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Inflação de 2021: os vilões da alta dos preços
Reportagem Especial

Inflação de 2021: os vilões da alta dos preços

Aumento de preços de produtos e serviços agravou desigualdades sociais e intensificou insegurança alimentar. A dificuldade de recolocação no mercado de trabalho, principalmente para as mulheres, fez crescer a vulnerabilidade das famílias.

Inflação de 2021: os vilões da alta dos preços

Aumento de preços de produtos e serviços agravou desigualdades sociais e intensificou insegurança alimentar. A dificuldade de recolocação no mercado de trabalho, principalmente para as mulheres, fez crescer a vulnerabilidade das famílias.
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O aumento generalizado de preços vai além de um simples reajuste nas cadeias de produção e consumo. Em Fortaleza, há produtos que encerraram o ano 47,6% mais caros do que no primeiro mês de 2021. Isso significa que algo que estava R$ 50 em janeiro deste ano, chegou em dezembro custando até R$ 23,82 a mais.

Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Capital e Região Metropolitana, os aumentos nos valores de produtos e serviços variaram entre 0,3% e 47,6% a depender do segmento analisado.

Dos 50 conjuntos analisados, apenas três computaram quedas, sendo eles cereais e leguminosas com recuo de 7,57%, seguidos pela redução média de 3,2% no preço das frutas e de 0,28% nos serviços de comunicação.

No acumulado de 2021, o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA) de Fortaleza está em 10,15%, pontuando o maior aumento médio dos nove estados do Nordeste e o quinto maior do Brasil. Resultado coloca a Capital acima da média nacional estimada pelo IBGE em 9,36%.

Com fatores externos como desemprego e diminuição de renda intensificados pelo contexto de pandemia de Covid-19, o aumento de preços gera o agravamento da desigualdade social. No bairro da Serrinha, periferia de Fortaleza, Maria Santana diz temer a continuidade do cenário.

“Eu nem lembro a última vez que fui ao açougue. No começo ainda conseguia comprar um frango né, mas isso aumentou muito também. Eu e meus filhos estamos tendo que recorrer ao ovo mesmo, é o que ainda consigo comprar”, desabafa.

Maria Santana, Delfino Jordean, Sarah Cecília e João Gabriel: inflação reduz poder de compra da renda familiar(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Maria Santana, Delfino Jordean, Sarah Cecília e João Gabriel: inflação reduz poder de compra da renda familiar

Desempregada há cerca de dois anos, ela diz sobreviver com os três filhos de 14 anos, 6 anos e 1 ano e 3 meses por meio de “bicos” e da solidariedade das pessoas e de entidades como a Associação de Moradores do Bairro da Serrinha (Amorbase).

“Eu passei a pandemia inteira vivendo com doações, sem isso não sei o que teria sido da minha família. A fome me fez perder a vergonha, meus filhos têm fome e eu peço para eles, bato de porta em porta, como já tive que fazer mais de uma vez”, complementa em tom seco.

Maria Santana, de 36 anos, relata a dificuldade em abastecer a sua casa(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Maria Santana, de 36 anos, relata a dificuldade em abastecer a sua casa

 

Maria nem conseguiu receber o Auxílio Emergencial mesmo cadastrada no Bolsa Família. Atualmente, após a reformulação do programa social, ela ganha R$ 400 do Auxílio Brasil, que serve para manter o aluguel, que também aumentou em 2021, juntamente com a alimentação e as necessidades dela e dos três filhos. As incertezas sobre o futuro do programa social agravam a aflição da cearense.

“Meu aluguel era R$ 300 e agora foi para R$ 450. Eu pego tudo que recebo do Auxílio Brasil e tento arrumar o que falta para o aluguel que é o mais importante no começo do mês. Depois eu vejo se vou conseguir alguma doação e como faço para me virar, o que pagar, o que deixo atrasar, se compro o gás, se pago a luz, que do começo do ano para cá já aumentou mais de R$ 30 também”, detalha.

Para além das dificuldades financeiras, a cearense destaca ainda o impacto psicológico gerado pelo aumento generalizado de preços e diz estar sempre em um estado de apreensão constante, situação agravada pela falta de trabalho e recorrentes desistências da contratação dos serviços de limpeza e serviços gerais que realiza.

