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Taylisi Leite: uma crítica ao feminismo neoliberal e conservador
Reportagem Especial

Taylisi Leite: uma crítica ao feminismo neoliberal e conservador

Pesquisadora da área do Direito e professora da Universidade Federal do Pará, Taylisi Leite, defende novos marcos para a luta das mulheres e diz que as três ondas do feminismo contam apenas uma história feminista do ponto de vista liberal.

Taylisi Leite: uma crítica ao feminismo neoliberal e conservador

Pesquisadora da área do Direito e professora da Universidade Federal do Pará, Taylisi Leite, defende novos marcos para a luta das mulheres e diz que as três ondas do feminismo contam apenas uma história feminista do ponto de vista liberal.
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É com uma fala delicada e um discurso extremamente didático que a professora da Universidade Federal do Pará, Taylisi Corrêa Leite, analisa as principais ideias que cercam os movimentos identitários que incluem as lutas das mulheres contemporâneas. Ancorada no pensamento da teórica alemã Roswitta Scholtz, a professora Taylisi Leite afirma que o feminismo liberal, que aposta no empoderamento das mulheres e os coletivismos plurais que reúnem negros, LGBTQIA+, indígenas, queer, decolonial etc estão fincados no discurso liberal, pós-estruturalistas e muito longe de atacar o verdadeiro motivo do patriarcado e da opressão, que se chama capitalismo. "Essa palavra, 'capitalismo' parece ser proibida. Ninguém fala dela. Todo mundo fala de racismo estrutural e ninguém explica que a estrutura é o capitalismo", afirma Taylisi Leite.

Taylisi Leite, professora da Universidade Federal do Pará(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Taylisi Leite, professora da Universidade Federal do Pará

Autora do livro "Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista" (2020), a pesquisadora, cuja trajetória acadêmica se consolidou na área do Direito, Taylisi conta que aproximou-se da obra de Roswitta durante os estudos do doutorado e considera que a crítica alemã e teórica marxista é quem melhor dialoga com as teorias feministas contemporâneas ao fazer uma releitura da obra de Marx e avançar numa proposta de reflexão da sociedade atual. Para Taylisi, embora o feminismo tenha se constituído historicamente a partir da luta de todas as mulheres, é  possível pensar numa outra história do feminismo que possa saltar sobre as três ondas que tradicionalmente narram a luta das mulheres desde o século XIX com as sufragistas.

Para construir outra trajetória narrativa para o que ela chama de "marxismo feminista", atualizando categorias que já não fazem sentido no século XXI, como a luta de classes e mais valia, Taylisi mostra como o superindividualismo, marca do pós-estruturalismo, falseia a raiz dos problemas que atingem a humanidade. Segundo a pesquisadora, de Clara Zetkin, feminista da primeira onda do feminismo liberal, à Judith Butler, principal teórica queer, passando por Simone de Beauvoir - papisa da segunda onda do feminismo, as lutas das mulheres criaram a ilusão da conquista por direitos iguais aos homens. Ela afirma ainda que a defesa acirrada do fim do binarismo sexual e da performance de gênero, como defende a teoria queer, apenas mascara o problema das opressões e cria bolhas de consumo que impulsionam o capitalismo.

Ela ensina que o atual modelo de opressão surgiu quando o capitalismo dividiu o valor do trabalho atribuindo aos homens competências para a valorização do valor do trabalho abstrato e destinou às mulheres atividades sem atributos de valoração nem remuneração embora sejam trabalhos dos quais dependem a existência humana: gestar, parir, cuidar, alimentar etc. De passagem por Fortaleza, Taylisi Leite conversou sobre O POVO.  Confira a seguir a entrevista.  

 

 

O POVO Quais os principais obstáculos que fazem com que o feminismo contemporâneo tenha uma luta unificada de mulheres?

Taylisi Leite - Na verdade, existe uma narrativa ideológica de que o feminismo é dividido em três grandes ondas. Sendo a primeira onda a luta das sufragistas, a segunda onda pela internacionalização dos direitos das mulheres e a liberação sexual e direitos reprodutivos e na terceira onda é que havia esse potencial dos feminismos plurais que é essa multiplicidade de feminismos: lésbico, trans, negro, indígena, decolonial, queer e tudo o mais. Essa narrativa de que a feminismo é constituído nessas três grandes ondas é uma falsificação da complexidade histórica ideológica, porque o feminismo não é só isso ao longo da sua história. Essa é a história do feminismo liberal. O que marca esse feminismo liberal é a crença que se pode lutar pela emancipação das mulheres nos marcos do capitalismo.

