Quando a reforma do Ensino Médio foi instituída pelo Governo Federal, ainda em 2017, já estava prevista a data-limite para a sua implementação: cinco anos contados a partir da assinatura da lei nº 13.415. Esse prazo chegou e o ano letivo de 2022 marca o início do Novo Ensino Médio (NEM) em todo o Brasil. A transição se inicia com a 1ª Série neste ano, sendo ampliada para as séries seguintes até 2024.
No Ceará, a implantação se dá a partir deste mês nas redes pública e particular. Jucineide Fernandes, secretária-executiva do Ensino Médio e Profissional da Secretaria de Educação do Ceará (Seduc), explica que experiências já praticadas nas escolas de tempo integral serão ampliadas para toda a rede.
“Todas as turmas de 1ª Série do Ensino Médio diurno passam a ter um currículo com a formação geral básica somada às disciplinas eletivas que cada escola ofertará e o aluno poderá escolher quais fazer. Pode ser, por exemplo, História e Cinema, Estatística, Literatura Brasileira etc”, enumera. A rede dispõe de um catálogo de eletivas possíveis e cada colégio fica responsável por definir quais serão ofertadas.
Ela explica que as turmas do período noturno não terão essa mudança porque “já têm um perfil diferenciado, mais pensado na qualificação profissional”. Todavia, todos os estudantes do ano inicial do Ensino Médio terão mais cinco horas-aula por semana. As classes adicionais poderão ser presenciais ou na modalidade remota síncrona, sendo uma hora extra por dia da semana ou horas aglutinadas em alguns dos dias.
“O desenvolvimento integral do estudante, unindo as habilidades cognitivas e socioemocionais, é outro aspecto do NEM. A rede estadual já vem trabalhando isso em diversos projetos desde pelo menos 2008, como o Professor Diretor de Turma e o Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais”, acrescenta a secretária. A Seduc informa que está promovendo diálogos com os gestores escolares e elaborou um curso, que conta com a participação de mais de 4 mil professores, gestores e técnicos, para a familiarização com o novo modelo de ensino.
Na rede particular, “todos os colégios estão prontos para essa transição“, afirma Airton Oliveira, presidente do Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Ceará (Sinepe-CE). "As nossas escolas já têm uma grade que contempla mais que as 3 mil horas que os anos somados precisam ter, por exemplo. Também promovemos, desde 2019, uma série de encontros e simpósios para preparar os professores e gestores", lista.
Conforme O POVO apurou com alguns grandes colégios particulares do Estado, a maior diferença será a inclusão dos itinerários. Na maior parte das escolas, estes serão divididos conforme as quatro competências gerais definidas pela Base Nacional Comum Curricular (Linguagens, Humanas, Natureza e Matemática). Além disso, os itinerários serão oferecidos de forma que os estudantes possam mudar de percurso a cada semestre ou ainda optar por todas as trilhas, caso desejem.
Em geral, os investimentos na rede privada estão na formação para professores e equipe pedagógica, bem como na estruturação da quantidade de aulas diante da oferta dos itinerários e na consequente contratação de novos profissionais, quando necessário.
Aos 15 anos, Melina de Queiroz está prestes a entrar no Ensino Médio. Estudante do Colégio Adventista de Fortaleza, ela tem interesse em cursar Psicologia ou Jornalismo e escolheu seguir pelo itinerário de Ciências Humanas. “Acho interessante que possamos ter mais contato com as áreas que temos mais afinidade, mas estou apreensiva por não ter certeza da minha escolha sobre o que eu quero cursar. Ao menos, a gente pode mudar a cada semestre”, pondera.
A apreensão acontece também pelas dúvidas sobre como o novo modelo funcionará. “Estou meio ansioso para ver como vai ser a dinâmica de aula, divisão de turmas e salas, tempo de aula... Mas eu também tenho um certo receio por conta de isso não ter acontecido antes”, aponta Samuel Levi, que tem 14 anos e é colega de Melina. “Tenho uma irmã de 19 anos e, em muitas ocasiões escolares, uso ela como exemplo a ser seguido. Não vai dar para fazer isso por conta que ela não vivenciou o Novo Ensino Médio.”
