A eleição de 1989, a primeira do pós-redemocratização, teve característica única na história brasileira. Todas as principais personagens políticas em atividade foram para a disputa. Estavam ali líderes e fundadores dos partidos que construíram o Estado criado ao fim da ditadura militar. A eleição era descasada. Havia votação para presidente e nada mais. Ninguém deixaria de concorrer para buscar mandato de governador, senador ou deputado. E, após 29 anos sem eleição direta para presidente, ninguém sabia o que esperar de uma votação nacional. Todos queriam testar a força. Os partidos foram com os nomes que melhor os representava.
Pelo PMDB estava Ulysses Guimarães, líder da oposição institucionalizada ao regime dos generais. Paulo Maluf, pelo PDS, um dos herdeiros da ditadura. Outro era Aureliano Chaves, vice-presidente da época de João Figueiredo, concorrendo pelo PFL. Pelo PSDB havia Mário Covas. Afif Domingos disputou pelo PL. Havia personagens como Enéas Carneiro e outros. Numa eleição de figurões, Fernando Collor de Mello apresentou-se como novidade e foi eleito.
A esquerda se expressava em diferentes vertentes. Roberto Freire concorria pelo partidão, o PCB — que depois virou PPS e hoje é Cidadania. Egresso da luta armada, Fernando Gabeira representou o PV. A nova esquerda ascendente era liderada pelo PT de Luiz Inácio Lula da Silva. E o trabalhismo era representado pelo principal herdeiro político de Getúlio Vargas e João Goulart: Leonel Brizola, do PDT, cujo centenário é neste sábado, 22 de janeiro de 2022.
Brizola foi uma das principais personagens da política brasileira no século XX. Governou o Rio Grande do Sul e, em duas ocasiões, o Rio de Janeiro. Teve como marca a aposta na educação. Talvez a participação mais emblemática tenha sido na Cadeia da Legalidade, em 1961, quando foi decisivo para garantir a posse do vice-presidente João Goulart, de quem era cunhado. Testemunha dos acontecimentos, o jornalista Carlos Bastos, em entrevista ao Jornal do Comércio do Rio Grande do Sul, em agosto do ano passado, definiu Brizola como único civil a barrar um golpe militar na América Latina.
Em 1989, Brizola travou ferrenha disputa com Lula pelo lugar no segundo turno. O petista levou a melhor por 0,65% dos votos, menos de meio milhão de eleitores. Naquela eleição, o trabalhista mostrou força particular em Fortaleza.
Houve quatro capitais nas quais Brizola foi mais votado naquele primeiro turno. Duas foram dos estados onde ele tinha sido governador: Rio de Janeiro (RJ) e Porto Alegre (RS). Outra foi Florianópolis, também no Sul, onde ele nasceu e despontou na política. A outra foi Fortaleza.
No primeiro turno, Brizola recebeu 250.952 votos na capital cearense. O segundo mais votado entre os fortalezenses foi Fernando Collor de Mello, com 145.982 votos. Apoiado pelo então governador Tasso Jereissati, Mário Covas foi o terceiro colocado, com 113.258 eleitores. Brizola monopolizou o eleitorado progressista. Segundo colocado no País, Lula ficou em quarto em Fortaleza, com 100.433 votos.
O brizolismo já havia mostrado força na capital na eleição municipal de 1988, quando o pedetista Edson Silva perdeu para Ciro Gomes, que estava no PMDB. A diferença foi a menor da história da cidade. Brizola fez comício na praça José de Alencar ao lado de Edson. Em 1989, voltou em campanha. Visitou ainda Juazeiro do Norte e Sobral. Houve outros nove municípios do Ceará nos quais Brizola venceu: Aquiraz, Caridade, Ipaporanga, Maracanaú, Ocara, Palhano, Palmácia, São Gonçalo do Amarante e Tejuçuoca.
No segundo turno, Brizola entrou na campanha de Lula. Em Fortaleza, o petista saiu da quarta colocação do primeiro turno para 62% dos votos no segundo turno. Deixou Collor com 38%. O eleitor brizolista migrou para o petista.
Brizola foi eleito governador do Rio de Janeiro pela segunda vez em 1990. Teve uma gestão atribulada e com graves crises na segurança. Candidato a presidente novamente em 1994, não repetiu o desempenho de 1989. Foi o quinto colocado, atrás de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que foi vitorioso, de Lula, Enéas e Orestes Quércia. O quinto lugar também foi o que conseguiu em Fortaleza. Em 1998, foi vice de Lula, mas FHC foi reeleito no primeiro turno.
No centenário de Brizola, O POVO revisita a trajetória do político carismático e polêmico, acusado de caudilho e defensor da democracia e da Constituição, chamado de populista e que tinha a educação como bandeira. O texto é de Sérgio Falcão e a pesquisa de Roberto Araújo, integrantes da Central de Jornalismo de Dados do O POVO - DATADOC.