“O meu medo é termos que fechar tudo novamente, imagina o quanto as coisas não iriam ficar ainda mais caras com isso, fora as novas cepas do vírus né, eu fico com medo pensando que não vai ter ninguém para cuidar dos meus filhos se acontecer algo comigo, não sei se amanhã vou conseguir comprar o leite do meu filho. Isso tudo mexe muito com meu psicológico", afirma.

Santana é mãe solo nascida em Iguatu, no Cariri, mora há 15 anos em Fortaleza e afirma sempre ter tido uma vida humilde, mas jamais ter passado tão intensamente por situações de vulnerabilidade como nos últimos dois anos.

 

""É algo que eu nem acredito. Às vezes, fico me perguntando as razões de Deus, porque antes eu trabalhava, tinha pouco, mas tinha sempre e, hoje em dia, não tenho nada e nem sei se terei de novo."" Maria Santana, 36 anos, desempregada

 

A cearense critica ainda a falta de apoio governamental de forma mais enfática. “Os governantes não estão governando para os pobres, estão tirando tudo de nós com esses aumentos. Só quem é mãe sabe o que é ir dormir com fome e acordar de manhã com seu filho pedindo um pão com manteiga e você não ter”, finaliza ao pedir para que todos lutem por um futuro melhor.

 

 

 

Estado na contramão do Brasil

Agravada pela pandemia de Covid-19, a inflação no Brasil é intensificada por características próprias dos sistemas macroeconômicos que vigoram no País. O fato de a economia brasileira ser intimamente precificada em dólar, em especial por causa do peso econômico das commodities, é um agravante para o contexto nacional com impactos diretos na realidade do cearense.

Ainda que seja algo típico dos sistemas econômicos, a inflação nos últimos cinco anos tem sido aprofundada no Brasil devido ao encarecimento de produtos e serviços intermediários como os derivados do petróleo e a energia.

Além de intenso, se relaciona com múltiplas cadeias produtivas e, assim, gera um efeito dominó de elevação. Tal fenômeno foi ainda agravado pela desestruturação das cadeias de produção no mundo em virtude da adoção de lockdown para conter o avanço do novo coronavírus.

A escassez hídrica é outro agravante da inflação no Brasil e no Ceará, conforme destaca Fran Bezerra, integrante do Conselho Regional de Economia Ceará (Corecon).

Ele comenta que se as empresas estivessem produzindo em sua capacidade máxima, o índice poderia ser ainda maior. "Nós estamos em um baixo consumo, muitas pessoas desempregadas, o País em recessão, se não fosse esse cenário, viveríamos uma inflação ainda mais descontrolada", reforça.

Fran Bezerra, integrante do Corecon(Foto: foros Divulgação)
Foto: foros Divulgação Fran Bezerra, integrante do Corecon
Com relação ao cenário de Fortaleza, Fran destaca que o gargalo da baixa tancagem (armazenamento) de combustíveis e os longos caminhos entre os centros produtores e distribuidores dos derivados de petróleo até o Ceará pressionam a alta de valores nas cadeias produtivas.

Ainda assim, mesmo que impacte, a todos, os efeitos da inflação estão longe de serem democráticos. Com menor renda e necessidade de consumo imediato, os mais pobres, além de não terem reservas econômicas para conter a redução do poder de consumo, sentem mais diretamente o aumento generalizado de preços. 

Para 2022, as expectativas nacionais são de que o Banco Central permaneça com aumento dos juros doméstico como forma de tentar tornar as condições de investimentos no País mais atrativas do que em outras localidades.

Assim, com a entrada de dólar na economia local, espera-se frear a desvalorização do Real e impedir que a inflação permaneça crescendo. Na visão de Fran, o IPCA deve atingir o teto máximo da meta.

João Mário Santos de França é diretor-geral do Ipece(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação João Mário Santos de França é diretor-geral do Ipece

Já para João Mario de França, diretor geral do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), o Brasil irá experimentar “um remédio amargo” para tentar conter o aumento dos preços e, ainda assim, terá consequências no longo prazo, já que, além da inflação, o País também está vivenciando períodos de recessão, com a redução no nível de desenvolvimento e na produção de bens e oferta de serviços.