Essa palavra parece ser proibida. Ninguém fala dela. Todo mundo fala de racismo estrutural e ninguém explica que a estrutura é o capitalismo. Não existe também uma problematização do patriarcado estrutural e qual é essa estrutura no feminismo liberal? Uma crença de que é possível lutar por direitos para sermos incluídas na abstração formal do sujeito de direito, que originalmente correspondia materialmente só ao homem branco proprietário e letrado que tinha direito ao voto, cidadania, ser proprietário, celebrar contratos etc. Há uma luta histórica de mulheres para se forçar nessa categoria abstrata de sujeito de direito e ter direitos.

No fim do século XX, acontece um declínio da influência de qualquer pensamento materialista histórico dialético nas universidades e nos movimentos sociais. Marx é defenestrado das universidades do mundo todo. É curioso a extrema direita dizer todo mundo na universidade é marxista porque ninguém na universidade é marxista, nenhum curso, de História, Sociologia, Ciências Sociais. Não é um pensamento presente, muito menos hegemônico.

Taylisi Leite é autora do livro Crítica ao feminismo liberal, lançado em 2020(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Taylisi Leite é autora do livro Crítica ao feminismo liberal, lançado em 2020

Isso aconteceu por causa do fim do socialismo real na União Soviética, a queda do muro de Berlim, a narrativa do Francis Fukuyama de que a história tinha acabado, que o capitalismo venceu porque os Estados Unidos venceram a Guerra Fria. Nesse momento que os movimentos tradicionais de mobilização tradicionais como os sindicatos internacionais socialistas, partidos comunistas, o trabalhismo dão lugar o que a sociologia chama de novos movimentos sociais, que são os movimentos que se constituem em torno de uma identidade compartilhada: movimento negro, lgbtqia+, movimentos de mulheres indígenas, de atingidos por barragens, de refugiados, movimentos ambientalistas. É nesse momento que o paradigma teórico que impulsiona esse movimento não é materialista histórico dialético.

Ele é pós-estruturalista e o pensamento estruturalista propõe uma quebra de categorias universais, diz que não se pode pensar em termos de universalidade e, sim, em particularidades, de pluralismos e aí não existe a categoria mulher. Eu tenho que quebrar essa categoria em múltiplas mulheridades concretas e dizer que existem mulheres muito diferentes no mundo e que cada uma tem as suas demandas e que a gente não pode tentar colocar todo mundo na categoria universal mulher, porque não vai contemplar as particularidades e é isso que informa essa multiplicidade e uma dificuldade de aglutinar essas lutas porque quando eu vou quebrando essas particularidades, no limite essa quebra chega na pessoa.

OP - Como então, essa subdivisão atinge o movimento das mulheres contemporâneas?

Taylisi – Eu acho que o paradigma pós estruturalista propõe a multiplicidade e o particularismo e acho que quando isso chega na compreensão dos movimentos, é mais diluído ainda e as pessoas começam a entender que eu preciso compreender opções que são históricas, materiais, sociais, mais estruturais a partir dessa experiência individual. Daí vêm as ideias deturpadas de lugar de fala, de vivência que se sobrepõe à compreensão teórica e fenomênica, social e epistemológica das opressões.

 

"Mas esse é um empoderamento como um consumidor, uma consumidora cada vez mais competente e o reconhecimento de um status social vem da minha capacidade de consumo." Taylisi, ao falar sobre como o discurso liberal falseia a ideia de ruptura do patriarcado capitalista

 

Essa particularidade, quando vou quebrando, quebrando, no limite, chego ao indivíduo e quando eu chego ao indivíduo é um pasto vasto para o neoliberalismo, porque ele está totalmente centrado no individualismo. É cada um por si, é salve-se quem puder. Se não tem emprego nem oportunidade para todo mundo, eu tenho de ser empresária de mim mesmo, construir meu próprio trajeto de sucesso e aí todas essas pautas de representatividade, por exemplo, se tornam bandeiras de tentativas de rupturas das barreiras do ponto de vista individual para que eu consiga me empoderar. Mas esse é um empoderamento como um consumidor, uma consumidora cada vez mais competente e o reconhecimento de um status social vem da minha capacidade de consumo. Então você tem o pink money, o black money que incham novos mercados de consumo a partir dessas pautas identitárias que se dissolvem e acabem sendo tragadas – não que sejam neoliberais – mas acabam sendo cooptadas pelo neoliberalismo e às vezes nem percebem que isso está acontecendo.