Perspectivas para a entrada na universidade e as chances de um bom desempenho nos vestibulares são outra inquietação. “O Enem engloba todas as matérias, mas como que eles vão botar todas as matérias para as pessoas que só estudaram algumas e deixaram outras 'de lado'?”, questiona Samuel, que pretende ser engenheiro e escolheu o itinerário de Ciências Biológicas. “Acho que vai 'atrasar' algumas pessoas nas matérias que elas não desejaram e isso pode atrapalhar bastante.”
Entretanto, nem todos os jovens foram informados sobre como e quais serão as novidades do ensino em 2022. A fortalezense Ana Júlia da Silva, tem 15 anos e estuda no Colégio Humanista, que também faz parte da rede particular. “Estou ciente de algumas mudanças e me interessei na parte em que os alunos podem escolher parte das matérias que vão estudar”, afirma vagamente, acrescentando que até o momento não foram apresentadas escolhas. “Estou bastante ansiosa, vai ser uma coisa nova pra mim, espero me adaptar bem rápido.”
Para José Cauã, aluno da escola estadual Hilza Diogo, a entrada no Ensino Médio neste ano seria marcada principalmente pela possibilidade de uma 4ª série. “O que achei interessante nesse novo ano letivo é o fato de ajudar pessoas que não estão completamente seguras para fazerem o vestibular”, afirma. “Isso foi o que mais chamou minha atenção. Contanto que não seja algo obrigatório.” O ano adicional foi discutido em 2020 e 2021 diante das deficiências evidenciadas pela pandemia de Covid-19, entretanto não será adotado no Ceará.
O Ensino Médio (EM) brasileiro é marcado por altos índices de evasão e repetência. Cerca de 23% dos estudantes que entram na 1ª Série do EM reprovam ou evadem. Esse número vai para aproximadamente 15% na 2ª Série e 10% na 3ª Série. Para alguns especialistas a nova arquitetura curricular pode ser uma solução; para outros, o foco de uma reforma deveria estar em outras questões.
“Em um cenário complexo, estamos formando os jovens para um futuro mais complexo. A nova arquitetura pode trazer mudanças promissoras”, afirma Katia Smole, para quem a baixa atratividade desse nível escolar está em colocar os vestibulares como o único caminho possível. “Há uma mobilização, todas as redes trabalharam bastante e têm se preparado”, percebe. “Precisamos de monitoramento para que ajustes possam ser feitos durante o processo.”
Na avaliação da diretora-executiva do Instituto Reúna e ex-secretária de Educação Básica no Ministério da Educação (MEC), a maior vulnerabilidade são os alunos que estão chegando na 1ª Série. “Além do esforço da implementação, é preciso recompor as aprendizagens depois do cenário de pandemia”, comenta. Diante disso, Katia valoriza que “a maioria absoluta das redes de ensino, especialmente as públicas, optaram por estruturar a 1ª Série voltada para a formação geral básica com algumas eletivas e o componente de projeto de vida” a fim de preparar os alunos e as redes para adotar os itinerários formativos em 2023.
“Infelizmente, a proposta do NEM tem um foco muito grande no currículo. Penso que a gente está em uma encruzilhada e não conseguirá avançar sem atacar os problemas básicos que temos hoje.”, contrapõe Miriam Fábia Alves, professora da faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Ela cita como questões a baixa valorização e formação dos professores, a queda nas verbas para Educação e a infraestrutura das escolas.
Miriam, que também é diretora financeira da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), entende ainda que a reforma foi pouco discutida e pouco estudada pelos profissionais. “Sem recursos não tem como fazer implementação; a não ser, eu diria, uma muito meia boca. Vai mudar o currículo, mas continuar com os mesmos problemas.”
Para Nohemy Ibanez, membro do Conselho Estadual de Educação (CEE) e parte da comissão relatora do Documento Curricular Referencial elaborado pela Seduc, “há uma evidente ocupação e preocupação de que as escolas fomentem uma formação integral aos estudantes”. “O desafio está posto em uma mudança cultural e política de se construir educação para e com esses jovens e considerando toda a sua diversidade”, destaca.
“O Ceará leva uma vantagem enorme porque investe há pelo menos duas décadas de forma prospectiva e responsável no Ensino Médio, olhando também para o Ensino Fundamental”, aprecia. “Há um conjunto de questões de diferentes instâncias e agora temos a tarefa de implantar, mas não acontece por mágica nem por decreto. É preciso formação contínua, planejamento e investimento.”