E mesmo com o impacto direto do cenário nacional, o Estado, porém, terá um contexto promissor no enfrentamento da inflação em 2022, conforme projeta João:

""O Ceará está fazendo seu dever de casa, com a continuidade dos planos de governo, uma excelente arrecadação fiscal e investimentos assertivos. O Ceará tem um cenário muito mais positivo para lidar com a inflação do que o Brasil."" João Mario de França, diretor geral do Ipece

Ele destaca ainda a consolidação dos hubs de desenvolvimento como um eixo decisivo no processo de retomada econômica e arrecadação de investimentos.

"Com o Banco Central pressionando a política de juros para tentar reter a inflação, muitos investidores devem esperar mais para aplicar recursos no Brasil e isso atrasa o desenvolvimento, a geração de empregos, mas os investimentos que o Ceará já estava negociando, eles devem se manter e colocar o Estado em um cenário positivo."

O especialista reforça ainda que é preciso investimentos estaduais direcionados e com foco na consolidação de infraestrutura atrativa para assegurar tais aportes.

 

 

>> PONTO DE VISTA

O preço da inflação 

Por Carolina Matos (*)


Carolina Matos, mestre em Economia(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Carolina Matos, mestre em Economia

Com a aproximação do Natal, surgem na TV as propagandas de peru, com famílias reunidas, sorridentes e felizes, numa mesa farta. No mundo real, sentiremos a dolorosa ausência de entes vitimados pela Covid-19 e boa parte de brasileiras e brasileiros não terá sequer direito a uma ceia natalina.

A inflação brasileira tirou a comida da mesa e deteriorou a renda do trabalhador. A alta geral nos preços deu-se por várias consequências econômicas da pandemia global, que persiste com a desigualdade na distribuição de vacinas e o surgimento de novas cepas. Mas há dois movimentos que impactam mais fortemente: a alta do dólar, que beira os R$ 6 e a disparada nos preços internacionais das commodities.

Entre atender o mercado interno ou aproveitar a alta na demanda externa para faturar em dólar, a turma do agronegócio não pensou duas vezes. Em 2021, o setor elevou as exportações e alcançou um saldo positivo na balança comercial de US$ 96,6 bilhões no acumulado do ano, muito acima do resultado de US$ 14,8 bilhões verificado no mesmo período em 2020.

Quanto ao mercado cambial, mesmo antes da pandemia alarmar o Brasil, as altas no dólar já batiam recordes nominais. Desde então, pouco fizeram o governo e o Banco Central para conter a depreciação do real. O aumento dos preços administrados e a insuficiente assistência governamental à população diante do recuo da atividade econômica aprofundaram as crises e os abismos sociais nos quais a classe trabalhadora foi atirada.

Neste ano, o governo brasileiro viu o IPCA alcançar dois dígitos, registrando 10,7% no acumulado do ano. Para os mais pobres, que contam com renda domiciliar menor que R$ 1.808,79, o percentual foi de 11%, conforme estudo do IPEA, de novembro/21, que levanta a inflação segundo faixas de renda. O índice apurado para os mais ricos foi menor, de 9,7%. Nada de novo num mundo onde tudo é mais penoso para quem é mais pobre.

Estando a meta inflacionária longe do teto de 5,25%, o Banco Central deve redigir um comunicado ao Ministro da Economia para explicar os motivos do não cumprimento do planejado.

""A cartinha a Paulo Guedes, porém, fiel ao ditames dos economistas atrelados ao mercado, indicará um aperto fiscal e a continuação do aumento na taxa básica de juros para frear uma suposta demanda aquecida no país, que estaria pressionando o nível geral de preços." Carolina Matos, mestre em Economia

A fórmula “jênia” tende a piorar a recessão, dificultando a criação de emprego e renda numa nação que não garante sequer o simples direito ao trabalho dignamente remunerado. E por mais que haja tinta na caneta, a depender das elites econômicas, não haverá linhas para considerar a geladeira escassa do Seu Antônio, a mesa desprovida da Dona Maria e o estômago vazio de 19 milhões de pessoas que passam fome neste exato momento no Brasil.

(*) Mestre em Economia

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