OP - Quando você considera que existe o maior equívoco na questão do lugar de fala?

Taylisi – O equívoco é como se o lugar de fala fosse uma alternância de silenciamento. Ele pode de converter numa tecnologia de opressão quando eu digo, por exemplo, que os homens não podem falar das questões de gênero ou que pessoas brancas não podem falar das questões raciais, porque lugar de fala não é isso nem na sua origem teórico-filosófica. Lugar de fala é quando eu vou falar sobre uma opressão, eu tenho de entender qual é a minha posição enquanto sujeito concreto para fazer esse enunciado. Quando eu falo de patriarcado, falo enquanto mulher, esse é meu lugar de fala de que está atravessada pelas violências e pela opressão, mas falo num lugar de mulher branca, por exemplo. O atravessamento de violência e opressão que eu sofro é diferente do que sofre uma mulher preta ou uma mulher indígena.

Não é que eu não possa falar da questão racial porque não sou negra nem racializada como negra – até porque a racialização é um construto também, a branquitude e a negritude. Isso é uma compreensão equívoca do que seria lugar de fala. E a gente chega num extremo de uma representatividade vazia em que a vivência se sobrepõe em absoluto ao que você está carregando enquanto proposta e conteúdo. Então, não é porque é uma mulher que está ocupando um espaço de poder que ela vai fazer uma gestão política a favor das mulheres Muitas vezes a gente carrega as próprias reproduções das opressões que a gente sofre.

OP - Voltando à questão dos multiparticularismo, no seu livro “Crítica ao feminismo liberal”, você fala no conservadorismo que termina atingindo esses movimentos. A pauta do empoderamento pode estar a serviço desse conservadorismo?

Taylisi – Se ele resvalar para o individualismo, com certeza absoluta. Não tem antagonismo entre um projeto que de um lado seja ultraliberal, por exemplo, que avance contra os direitos das pessoas trabalhadores e apoie reforma trabalhista, previdenciária, PEC do fim do mundo, regulações econômicas que geram empobrecimento e atinjam muito mais pessoas negras, as mulheres, o avanço de violências sobre as terras indígenas e ao mesmo tempo se fazer um discurso de representatividade, as falas importam, vamos deixar de ser racistas, machistas, lgbtfóbicos, como se a mudança de comportamento e de cultura tivesse a capacidade de reverter processos de opressão que são culturais simbólicos também, mas são muito mais do que isso. São estruturais.

A gente vê essa ambiguidade em vários espaços da mídia, da indústria cultura que se colocam como progressistas nessas agendas e ao mesmo tempo defendem outras agendas que a miúde, na concretude da vida, avançam sobre essas mesmas pessoas, causam genocídio da população indígena, negra, lgbtqia+ e a vulnerabilidade das mulheres nessa situação de crise que estamos vivendo. Nossa ideia é ter coragem de falar a palavra capitalismo mais uma vez para puxar a radicalidade, essa palavra às vezes assusta, mas as pessoas não podem esquecer que radicalidade vem da palavra raiz, é como se quiséssemos puxar as reflexões e tentar entender a fundo qual é a raiz dos problemas. Quais são as raízes das nossas opressões. E quanto mais nós avançamos nessa investigação, nós vamos chegar nessa estrutura produtora da nossa sociedade.

OP - Sua obra tem como base as ideias da pensadora alemã Roswitha Scholz e no livro você elabora algumas aproximações e distanciamentos de Sholz de algumas das principais feministas. Quais os principais diálogos com a Roswitha você pode destacar? E o pensamento dela atende à realidade dos feminismos contemporâneos.

