"Vem ver, ó Fortaleza, /
O Pirambu passar/
Somos pessoas humanas/
Temos direitos que ninguém pode tirar”
Era o primeiro dia de 1962 e o Hino do Pirambu ecoava pelos quase cinco quilômetros percorridos até a Praça da Sé. Cerca de 30 mil pessoas, conforme noticiou O POVO, caminhavam levando cartazes como “Não adianta combater o comunismo; é preciso fazer cristianismo”, “Quem só vive para si não deveria ter nascido” e “É pecado mortal morrer de fome”. A Marcha do Pirambu marcou a história dos movimentos por moradia e justiça social na Capital.
Hoje o bairro é, no mapa de Fortaleza, um trapézio estreito que se equilibra entre o mar à frente e a avenida Leste Oeste atrás. À direita, o bairro Jacarecanga, delimitado pela rua Eduardo Studart; à esquerda, a avenida Pasteur o separa do bairro Cristo Redentor. Naquela época, a rua era de areia e o Grande Pirambu ia até a Barra do Ceará abrigando operários e refugiados da seca.
"Tinha bem umas 5 mil famílias morando aqui. Vivíamos sob temor, porque duas famílias, os Braga Torres e os Carvalho, diziam que eram donas das terras e podiam tomar da gente”, conta José Maria Tabosa, que estava entre os manifestantes. Aos 80 anos, o sapateiro aposentado lembra que a marcha foi o ápice de articulações que aconteciam desde 1958. “Nessa época eu tinha 16 anos e um dia mandaram para casa um convite para uma reunião. Lá estava sendo discutido o que se fazer para não pagar os tributos que devíamos a essas imobiliárias”, relata.
Segundo ele, duas questões vieram logo à tona: os supostos donos das terras eram grileiros e era forte a presença do Partido Comunista do Brasil nas reivindicações. “Essas pessoas já tinham uma base de como fazer uma atividade política mais comunitária. Mesmo assim, colocaram que a gente precisaria ter uma frente de pessoas mais aproximada dos governos e chegou-se à conclusão que seria boa a Igreja. Por isso fomos atrás do padre Hélio, que na época já celebrava aqui”, aponta Tabosa.
O historiador Nonato Nogueira explica que por ser um bairro operário, como outros da região oeste da Capital, o Pirambu foi local prolífico para células do PCB. “Chegou a haver 17 células do partido no bairro”, expõe. “Além deles, tinha atuação muito presente dos estudantes e de assistentes sociais, que desenvolviam trabalhos para ajudar a população. Nesse caminho entra ainda a Igreja, que era importante força anticomunista naquela época da Guerra Fria, mas também era muito social naquele momento de reformas de base antes da Ditadura.”
Vem ver, ó Fortaleza,
O Pirambu passar
Somos pessoas humanas
Temos direitos que ninguém pode tirar
Somos cristãos que temem
O Cristo é nosso ideal
E como Ele todos faremos
A reforma social
Pirambu marchar,
Pirambu marchar,
Por um mundo melhor
Vamos lutar
Desejos e projetos desenvolvidos durante anos culminaram na marcha realizada no feriado de 1º de janeiro de 1962. “Tinha uns nove anos e fui com minha mãe e meu pai. Tem coisas que, é incrível, não esqueço. Eu me lembro da multidão de um lado e do outro, lembro do hino e que a marcha foi até a Praça dos Leões, no antigo palácio do Governo”, conta Carlos Careca, que carrega na memória as histórias do bairro onde nasceu e de onde nunca saiu.
“Teve apoio de alguns bairros, porque a Diocese tinha alguns contatos e o partido também. Foi do Antônio Bezerra, que antigamente era Barro Vermelho, da Parangaba e da Messejana. Foi saindo gente de uns cinco pontos de encontro até aqui, uma base de 15 mil a 20 mil pessoas”, lembra Tabosa. “O Pirambu só tinha uma entrada e uma saída pela rua pela rua Jacinto de Matos. A marcha foi por ali e entrou na rua São Paulo. E quando chegou na Jacarecanga, um bairro nobre, a polícia não queria deixar a gente passar. Aí o padre Hélio entrou na negociação e passamos, lembro muito disso”, acrescenta Carlos Careca.