Artigo
Por Sérgio Falcão, historiador
A família de pequenos agricultores perdeu as terras em litígio judicial e se mudou para São Bento. Brizola foi alfabetizado pela mãe nos primeiros anos. Estudou com bolsa de estudos e trabalhou em hotel para o sustento. Aos dez anos, concluiu o primário no Colégio da Igreja Metodista. Mudou-se para Porto Alegre em 1936, e trabalhou como engraxate, ascensorista, graxeiro e trocador de farmácia. Três anos depois, concluiu o curso de técnico rural.
Aprovado em concurso do Ministério da Agricultura, permaneceu pouco tempo em Passo Fundo, onde havia sido lotado. Regressou a Porto Alegre, onde trabalhou como jardineiro do Departamento de Parques e Jardins da Prefeitura e continuou os estudos. No Colégio Júlio de Castilhos, entrou na política estudantil e foi um dos fundadores do grêmio.
Ingressou, em 1945, pelo vestibular, na Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Formou-se em 1949. Ingressou na política nesse período, ao se filiar ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1945. Em 1947 elegeu-se deputado estadual. Na Assembleia Legislativa gaúcha, defendeu a pauta da educação. Casou-se em 1950 com Neusa Goulart, irmã do também deputado estadual do PTB João Goulart. Teve como padrinho Getúlio Vargas.
Reeleito deputado estadual nas eleições de 1950, tornou-se líder do partido na Assembleia Legislativa. Derrotado nas eleições para a prefeitura de Porto Alegre no ano seguinte, assumiu em 1952 a Secretaria de Obras Públicas no governo estadual. Priorizou saneamento básico e rodovias. Em 1954, foi eleito deputado federal. Em 1955, foi eleito prefeito de Porto Alegre. Priorizou a educação, aumentando as matrículas na rede municipal e implantando ensino em dois turnos.
Na eleição estadual de 1958, foi indicado pelo PTB como candidato a governador. Venceu com 670.003 votos contra 500.944 do segundo colocado. A administração se voltou ao desenvolvimento econômico, industrial e educacional.
Criou a Caixa Econômica Estadual e o Estado assumiu o controle do Banco do Rio Grande do Sul. Em conjunto com Paraná e Santa Catarina, foi criado o Banco Regional de Desenvolvimento Econômico (BRDE).
Ganhou repercussão internacional a encampação da Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense, filial da American and Foreign Power Company (Amforp), e Companhia Telefônica Rio-Grandense, subsidiária da International Telephone and Telegraph (ITT). Apoiado por forças nacionalistas gerou crise entre o Brasil e os Estados Unidos.
No campo educacional, ampliou a rede de ensino primário e médio a todo Rio Grande do Sul. Ao final do mandato, haviam sido construídas 5.902 escolas primárias, 278 escolas técnicas e 131 ginásios e escolas normais, totalizando 6.302 novos estabelecimentos de ensino. Foram abertas 688.209 novas matrículas e admitidos 42.153 professores.
No campo agrário, Brizola apoiou o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master). Ele e a esposa doaram 1.038 hectares da Fazenda Pangaré a agricultores.
(*) Sérgio Falcão é históriador do Datadoc-O POVO
João Goulart, então vice-presidente da República, encontrava-se em visita oficial à China quando Jânio Quadros renunciou à Presidência, em 25 de agosto de 1961. A posse do vice foi contestada pelos ministros militares. Jango era herdeiro político de Getúlio Vargas e ligado aos sindicatos. Carregava a animosidade da ala militar e setor conservador da sociedade.
Brizola, cunhado de Jango, deflagrou uma campanha para garantir a posse do vice-presidente e o cumprimento da Constituição. Para isso, se valeu de manifesto divulgado em rádios. Quando foram tiradas do ar, ocupou a única que não havia transmitido o manifesto: a Guaíba. A partir de transmissões do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, formou a “cadeia da legalidade”, comandando 104 emissoras gaúchas, catarinenses e paranaenses mobilizando a população em defesa da posse de Goulart. No País, há mobilizações da sociedade civil em favor da legalidade constitucional.
Cedendo às pressões, os militares aceitaram a posse de Jango, desde que sob o parlamentarismo. Goulart aceitou a condição, a contragosto de Brizola. A posse foi em 7 de setembro de 1961. Em janeiro de 1963, plebiscito aprovou a volta do sistema presidencialista.
Brizola, após o fim do mandato como governador, assumiu como deputado federal eleito pela Guanabara. Momentos de tensionamento marcaram a relação com Jango. Brizola pressionava pelas reformas de base, enquanto Jango seguia uma política de conciliação. Inflação, troca de ministros, instabilidade política e social, inconsistência do apoio militar e frágil base política fragilizaram o governo Jango.
O comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, com as presenças de Jango e Brizola, defendeu-se o fechamento do Congresso, convocação de nova Constituinte e agenda nacionalista de reformas. O movimento ousado de afirmação dos rumos do governo encontrou oposição na elite econômica, sociedade conservadora e meio militar. Em 31 de março de 1964, começou o golpe militar. Brizola propôs a Jango criar resistência no Rio Grande do Sul para restabelecer a Presidência. Goulart não aceitou e os dois se exilaram no Uruguai.
Brizola se recusa integrar a Frente Ampla, com Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart, que se propunha a restabelecer a democracia no Brasil. Dedicou-se ao trabalho na fazenda da esposa no Uruguai, onde recebeu visitas de políticos e candidatos.
Quando os militares implantaram uma ditadura no Uruguai, o governo brasileiro esperou que fosse extraditado. Mas, a posse de Jimmy Carter nos Estados Unidos mudou a política para a América Latina e permitiu a Brizola viajar a Nova York sob segurança de agentes da CIA (Central Intelligence Agency) em setembro de 1977.
Em 1978, mudou-se para Portugal. Viajou para contatos com líderes europeus, participou da reunião da Internacional Socialista e manteve relação com o primeiro-ministro português, o socialista Mário Soares. Promoveu em Lisboa reunião com brasileiros com o objetivo de refundar o PTB, resultando na Carta de Lisboa.
Como a anistia, Brizola regressou ao Brasil em setembro de 1979. Em manobra política atribuída ao general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil da Presidência da República, o PTB ficou sob o comando de Ivete Vargas. O novo partido de Brizola nasceu como Partido do Trabalhismo Democrático (PTD). Uma semana depois, os fundadores mudaram para Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Foi eleito governador do Rio de Janeiro em 1982, tendo Darcy Ribeiro como vice. Destacou-se com a velha bandeira da educação, com a construção dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps).
Largou como favorito nas eleições presidenciais diretas de 1989. Gradativamente ao longo da campanha, foi superado por Fernando Collor e, no fim, acabou ultrapassado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No segundo turno, engajou-se na campanha petista e conseguiu transferir parte de seu capital político, principalmente, nas votações do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Em 1990, elegeu-se para o segundo mandato no governo do Rio de Janeiro. A gestão foi atribulada, com crises sucessivas na segurança pública, como as chacinas da Candelária e Vigário Geral. O desempenho afetou a carreira política de modo que nunca se recuperou.
Foi contra o impeachment de Fernando Collor, por defender mais uma vez a garantia do mandato presidencial.
Nas eleições presidenciais de 1994, foi quinto colocado, com 3,18%. Em 1998, foi vice de Lula. Apesar do simbolismo da união das maiores forças da esquerda brasileira, a campanha expôs o desencontro de ideias dos dois políticos. Perderam no primeiro turno para o reeleito Fernando Henrique Cardoso.
Apesar de declarar que não mais se candidataria, foi candidato a prefeito do Rio de Janeiro em 2000. Ficou em quarto lugar. Nas eleições ao Senado em 2002, ficou em sexto.
Na Presidência de Lula, o PDT compôs o governo. Mas, em dezembro de 2003, o diretório nacional do partido, comandado por Leonel Brizola, declarou independência por não pactuar com a política considerada neoliberal.
Em 21 de junho de 2004, Brizola morreu no Rio de Janeiro, vítima de infarto. Foi sepultado em São Borja (RS), no mesmo cemitério onde estão enterrados Getúlio Vargas e João Goulart. O então presidente Lula decretou luto oficial de três dias. Em 2015, a à época presidente Dilma Rousseff sancionou lei que inseriu Leonel Brizola no Livro de Heróis da Pátria.
Artigo
Por Emanuel Freitas (*)
Professor de Teoria Política da Uece
O principal legado do Brizola é uma ênfase no nacionalismo, que era muito presente em parte na segunda metade do século XX. Um certo nacionalismo à moda antiga, de ideais da pátria, de morrer pela pátria. O Brizola foi uma liderança carismática, que soube criar uma nova sigla partidária, que é o PDT, a partir do seu legado, que em grande medida fez com que o PDT, ainda hoje, permanecesse ligado à sua imagem. O partido de Leonel Brizola, o partido da reconstrução nacional. Então, o grande legado do Brizola é esse homem político que é fiel aos seus ideais, a sua ideologia, mesmo com o passar dos tempos.
Ele foi uma liderança carismática, muito concentradora de recursos políticos. Ele tem essa semelhança com o Lula, que impede que outras lideranças cresçam em seu redor. Então, o Brizola também foi assim, uma liderança carismática, centralizadora, fiel aos seus ideais, que pouco contemporizou. Esse fato de não ter contemporizado é uma diferença essencial entre ele e o Lula. Apesar de ter sido vice do Lula em 1998.
Mas é esse nacionalista que apontava contra as oligarquias, contra os interesses do grande capital. Um homem de esquerda do século XX, leal aos seus ideais.
(*) Professor de Teoria Política da Uece