Taylisi – No livro, eu faço um contraponto com os feminismos liberais e também com os feminismos marxistas tradicionais. Falando desses feminismos marxistas eu tento também construir uma outra história do feminismo que não esteja nessas três ondas que falamos antes, que é a história do feminismo liberal. Por isso eu coloco no livro a Clara Zetkin (1857 – 1933) e Alexandra Kollontai (1872-1952), que propuseram o Dia Internacional da Mulher. Vou mostrando a diferença entre o pensamento marxista e como ela dá saltos teóricos, porque a Roswitha não está aprisionada nem numa tradição de pensamento marxista-leninista nem numa compreensão de luta de classes que acaba sendo anacrônica para o nosso tempo presente de regime de acumulação nem apegada a uma leitura de valor de Marx. Em relação aos feminismos que eu chamo de liberais, posso pegar o que ela mesma decide debater que é diretamente com a Judith Batlher e a Simone de Beauvoir.

 

 

Simone de Beauvoir e o feminismo existencialista

Simone de Beauvoir, filósofa francesa, considerada uma das principais vozes da segunda onda do feminismo europeu(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Simone de Beauvoir, filósofa francesa, considerada uma das principais vozes da segunda onda do feminismo europeu
Primeiro vamos falar da Simone, porque ela não pode ser considerada uma feminista liberal, embora ela tenha sido um grande referencial teórico do que é chamado de Segunda Onda do Feminismo anos anos 60, 70 e de um feminismo de luta por direitos, direitos reprodutivos e emancipação sexual, ela é uma feminista de matriz filosófica existencialista e uma mulher que milita no Partido Comunista Francês, anticapitalista, mas a Simone faz uma constituição história muito rica da formação do nosso patriarcado e das especificidades do patriarcado capitalista, da contemporaneidade, do nosso tempo em relação a outros patriarcados. Não é que o patriarcado surgiu no século XIX, ele sempre existiu, mas no nosso tempo histórico há uma especificidade muito profunda. Ela faz um resgate desde Atenas e vai trazendo toda essa constituição, o atravessamento judaico-cristão, a figura da mulher para a questão da sexualidade. Ela reconstitui isso e é um resgate muito importante. Mas quando ela chega na reflexão filosófica sobre uma potencialidade da mulher, ela coloca a mulher num outro do sujeito masculino do existencialismo da filosofia sartreana e, de alguma forma, acaba responsabilizando a mulher pelo seu próprio lugar de opressão.

O que a Roswitha faz é aproveitar muito esse resgate histórico que a Simone faz, bebe muito dessa fonte, mas quando chega no auge da reflexão, ela descarta o existencialismo e vai mostrar que nós não somos o outro do sujeito existencial, não somos o anverso do sujeito. Somos constituídas pelo anverso do valor, da valorização do valor que é o processo de produção de mercadorias, de criação de riqueza do capitalismo. Ela materializa, tira do espectro teórico, filosófico e especulativo do existencialismo e traz para a materialidade da vida concreta. Essa é a virada que ela faz em relação à Simone.

 

 

Butler e a falsificação da performance

Em relação à Judith Butler, ela é muito dura e faz críticas muito duras. Porque a teoria Queer faz essa recusa ao marxismo e adota o pós-estruturalismo, o particularismo, trata o gênero como performance e isso pode levar à compreensão de que eu seu mudar as performances de gênero e romper com o binarismo essencialista, a heterossexualidade compulsória, a héteronormatividade, eu consigo gerar fissuras no patriarcado e combater essa opressão do ponto de vista dos comportamentos, dos símbolos, da linguagem. Então, vamos todo mundo ser queer, gender fluid, vamos todo mundo usar saia, batom, ser drag queen e quebrar simbolicamente o âmbito simbólico psíquico – a Roswitha tem formação originária em Psicologia Social – é claro que ela não descarta que o âmbito simbólico, psíquico, linguístico é importante. 

 

"Só que a gente observa que você pode ter uma mudança de comportamento e o que acontece na prática é que isso alimenta mais o capitalismo gerando, por exemplo, as bolhas de consumo do pink money" Taylisi, ao falar da teoria queer, que tem Judith Butler sua maior expressão

 

Tudo são narrativas ideológicas que falsificam e constroem arquétipos que acabam nos oprimindo, nos atravessando e nós nos esforçamos para corresponder e emular. Isso tudo está aí nos atravessamentos complexos da totalidade. Mas a teoria Queer olha só para esse âmbito comportamental da performance. E o que podemos concluir? Se revertermos o processo de opressão, muda o comportamento. Só que a gente observa que você pode ter uma mudança de comportamento e o que acontece na prática é que isso alimenta mais o capitalismo gerando, por exemplo, as bolhas de consumo do pink money.