Carlos explica que demandas, além do direito à propriedade das terras, estavam envolvidas. A rua Nossa Senhora das Graças era a principal via e os ônibus entravam somente até o começo da rua Francisco Cordeiro, cerca de 300 metros desde o início do bairro. “O banheiro da minha casa era em quatro varas e cercado por um pano. E assim eram todos os banheiros aqui", acrescenta. "Foi muito bom crescer no Pirambu, tenho orgulho do bairro, mas na época era mesmo muita miséria.”
Alguns dias depois da marcha, uma comitiva cearense seguiu para Brasília a fim de discutir a desapropriação das terras da região. Finalmente, em 25 de maio, foi publicado o decreto nº 1.058/1962. Com a decisão federal, duas áreas que somadas resultavam em 1,5 km² foram desapropriadas e tornaram-se de utilidade pública. Além disso, cerca de 6,3 milhões de cruzeiros foram destinados para “execução de plano de urbanização, obras de higiene e abertura de vias e logradouros públicos”.
Hoje, na área de meio quilômetro quadrado do atual bairro Pirambu, vivem pelo menos 17.775 pessoas segundo o Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com a plataforma Fortaleza em Bairros do Instituto de Planejamento de Fortaleza (Iplanfor), um conjunto habitacional (o Terra da União) e oito favelas fazem parte do atual Pirambu: Areia Grossa, Olavo Andrade, Beco do Biscoito, Alvaro Alencar, Rio Nilo, Santa Elisa, Cacimba dos Pombos e Tirol.
O bairro conta, segundo o Iplanfor, com dois postos de saúde. Na área de mobilidade urbana são 18 pontos de ônibus e duas estações do sistema de bicicletas compartilhadas Bicicletar. São ainda 3.343 casas com escritura e 337 pontos comerciais registrados.
Em todos os relatos, é unânime a liderança exercida pelo padre Francisco Hélio Campos. Nascido em Itatira, então distrito de Quixeramobim, em 24 de julho de 1912, era um dos filhos do casal Francisco Cordeiro Campos e Belarmina Gomes Campos. Cedo decidiu ingressar no seminário, juntamente com o irmão, Gerardo José. Suas três irmãs, Hilza, Zilma e Inês, também optaram pela vida religiosa e se tornaram freiras.
Ordenado em 5 de agosto de 1937, padre Hélio desenvolveu trabalhos pastorais estreitamente ligados às comunidades por onde passou. Chegou ao Pirambu em 1958, iniciando a Igreja Nossa Senhora das Graças. “Ele é o Pirambu; sem ele nós não estaríamos aqui, isso é fato. Como não tinha ônibus, não tinha nada, fazia o trabalho pastoral dele a pé”, lembra Carlos Careca. De lá, o clérigo saiu em 1969, quando foi transferido para a paróquia do Mondubim e, meses depois, foi nomeado 2° bispo da Diocese de Viana, no Maranhão.
Para as transformações no bairro, o pároco contou com laços que tinha na Marinha (onde foi capelão), entre políticos, entre assistentes sociais e entre os moradores do bairro. "Com a Aldaci Barbosa, depois da marcha, a gente conseguiu criar o centro social paroquial, e vários projetos: a cooperativa artesanal dos pescadores, 60 casas, 16 colégios, a oficina de mosaico, trouxemos o Luiz Gonzaga pra um show e estamos até hoje aqui”, relata José Maria Tabosa. “Acho um padre muito avançado para aquela época. Agora, ele tinha sua forma rígida, né? Quando ele dizia para fazer algo e a gente questionava, ele dizia 'mas eu sou o padre'. Não era proposta ruim, mas a gente precisa lapidar, né?”
