“Quando você chega é tudo muito lindo. As pessoas são muito amigáveis, quem dirige as sessões lhe dá aquela atenção. E você geralmente chega abalado, chega acreditando, chega pedindo uma luz na sua vida. Você já vem de problemas, você está totalmente suscetível”.
Quem diz isso é uma sobrevivente de abuso sexual em ambiente religioso. Ao O POVO, Maria, nome fictício usado para preservar a real identidade da vítima, deu longo depoimento sobre as artimanhas usadas por líderes religiosos que se aproveitam da fé das pessoas para praticarem abusos — que, muitas vezes, vão além da violência sexual.
“O abuso sexual é a última coisa que ocorre. É como se fosse o último estágio do abuso”, diz a fonte, que também preferiu não dar detalhes sobre o caso para impedir a sua identificação. “Dificilmente, alguém já chega e só é abusado sexualmente. No âmbito religioso, a gente tem alguns níveis, tipos de abuso que a pessoa pode sofrer. Abuso psicológico, moral, patrimonial e sexual”.
Para ela, ambientes religiosos são particularmente propícios ao abuso pela vulnerabilidade das pessoas que ali estão, já que muitas delas procuram a religião como forma de enfrentar problemas de suas vidas pessoais. Ela denuncia ter sido vítima de estupro de vulnerável em uma comunidade religiosa que usa ayahuasca, bebida enteógena, de origem índigena e produzida a partir de plantas, base de diversos ritos religiosos.
A ayahuasca, diz ela, “descaracteriza” os sentidos e a percepção de quem a usa. "O chá ajuda quando é conduzido por uma pessoa boa, agora, se é conduzido por uma pessoa que tem más intenções, em vez de ajudar, não vai fazer bem". O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), do Governo Federal, só autoriza o uso de ayahuasca em contextos religiosos. Foi justamente quando estava sob efeito da “força”, como os adeptos chamam o estado de alteração sensorial, que Maria foi abusada sexualmente.
Após o crime, levou anos até denunciar o caso à Polícia. “Foram muitos anos para cair toda a ficha, para eu conseguir denunciar. Foram muitas ameaças da pessoa que cometeu o crime, manipulações da própria instituição religiosa, dificuldades nos órgãos de apoio à denúncia”, como ela diz.
A situação se estendia à família dela, que também participava do grupo. Todo um círculo social havia sido formado naquele espaço, que ela havia entrado ainda adolescente, e mesmo amigos deixaram de falar com ela. “Havia o respeito pela pessoa. Apesar do que ela cometeu, era difícil para a gente aceitar que foi um crime grave, entender que aquela pessoa não era aquela pessoa que a gente pensava”. Muitas outras ações foram necessárias, ela conta, até entenderem o “grau de periculosidade” daquele que um dia consideraram pai.
O inquérito policial ainda está em andamento e em segredo de Justiça. Por isso, a fonte optou por não informar o nome do abusador nem o espaço onde o caso aconteceu. Maria diz saber que há mais vítimas do abusador.
Ela também falou das feridas deixadas por essa violência. O abuso teve impacto em sua saúde: foram desde acessos de fibromialgia a faltas de ar que, na verdade, eram ataques de pânico. Após uma “crise emocional muito forte” levada pela saída do espaço, Maria teve apoio de organizações que acolhem vítimas de abuso em meio religioso.
No Movimento de Combate ao Abuso no Meio Espiritual (Coame), ela teve orientação e assistência psicológica gratuita. “Sem o apoio da minha família e a ajuda nos locais certos, na rede de saúde convencional, eu não estaria aqui viva (fazendo esse relato)”, afirma. Até hoje, porém, Maria precisa conviver com a depressão e pesadelos com o abusador. Ela ainda afirma que outra consequência que teve de lidar foi a perda da fé, do vínculo religioso. Além disso, para muitas vítimas, ela diz, há o medo de retaliações na seara espiritual.
“O abuso em meio religioso tem mais peso, não desmerecendo outros locais onde possam ocorrer esses crimes, a partir do momento que está em jogo a sua fé, a sua crença, sendo utilizada para facilitar esses abusos”.
O Ceará tem visto nos últimos anos diversas denúncias e investigações policiais desmascararem relações de abusos dentro de comunidades religiosas. Líderes religiosos, de variados credos, usam de sua ascendência sobre fiéis para assediar e abusar sexual, física e moralmente. Relembre alguns dos casos mais marcantes que virem a tona:
A jurista Thayna Silveira se especializou no acompanhamento jurídico de vítimas de abuso sexual em meios religiosos. O primeiro contato dela com esse tipo de crime foi dando suporte à holandesa Zahira Lieneke Mous, a primeira mulher a afirmar publicamente que havia sido vítima do médium João Teixeira de Faria, o João de Deus — mais de 200 mulheres relataram terem sido vítimas dele. Depois, ela ainda esteve presente na denúncia contra o guru Pedro Ícaro. Atualmente, Silveira acompanha três casos: dois envolvem religiões que usam o ayahuasca e o outro caso é na umbanda. Todos eles estão em sigilo e, por isso, ela não dá detalhes sobre eles.
A experiência acumulada nesses casos a faz elencar duas maneiras de tentar evitar a propagação de tais casos. A primeira é a informação. Conforme Silveira, é importante “informar a sociedade sobre esse tipo de crime, divulgando sinais de meios/líderes abusivos, as características dos principais crimes nestes meios, definição de abusos etc, sempre buscando demonstrar com exemplos, de modo que fique didático para o grande público”.
A jurista, porém, acredita que o Brasil também precisa de uma legislação específica contra esse tipo de crime. Conforme ela, países como Estados Unidos, França e Canadá preveem pontos como a presunção da vulnerabilidade da vítima e o direito ao anonimato — pois se considera que o fato em si é mais importante do que a identidade vítima e, portanto, a defesa deve focar nas práticas do grupo/líder e não na relação deste com os denunciantes. Silveira também fala da necessidade de reconhecimento da impossibilidade da consensualidade, “por razão da hierarquia religiosa que interfere na condição de negação”.
O cenário de ausência de leis específicas para abusos em meio religioso é mais um fator a encorajar agressões. Silveira cita o caso “emblemático” de Jair Tércio Cunha Costa, que fez vítimas por mais de 30 anos na Bahia, usando da estrutura da maçonaria para seus atos. Ele é acusado de crimes como estupro de vulnerável a charlatanismo e está foragido desde 2020. Também na Bahia há o caso de Lucas Terra, adolescente de 14 anos assassinado em 2001 dentro de um templo da Igreja Universal do Reino de Deus.
Silveira cita a vergonha, a dúvida e o medo de denunciar “alguém que, em tese, prometeu a cura de algo”.
“O medo de denunciar, muitas vezes, parte da ausência de conhecimento do que é ritual religioso e do que é a violência sexual praticada pelos líderes, pois, sob a égide de promessas de cura — seja ela qual for — as vítimas se submetem, o que ultrapassa a seara do que é consentir e do que é ceder por medo de que algo aconteça ou por acreditar, que, de fato, trata-se de um processo de cura”, afirma.
“Em um primeiro momento precisamos entender que houve um crime e não somos responsáveis por ele, depois é (preciso) lidar com a vergonha, a insegurança etc. São muitas feridas que se abrem no ciclo abusivo e é necessário apoio profissional para conseguir seguir a vida vivendo e não apenas sobrevivendo”.