Judith Butler, filósofa, professora de Literatura(Foto: )
Foto: Judith Butler, filósofa, professora de Literatura

No meu livro, eu falo por exemplo de uma drag queen muito famosa nos Estados Unidos que se chama RuPaul, que apresenta um programa chamado RuPaul Drag Race e ela ficou famosíssima, deu visibilidade para a cultura drag queen, para a cultura dos balls, dos bares, dos club kids e colocou isso na TV e isso dá visibilidade, dá representatividade e uma sensação de que a gente está quebrando as barreiras da opressão de gênero do machismo, do patriarcado, da heteronormatividade, mas à miúde, nós vamos ver que isso só gera uma onda de outra bolha de consumo gigantesca. Essa drag queen está bilionária, é dona de poços de petróleo e tudo isso vai gerando mais capitalismo, mais desdobramentos de valorização do valor. Então, numa análise macro, isso só gera mais capitalismo, mais enriquecimento, e gerando mais miséria e a miséria vai atingir quem? As pessoas vulneráveis.

OP - Quer dizer que volta a questão para o individualismo. Ou seja, uma representação individual que promove alguns, outros não?

Taylisi – Exatamente. Porque a grande maioria das pessoas não vai ser beneficiada disso. Uma pessoa trans, que não é cis lá na periferia de palafita do Belém do Pará, onde eu moro não ganhou com essa conquista da representatividade, ela continua sofrendo violência, miséria, opressões e arriscado a morrer todos os dias por essa condição. É tipo de olhar maximizado e estrutural que falta nós temos para não nos encantarmos com esses efeito encantatórios de representatividade e visibilidade que na prática só beneficia algumas pessoas se tornarem vitoriosas nessa sociedade competição que a gente vive de vencedores e perdedores e os vencedores são sempre muito poucos.


OP - Pensando sobre o trabalho doméstico e o papel relevante para a formação do capital e para as teorias feministas ao longo do século XX, por que você considera que o trabalho doméstico tão visível e constatável e que atravessa toda a sociedade ocidental não consegue sair de uma problematização para uma política mais efetiva mesmo em países governados por mulheres progressistas como na Nova Zelândia?

Taylisi – Está é uma ótima pergunta. A Roswitta traz uma leitura que nenhuma outra teoria tem com esse grau de sofisticação até hoje. Ela mostra que para o capitalismo se forma, ele teve que criar uma categoria trabalho que nunca existiu antes. Porque o trabalho no capitalismo quando ele se forma não são todas as coisas que nós fazemos. O trabalho é só aquilo que entra na forma abstrata do trabalho, produz mercadorias com valor de troca ou de valor de uso e vai gerar riqueza. Então, não é a natureza da atividade que faz algo ser trabalho. Cuidar de pessoas pode ser trabalho, pode não ser.  Dançar pode ser trabalho, pode não ser. Cozinha pode ser trabalho, pode não ser e assim por diante. Não é a natureza da atividade, é aquilo entra na forma abstrata, produz mercadoria com valor de troca e gera riqueza. Só que foi narrado e é justamente por isso que o binarismo no patriarcado capitalista é impar, porque foi narrado que o homem tem características essenciais: é inteligente, corajoso, criativo, desbravador, pró-ativo e a mulher, não. Ela é sensível, doce, emotiva, resignada, nasceu para cuidar.

Pesquisadora Taylisi Leite questiona feminino liberal ao refutar sua construção com base na teórica alemã Roswitha Scholtz(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Pesquisadora Taylisi Leite questiona feminino liberal ao refutar sua construção com base na teórica alemã Roswitha Scholtz

Esse essencialismo alimentou uma divisão do trabalho que para fazer o trabalho abstrato, assalariado, produtor de mercadorias, de quais qualidades, você precisa? Precisa de força, inteligência, criatividade, inventividade e essas características foram narradas como tipicamente masculinas. Então, trabalho abstrato é coisa de homem. Trabalhar fora é coisa de homem. E uma outra atividade que é fundamental para a humanidade continuar existindo que é cozinhar, lavar, passar, limpar, gestar, parir, cuidar de criança, cuidar de idoso, cuidar de gente doente, tudo isso foi narrado como coisa de mulher. Não existe isso na idade média, não tem isso na antiguidade. Isso é uma constituição moderno-contemporânea esse binarismo e ele foi cada vez mais se vinculando à ideia do que é trabalho abstrato assalariado e o que está fora. Essas atividades que são essenciais para que a humanidade sobreviva foram narradas como atividades de cuidar como tipicamente femininas, coisa de mulher, porque a mulher que nasceu para fazer isso que tem essas características.

Essa atividade numa entrou na estrutura da esfera produtiva, tanto é que mesmo quando essa atividade é remunerada, ela não é produtora de mercadoria e valorização de valor. Porque se eu coloco uma mulher para realizar trabalho doméstico na minha casa – e olha quanto tempo a gente demorou para reconhecer isso como trabalho e dá direitos trabalhistas para essas mulheres – provavelmente é uma mulher preta muito mais atravessada por opressões do que eu e o que eu vou passar é uma parcela do meu salário. É como se eu dividisse o meu salário com outra mulher numa porcentagem muito ínfima para ela. O que está valorizando o valor lá fora somos nós duas, colocando nosso trabalho concreto para produzir uma mercadoria final.

 

"Roswitha vai mostrando que a formação estrutural do capitalismo, a divisão do que é ser homem e do que ser mulher, o que é coisa de homem e o que é coisa de mulher e o que a gente está chamando de coisa de mulher são atividades que nunca foram remuneradas, porque nunca entraram na categoria de trabalho abstrato para valorização direta do valor. " A pesquisadora Taylisi Leite ao expor do pensamento de Roswitha sobre a divisão de valor para o trabalho do homem e da mulher

 

OP - No caso do trabalho da mulher, mesmo quando assalariado não entra na composição de valor?

Thaylisi - Exato. Mesmo quando nós conseguimos romper essa barreira e entrar no trabalho abstrato ou a gente continua duplamente, triplamente explorada porque não somos desobrigadas dessas tarefas. Ou a gente delega para uma mulher mais vulnerabilizada que nós. E aí cria-se uma escala de vulnerabilidade, porque essa mulher vai delegar para uma pessoa mais vulnerável que ela, porque também tem filhos e precisa deixar com alguém, geralmente um mulher idosa que foi doméstica a vida inteira e agora cria um monte de crianças na comunidade, enquanto as mães domésticas vão trabalhar na casa de pessoas brancas e assim por diante. Então, a Roswitha vai mostrando que a formação estrutural do capitalismo, a divisão do que é ser homem e do que ser mulher, o que é coisa de homem e o que é coisa de mulher e o que a gente está chamando de coisa de mulher são atividades que nunca foram remuneradas, porque nunca entraram na categoria de trabalho abstrato para valorização direta do valor. Só que elas estão no processo total dessa valorização, se não tivesse alguém fazendo isso, nada da nossa sociedade seria possível. A gente precisa comer, dormir, fazer higiene, nascer, ficar doente, morrer. E como estão estruturalmente fora, não é simplesmente uma vontade política ou direito que são capazes de colocar para dentro.

Taylisi Leite, professora de Direito e pesquisadora do movimento feminista numa perspectiva materialista histórica (Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Taylisi Leite, professora de Direito e pesquisadora do movimento feminista numa perspectiva materialista histórica

Embora, ao longo do tempo o Direito tenha reconhecido que mediatamente a mulher também produziu o valor da remuneração da sua família tanto é que temos como parâmetro o regime de comunhão de bens, como regime obrigatório, parcial desde o Código Civil de 2002, por exemplo. Isso não é um favor para a mulher que foi dona de casa a vida inteira numa separação ou divórcio. É porque ela produziu mediatamente a remuneração do seu companheiro. Na Argentina agora, tivemos uma redução do tempo de aposentadoria para as mulheres que trabalharam em regime assalariado e também são mães, entendendo a dupla e tripla jornada como um desgaste maior porque houve mais tempo de trabalho e reduzindo o tempo de aposentadoria em relação às mulheres que só trabalharam e não forma mães. Ainda que o Direito e o Estado tentem de alguma forma fazer esse reconhecimento jurídico, formal, isso não vai entrar como um trabalho remunerado, reconhecido, justamente porque está na estrutura da formação da sociedade capitalista.