A socióloga Irlys Barreira, professora na Universidade Federal do Ceará (UFC), analisa que o pároco “foi importante porque permitiu uma mediação e tornou um movimento com uma característica, vamos dizer assim, mais pacífica”. “Havia a marca de ser um movimento da igreja e da comunidade, e não dos sindicatos. Havia esse contraponto. Mas, se você observar, era mais um contraponto para o público do que para quem participava. Ali eles tinham mais concordâncias que divergências", expõe.
Vítima de um câncer, Dom Hélio Campos faleceu em Fortaleza, no dia 23 de janeiro de 1975. Na manhã de seu falecimento, depois de ser velado na Catedral da Sé de Fortaleza, seu corpo foi transportado em avião especial para ser sepultado na então Igreja Matriz de Viana (MA), hoje Catedral da Diocese de Viana.
“Todos os movimentos que têm visibilidade e engendram conquistas criam uma espécie de memória e referência. As políticas sociais que vieram depois tem, sim, a ver com a Marcha, com a ideia e a possibilidade de o bairro ir para a rua por direitos e com outros movimentos que aconteceram nas décadas seguintes”, aponta Irlys Barreira. Como exemplos, a socióloga lembra da ocupação da favela José Bastos, em 1978. “Foi outra uma marca nessa história de resistências ao que se passou a chamar de 'desfavelização' da Cidade”, afirma.
Zé Maria Tabosa aponta que a Marcha também deu forças a outros desejos do bairro. “Teve uma época, que o Pirambu chegou a ter 123 associações e tinha mobilização direto. A gente sabia que tinha força e que tinha possibilidades”, conta. “Mas depois foi diminuindo um pouco e hoje muita gente nova não conhece a Marcha”, lamenta, opinando que o movimento deveria ser tema discutido nas escolas.
Ainda assim, integrantes de movimentos sociais da Capital sentem que a Marcha reverbera para além do Pirambu. “Não estava em Fortaleza na época, mas por 1978, 1979 eu estava aqui e participava muito das reuniões de movimentos e havia essa lembrança da Marcha. Dessas reuniões e movimentos saíram muitos outros, todos com essa memória e a formação cristão política que as comunidades eclesiais de base fizeram”, relata Francisco Carlos da Silva, morador do Caça e Pesca. “E hoje muita coisa acontece por essa junção de forças na Frente de Luta por Moradia Digna.”
A Frente é um dos principais movimentos de articulação de comunidades e territórios em situação de vulnerabilidade social, econômica e ambiental na Capital. Surgida em 2014, em meio a um cenário de remoções pelas obras da Copa do Mundo no Brasil, a Frente reúne movimentos sociais, comunidades e assessorias técnicas tendo como linhas de atuação o acesso à terra urbana, a democratização da gestão municipal e a luta pela implementação das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis).
“O direito à moradia vem em um contexto complicado há anos. As políticas públicas vinham muito concentradas no Governo Federal e no programa Minha Casa, Minha Vida — o que foi sendo desfeito. Ao mesmo tempo, os governos em nível estadual e municipal, em todo o Ceará, não têm uma política própria de habitação”, explica Miguel Rodrigues, coordenador do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Frei Tito de Alencar. Ele acrescenta que umas das principais articulações atuais é para que as Zeis sejam efetivadas. “Ao todo, são 127 zonas de interesse social, apenas 10 foram colocadas prioritárias e só agora, 12 anos depois, estão saindo do papel.”
A Marcha do Pirambu ficou registrada não só na memória de seus participantes e dos movimentos sociais, mas também nas páginas de jornais e livros. Ainda nos dias seguintes, O Estado, Correio do Ceará, O Nordeste, Gazeta de Notícias e O POVO foram alguns periódicos que noticiaram a manifestação. Leia trechos das notícias: