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Dia da Visibilidade Trans: o que é visível e o que não é na luta por existir
Reportagem Especial

Dia da Visibilidade Trans: o que é visível e o que não é na luta por existir

Com exposição 24 horas por dia na TV pela presença de Linn da Quebrada no BBB, causa T atinge novo patamar de discussão. Realidade, porém, ainda é povoado por dificuldades e negação de direitos

Dia da Visibilidade Trans: o que é visível e o que não é na luta por existir

Com exposição 24 horas por dia na TV pela presença de Linn da Quebrada no BBB, causa T atinge novo patamar de discussão. Realidade, porém, ainda é povoado por dificuldades e negação de direitos
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“Não sou homem, não sou mulher: sou travesti”. A atriz e cantora Lina Pereira dos Santos, mais conhecida como Linn da Quebrada, assim se apresentou no reality show Big Brother Brasil 2022 (BBB 22). Ela é a primeira travesti a participar do programa em suas mais de 20 edições e faz história como a segunda participante não cisgênero da história, após Ariadna Arantes, no BBB 11.

Apesar de ter "ela" tatuado no rosto, Linn foi alvo de transfobia, sendo reiteradamente chamada por pronomes masculinos. Ao vivo, o apresentador Tadeu Schimidt deu a ela a chance de ensinar aos participantes como se referir a ela e por quê. E o resto do Brasil ouviu o momento histórico para a causa, às vésperas do Dia Nacional da Visibilidade Trans "O Dia Nacional da Visibilidade Trans remete ao dia em que houve o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”. O evento se tornou um marco histórico para a luta por reconhecimento das minorias no Brasil. Desde então, no dia 29 de janeiro, é celebrada a resistência das pessoas que fazem parte da letra T da sigla LGBTQIAP+." , comemorado em 29 de janeiro desde 2004.

Yara Canta, coordenadora geral da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac) e cantora, aprova a atitude de Linn diante dos erros. “Todas as travestis já passaram por isso (pessoas errarem seus pronomes) e a Linn tem se mantido sã por enquanto. É difícil para ela e para quem está acompanhando”, diz.

Samilla Marques, atriz, ativista política e de direitos humanos, coordenadora da Rede Trans Brasil, diretora da Associação de Travestis e Mulheres Trans do Ceará (Atrac), presidente do movimento PDT Diversidade Ceará e orientadora de Célula de Programas e Projetos para LGBT da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos do Ceará (SPS)(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Samilla Marques, atriz, ativista política e de direitos humanos, coordenadora da Rede Trans Brasil, diretora da Associação de Travestis e Mulheres Trans do Ceará (Atrac), presidente do movimento PDT Diversidade Ceará e orientadora de Célula de Programas e Projetos para LGBT da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos do Ceará (SPS)

A questão do pronome não é, porém, nem de longe o maior problema na vida de pessoas transexuais, travestis e transgêneras.

Samilla Marques, atriz e coordenadora da Rede Trans Brasil, relata que viveu situações como as que aconteceram com a Linn diversas vezes. “A população e a sociedade em geral sempre verbaliza o biológico”, diz. “Já me perguntaram diversas vezes se eu tinha operado só porque mudei de nome. As pessoas não têm a compreensão de que o ser mulher tem a ver com uma construção de identidade e que ele não ficou somente para as mulheres cisgêneras”, afirma.

Para a ativista, a internet já conseguiu expandir em parte o conhecimento sobre o universo da transexualidade. O suficiente para que as pessoas, principalmente as de gerações mais recentes, já tenham consciência de certos termos ofensivos e pronomes. Samilla opina que, negar o pronome a uma pessoa como a Linn, que o tem tatuado na testa, foi algo proposital. “Eu não vejo isso como uma questão de 'ah, eu não sabia'. Você vê uma figura feminina ali, mas ainda assim se liga na questão da genitália”, argumenta.

Samilla acredita que o medo do diferente é um dos fatores que motivam os ataques transfóbicos e que, no caso de ataques que partem de mulheres, a questão gira em torno da paquera; no dos homens, do machismo.

“Existe um dado da Rede Trans Brasil que sobre o Brasil ser o país que mais mata a população trans, mas também ser o que mais consome pornografia trans, ou seja, há uma incoerência. Quando se faz uma pesquisa no Google, o que mais se busca é travesti. O que isso significa? Que eu mato aquilo que me atrai? Que eu quero bater e xingar o que me dá medo? Ou aquilo que eu queria ser? É por aí”, fala.

 

 

Ariadna Arantes: a pioneira do Big Brother Brasil

Anos antes de Linn, houve Ariadna. Era 2011 quando a influencer se tornou a primeira mulher trans a entrar na casa mais vigiada do País. À época, ela foi a primeira eliminada do programa, com 49% dos votos em um paredão triplo, porcentagem a qual atrela à transfobia. Em entrevistas recentes, a ex-sister relatou que não consegue viver como influenciadora porque não é procurada pelas empresas para fazer publicidade por ser uma mulher trans.

Ariadna, a primeira mulher trans a participar do Big Brother Brasil
Foto: Instagram/Reprodução
Ariadna, a primeira mulher trans a participar do Big Brother Brasil

Linn ainda está competindo, sendo uma das favoritas iniciais. Ela entrou no programa já com a fama de artista, mas ainda assim precisou "enfrentar" o erro no pronome. “Eu fiz essa tatuagem, na verdade, por causa da minha mãe. No começo da minha transição, a minha mãe ainda errava e me tratava no pronome masculino. Daí eu falei: 'Mãe, eu vou tatuar aqui na minha testa que é pra ver se a senhora não erra'. E acho que assim também é uma indicação pra todas as pessoas. Então, ficou na dúvida? Lê e daí vocês lembram que eu quero ser tratada no pronome feminino”, narrou.

Para Yara, a atitude do apresentador foi correta, porém muito branda. “O BBB é um programa de grande audiência, então talvez muitas pessoas que estão acompanhando nunca tenham tido acesso a essas discussões, ou porque não têm acesso à internet, ou porque querem, ou porque realmente são preconceituosas”, afirma.

Entre Ariadna e Linn, houve um avanço significativo: a despatologização. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de considerar a transexualidade como um transtorno mental em nova edição da Classificação Internacional de Doenças (CID). Foram longos 28 anos com a questão sendo tratada como doença e lutas das organizações LGBTQIAP+ em busca da mudança.

Agora, a transexualidade ocupa o capítulo de “condições relacionadas à saúde sexual” e é classificada como “incongruência de gênero”.

 

 

Mas, afinal, o que é ser travesti, transexual e transgênero?

Para a escritora e mulher trans Helena Vieira, refletir sobre como as identidades passam a ser nomeadas e sobre como as pessoas passam a existir a partir de suas identidades de gênero são os primeiros passos para entender essa diferença.

"O termo travesti é um termo que eu gostaria de chamar de termo em disputa. Há consenso de que 'travesti' refere-se a uma experiência de gênero feminino e, portanto, a travesti deve ser sempre tratada no feminino, mas existe ainda uma disputa quanto ao que essa palavra efetivamente representa”, explica Helena.

Em uma compreensão mais antiga, pensar a travesti como “uma mulher com órgãos sexuais masculinos” era algo tido como definição, entretanto essa é uma visão equivocada. “A cirurgia de redesignação genital e a própria genitália não são definidores da identidade, mas sim as experiências sociais”, afirma a escritora.

Helena Vieira, escritora e ativista transfeminista
Foto: Divulgação
Helena Vieira, escritora e ativista transfeminista

 

Um segundo sentido do termo —que também está em disputa— é definir travesti como uma identidade feminina não-binária, ou seja, não ser uma experiência de mulher e nem de um homem, mas uma terceira experiência.

Em outras palavras, generalizações do termo travesti podem gerar ainda mais desentendimento sobre seu significado. “Os usos sociais se distinguem em relação aos países e que são usados. Travesti, como conhecemos no Brasil, é uma palavra que diz respeito a experiências de gênero brasileiras”, reitera a escritora.

Helena cita uma frase do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein sobre linguagem para provar seu ponto: “se você quer saber o que diz uma palavra, não pergunte pelo seu significado, mas pergunte pelo seu uso”.

 

"Aqui, travesti significa uma identidade consolidada. O termo é usado para se referir a experiências marginais e, muitas vezes, também é associado a uma dimensão que se vincula historicamente ao trabalho sexua" Helena Vieira, escritora e mulher trans

 

Linn da Quebrada se identifica como travesti
Foto: Reprodução/TV Globo
Linn da Quebrada se identifica como travesti

Já o termo transexual nasce no interior do discurso médico. Helena explica que “uma vez que a medicina e, sobretudo, a sexologia olham para as experiências de gênero de pessoas que decidem realizar a cirurgia de redesignação genital, eles vão nomear isso como transexualismo”. Conforme a autora, essa experiência transexual que vem da medicina nasce de uma imposição patologizante.

Transgênero, por outro lado, é um “termo guarda-chuva” que abriga diversas experiências não-cisgêneras de organização da identidade de gênero. “Então, por exemplo, o termo transgênero é um hiperônimo. É como a palavra 'veículo' em que podem entrar as palavras bicicleta, ônibus e carro. Essas três palavras são veículos, mas bicicleta, ônibus e carro não são a mesma coisa”, exemplifica Helena.

“Transgênero, então, designa as diversas experiências de renúncia, de dissidência e de subversão das normas de gênero. Desde as experiências não-binárias até as experiências travestis e até as experiências transexuais” , completa.

 

 

Glossário trans

>> Por Bemfica Oliva

Quando se fala da questão trans, muitas palavras e expressões podem novas para quem não tem familiaridade com o assunto. Para ajudar na compreensão, O POVO separou termos que têm relação com o tema.

 

 

 

Escolher ser visível ou não é privilégio

>> Por Bemfica de Oliva

Em junho último, escrevi um artigo sobre ter sido a primeira pessoa trans a trabalhar em um jornal no Ceará e, dois anos depois, seguir sendo a única. Quando meu editor me pediu o texto de hoje, disse, brincando, que minha vontade era apenas repetir o opinativo de junho. Apesar do meu tom jocoso, ele pontuou que, de fato, era importante reforçar isto.

Bemfica de Oliva, primeira pessoa trans a trabalhar em redação de jornal no Ceará (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Bemfica de Oliva, primeira pessoa trans a trabalhar em redação de jornal no Ceará

Portanto, reforço: dois anos e meio após ter sido a primeira, continuo sendo a única repórter trans no Ceará. Quantos ramos de trabalho não estão em situação igual ou pior?

Mas meu foco para hoje é outro: no Dia da Visibilidade Trans, fala-se como ser visível é algo que nos é negado… E ser invisível, quando desejado, também é. A data busca mostrar (e superar) o apagamento da população trans: em nossas conquistas, na elaboração de políticas públicas, na mídia…

Em suma, como nossas existências são propositalmente invisibilizadas por uma sociedade que tenta fingir que a única forma possível de viver é sendo cis. O ponto é que isso também é feito nos visibilizando em situações totalmente desnecessárias. Nos pintando como algo pitoresco, ridículo, perigoso… Quando apenas queremos, bem, existir.

Por que, quando uma travesti entra no ônibus, buscando condução como qualquer pessoa, todos os rostos se viram? Por que, no bar, nos olham de cima a baixo na fila do banheiro? Por que uma pessoa não-binária comprando no mercado recebe cochichos e risadas do resto da clientela? Por que homens trans se bronzeando sem camisa atraem comentários — e, com frequência, intervenção policial?

(Não que qualquer pessoa devesse ter o corpo vigiado na praia, na verdade, mas divago).

A resposta a essas perguntas não é o menor mistério. É transfobia. Repito: T-R-A-N-S-F-O-B-I-A. A solução, cara pessoa cis, também é simples: não fique olhando. Não comente. Não estranhe. É alguém igual a você, vivendo a vida igual a você. No máximo, internamente, agradeça: se há uma pessoa trans no espaço, o lugar está mais diverso. E diversidade é sempre algo positivo.

 

 

A luta por direito das pessoas trans no Brasil

A discussão sobre direito das pessoas trans na esfera pública no País ainda é algo incipiente. Só em 2019 o Supremo Tribunal Federal (STF) votou a favor da determinação de criminalizar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.

Com a decisão, o Brasil se tornou apenas o 43º país a criminalizar a homofobia e a transfobia, segundo o relatório "Homofobia Patrocinada pelo Estado", elaborado pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (Ilga).

Paralelamente, o Brasil é considerado o país que mais mata pessoa T no mundo, em números absolutos. Em pesquisa realizada pela Transgender Europe (TGEU), que monitora dados globalmente levantados por instituições trans e LGBTQIAP+, 33% de todos os assassinatos de pessoas trans registrados aconteceram no Brasil.