É por isso que Roswitha fala que o valor – esse grande processo de formação de riquezas – é masculino. O valor é macho. Ela diz que essa “frase pode ser sensacionalista” num primeiro olhar, mas quando você lembra a teoria e entende que o valor é homem e por isso que as mulheres são tão desvalorizadas em todos os sentidos na nossa sociedade. Porque elas estão fora do valor e estão produzindo uma sombra do valor. Entra no valor total, mas nunca foi reconhecido como valor conhecido como trabalho e é isso que a Roswitha chama de valor clivagem.

OP - O fato de haver uma diferente de salários entre homens e mulheres com mulheres ganhamos menos que os homens mesmo realizando as mesmas atividades entre nesse campo do valor clivagem?

Taylisi - Com certeza. A gente acha que conquistou espaço no mercado de trabalho, mas como eu disse ao mesmo tempo que a gente não foi desobrigada do trabalho de valor clivagem, nós também nós não conseguimos alcançar os mesmos patamares de igualdade porque o nosso lugar estrutural não é esse. E você pode ver que quando vêm grandes ondas de desemprego, quem é primeiro empurrada para fora do trabalho formal sãos as pessoas não pertencem historicamente a esse espaço do trabalho abstrato assalariado: as pessoas negras, na nossa formação racial que escravizou pessoas e depois não as absorveu enquanto mão de obra assalariada, elas tiveram de lutar muito para que isso fosse possível – e as mulheres que são as primeiras a serem atingidas pelo desemprego.

OP - Quando você fala dessa questão, é importe lembrar que os movimentos políticos conservadores utilizam essas constatações para dizer que o feminismo não é uma luta legítima e não contribuiu para a liberação das mulheres, uma vez que a conquista do mercado de trabalho mantém intactas as atividades domésticas.

Taylisi – Na nossa sociedade de capitalismo periférico dependente nesse momento de crise insuperável, trabalhar não é uma opção, se as pessoas não saírem para dar jeito de colocar comida dentro de casa, elas não vão sobreviver. E esse jeito é cada vez menos um trabalho formal com carteira assinada porque desemprego pra gente hoje é estrutural, ele não é mais uma estratégia de regulação de preços da mercadoria força de trabalho. Não tem trabalho, porque o capitalismo se reproduz muito mais quando financeiro nas grandes bolhas ou a tecnologia substituindo a mão de obra humana. Por isso, também no nosso tempo histórico não dá mais para manter essas narrativas de outros momentos dos séculos XIX, XX que o lugar da mulher é dentro de casa e o do homem é trabalhando fora. Todo mundo tem que sair para prover a família. O homem, inclusive, por causa de toda essa desestruturação é mais desobrigado do que nós. O homem pode abandonar os filhos, pode sair e fica como mãe solo dando conta de tudo é a mulher ou um conjunto de mulheres que compartilham essa responsabilidade. Então, ficar em casa não tem como ser opção nesse desenho do capitalismo.

Agora, as tecnologias de gênero que vão nos convencer do nosso lugar e o nosso lugar é atrás de um grande homem, é ser subserviente, nós temos que ser jovens, magras, belas e depiladas, femininas, arrumadas, sempre na moda. Temos de entender que ser objeto sexual é um elogio, é um lugar existencial. Quando essas tecnologias gênero alcançam as mulheres e elas se tornam reprodutoras do machismo e da misoginia são exatamente essas mulheres que são mais vulneráveis a essas relações patológicas que vão levar, por exemplo, a uma violência grave ou a um feminicídio. Elas fazem todo um empenho pra entrar nesse arquétipo da mulher feminina, submissa, subserviente, se colocam em relações tóxicas, patológicas com homens violentos e são elas as maiores vítimas da violência doméstica.


OP - Mas no Brasil hoje, temos muitas mulheres que se autodeclaram de direita, e que ocupam funções de destaque no atual Governo ou que foram eleitas e bem votadas defendendo posições conservadoras em relação às mulheres.

