014 e ponto de disputa com a Ucrânia, talvez seja o exemplo mais factual do desafio militar imposto pela Rússia.

Tomada pelos russos há cerca de oito anos, a Crimeia ainda é ponto de instabilidades. Isso influencia diversas searas, como o futebol. Na Liga dos Campeões, maior competição de clubes europeus, times da Rússia e da Ucrânia não podem estar na mesma chave; isso para evitar jogos em territórios inflamados por conta da rivalidade geopolítica.

Moscou, em 6 de maio de 2020, Um ciclista passa pelas faixas vermelhas dedicadas ao Dia da Vitória(Foto: Alexander NEMENOV / AFP)
Foto: Alexander NEMENOV / AFP Moscou, em 6 de maio de 2020, Um ciclista passa pelas faixas vermelhas dedicadas ao Dia da Vitória

Neste mês, a Rússia mobilizou 175 mil soldados para a fronteira ucraniana, enquanto autoridades ucranianas denunciam a iminência de uma invasão. O movimento russo alarmou lideranças europeias e fez com que o presidente dos EUA, Joe Biden, trabalhasse para acalmar os ânimos de aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Biden prometeu reações caso Putin tente uma invasão. “Deixei bem claro que, se invadir a Ucrânia, haverá consequências econômicas como nunca se viu antes". Enquanto Putin pede garantias de que a Otan, não usará da aproximação que vem tendo com a Ucrânia para se posicionar geograficamente mais próxima das fronteiras russas.

O exército da Ucrânia combate separatistas pró-Rússia na região da Crimeia desde 2014, num conflito que provocou mais de 13 mil mortes e que diminuiu consideravelmente desde 2015, ano dos acordos de paz, mas ainda com focos de violência frequentes. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, disse este mês que a "libertação" da Crimeia é uma "filosofia" nacional, enquanto os russos tratam o desejo como uma "ameaça direta". (Vitor Magalhães)

 

 

O legado multifacetado da União Soviética

 

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), fundada em 1922, não chegou a completar seu 70º aniversário. O desejo de liberdade e independência era tão grande nos estados bálticos, no Cáucaso e na Ásia Central que, entre março de 1990 e dezembro de 1991, 15 novos países surgiram ou voltaram a existir. O Muro de Berlim caiu ainda mais cedo, em 9 de novembro de 1989. Quase um ano depois, a Alemanha, que estava dividida entre Leste e Oeste desde o fim da Segunda Guerra Mundial, celebrou sua reunificação graças à revolução pacífica que ocorreu na Alemanha Oriental.

O movimento de liberdade no centro e no sudeste da Europa fez com que a esfera de influência soviética e partes de seu próprio império desaparecessem do mapa político. Esse ponto de inflexão foi desencadeado pelo comunista reformista Mikhail Gorbatchov que, como líder do Kremlin desde 1985, deu início a um novo rumo com a Glasnost (transparência) e a Perestroika (reestruturação) – um curso que, ao chegar ao seu final, fez com que a União Soviética se tornasse história.

Mas, mesmo 30 anos depois, os vestígios da desintegração daquela que era então a segunda superpotência ao lado dos Estados Unidos são visíveis e palpáveis. O legado distribuído de forma desigual ainda alimenta esperanças e sonhos, mas também é a causa de desentendimentos e guerras, como na Ucrânia.

Embora possuam uma experiência pós-comunista comum, o pós-comunismo na Geórgia é, na verdade, muito diferente do da Letônia ou do Turcomenistão, da Rússia ou da Ucrânia. (Da DW)

 

O que você achou desse conteúdo?