Bandeira da orgulho trans
Foto: Kat Love / Pixabay
Bandeira da orgulho trans

 

Segundo relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) 140 homicídios de pessoas trans ocorreram no Brasil, ultrapassando a marca de 100 assassinatos pela 11ª vez consecutiva. O ápice foi em 2017 — ano da brutal morte da cearense Dandara dos Santos —, quando o dado chegou a 179. A violência contra o grupo faz com que a expectativa de vida de pessoas trans no País seja de apenas 35 anos — menos da metade da estimada para a população em geral, segundo a União Nacional LGBT.

Outra pesquisa da Associação aponta que 94,8% das pessoas trans já sofreram algum tipo de violência provocada pela discriminação de gênero e 87,3% destacam que sua principal necessidade é o direito a emprego e renda.

Existe ainda um vácuo do poder público. A maioria das pesquisas relacionadas à comunidade são de autoria de organizações não governamentais focadas na causa, o que faz o País carecer de um sistema de dados mais complexo. Dados demográficos e qualitativos são necessários para avaliar as condições desse grupo e traçar metas para melhorá-las. O Censo mais recente do Brasil foi em 2010. Neste ano, o Governo Federal deve fazer um novo recenseamento, com dois anos de atraso. O Ministério Público Federal, porém, investiga denúncia sobre exclusão de questões sobre orientação sexual e identidade de gênero dos questionários, o que inviabilizaria a construção de políticas públicas voltadas aos LGBTQIAP+.

 

 

Confira uma linha do tempo das lutas e conquistas trans no Brasil

 

 

Dia Estadual de Combate à Transfobia: 5 anos sem Dandara

 

Capa do O POVO de 4 de março de 2017 aborda o assassinato de Dandara dos Santos(Foto: O POVO.doc)
Foto: O POVO.doc Capa do O POVO de 4 de março de 2017 aborda o assassinato de Dandara dos Santos

Em 15 de fevereiro deste ano, o caso Dandara dos Santos completa cinco anos. O Governo do Ceará escolheu a data como o Dia Estadual de Combate à Transfobia. O assassinato a tiros da travesti no bairro de Bom Jardim, em Fortaleza foi um dos exemplos mais brutais do extremo a que a transfobia pode chegar.

Em 2017, dois vídeos de Dandara sendo torturada foram divulgados nas redes sociais. Gravações assustadoras em que ela pedia para que os agressores parassem com os chutes, tapas e socos. O caso foi manchete do O POVO em 4 de março daquele ano após as imagens das agressões a ela viralizarem.

Segundo o inquérito policial, cerca de 12 pessoas participaram do crime. Testemunhas relataram à polícia que Dandara já havia sido agredida anteriormente por roubo e furto e que moradores da rua assistiram o assassinato, mas não intervieram. Após o julgamento e a condenação dos réus, pela primeira vez na história do sistema judiciário brasileiro um juiz decretou a transfobia como motivo torpe e qualificante de homicídio na sentença.


 

Retificação de nome e gênero

Segundo a Defensoria Pública do Estado, a retificação de nome e gênero é a principal demanda da população trans ao órgão. Desde 2017, a solicitação foi de 17 pessoas a 205, aumento de mais de 1000%.

Mariana Lobo, defensora pública e supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas, reflete sobre a atual realidade das pessoas trans no Estado e opina que discussões relacionadas à identidade de gênero deveriam tomar lugar nas escolas. “A rejeição, a discriminação dentro da própria sociedade e do seio familiar e a dificuldade de inserção no mercado de trabalho ainda são uma realidade muito forte aqui no Ceará”, diz.

Defensoria Publica Geral do Estado
Foto: Divulgação
Defensoria Publica Geral do Estado

A Defensoria atua em todas as áreas de garantia de direito, da saúde, da educação, do emprego e da renda. "Nos casos de violação de direitos, como casos de vítimas de transfobia, o núcleo atua em todas as áreas da garantia de direito da população trans. Acredito que o aumento do número de pessoas que procuraram núcleo pra retificação do registro civil ocorreu porque esse é um dos direitos das pessoas transexuais que vem sendo cada vez mais difundido. Existe um debate na sociedade sobre esse direito, as pessoas passam a conhecer mais e começam a exercê-los", completa.

 

 

>>Serviço

Em caso de violência motivada por gênero contra travestis, mulheres transexuais e mulheres intersexo, você pode denunciar ou buscar ajuda discando o 180. A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher mais próxima também pode ser procurada.

As denúncias contra homens e mulheres trans podem ser feitas pelo Disque 100, gerido pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. O serviço é gratuito e funciona 24 horas, inclusive em feriados e fins de semana.

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