Taylisi - É difícil entender que o racismo e o machismo não individuais. São institucionais no primeiro ponto e por isso, a gente vê pessoas negras defendendo o racismo ou mulheres reproduzindo misoginia. Não são escolhas individuais, reconhecimento de lugar de fala, de vivência que nos dão possibilidade de lucidez para entendermos o lugar que nós ocupamos e necessariamente vai nos levar pra militância. Aliás, é muito comum fazer o discurso de que eu não sou vitimista, não fico de mimimi, eu sou produtor de mim mesmo, não vou aceitar esses discursos da esquerda, porque essa é uma forma de reação à opressão também. Erving Goggman quando escreveu o livro “Estigma” ele já falava que há muitas formas de se lidar com o estigma, uma delas é negando e dizendo: “não vou fazer disse uma muleta” e tentando se colocar no mesmo lugar de quem está nos espaços de privilégios que não está atravessado pela estigmatização. Esse é um fenômeno e podemos ver que independente das pessoas concretas, qual é sua materialização, seu gênero, que estão ocupando as instituições, as próprias instituições muitas vezes têm políticas de destruição. Então o racismo e o machismo não são individuais, são práticas individuais, mas não institucionais. E mais do que institucionais, são estruturais, e entender a estrutura é entender a complexidade, inclusive desses arquétipos que forma um construto psíquico que nos atravessa enquanto princípio de realidade e a gente tem de lidar com aquilo para constituir nossa psiquê, nosso self, nosso referencial identitário. Na verdade, ninguém quer sofrer, então, para algumas pessoas pode ser de uma aparente segurança estar do lado dos espaços de opressão que ela não é feminista, porque ela não é vítima, isso não tem nada a ver com ela e ajudar a reproduzir a opressão e acaba legitimando a misoginia institucional e estrutural quando se fala: “olha tem uma mulher aqui do nosso lado e ela concorda conosco”.

 

 

Perigo da representatividade vazia 

E esse é o perigo da representatividade vazia, porque a representatividade não necessariamente é um ganho. Você tem uma mulher negra pela primeira vez sendo vice-presidente da América e a política internacional não se alterou no limite que estamos chegando com mais uma guerra com o protagonismo da Rússia, mas também dos Estados Unidos e da Otan. A representatividade vazia acaba só alimentando em último grau o papel da Damares Alves no ministério da Mulher que não se mobilizou em nenhum momento para proteger as mulheres que estão cada vez mais vulneráveis na pandemia e ao mesmo tempo tentando retroalimentar essa ideologia perversa do binarismo essencialista com discurso rés do chão como meninas vestem rosa, têm de ser princesas, se colocar no seu lugar de mulher e fazendo políticas de destruição como as que são contrárias à vacinação de crianças.

A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves


OP - Para terminar, por que a palavra feminista ainda provoca tanta reação negativa? Muitas mulheres historicamente que tiveram inclusive uma prática feminista, se recusaram a se declarar feministas com a escritora, Rachel de Queiroz ou a própria Simone de Beauvoir. 

Taylisi – O feminismo é uma palavra muito polissêmica mesmo porque ao mesmo tempo que significa a história de todas as lutas das mulheres e todos os avanços teóricos de pensar a questão de gênero. Num primeiro momento, a palavra foi reivindicada pelas feministas sufragistas, pelas lutas de direito ao voto, de poder escolher com quem ia se casar, numa esteira do feminismo liberal que a gente chama de primeira onda. E numa segunda onda foi muito identificada com a luta pela liberação sexual que estava teoricamente associada ao feminismo radical. E o feminismo radical tem uma literatura mais aprofundada com a Catherine Mackinnon e Andrea Dworkin, mas ele também tem proposta com o manifesto Scandal, Valerie Solanas e ela tinha uma espécie de ódio aos homens, de aniquilação dos homens. E que também é uma falta de compreensão profunda do que é o patriarcado estrutural. Por conta de disso sempre houve uma dificuldade de feministas de outras vertentes assimilarem a palavra. A Angela Davis também no começo se recusava a usar, porque ela não se identificava como as feministas radicais do tempo dela. No início do século XX as feministas revolucionárias Alexandra Kollontai, Rosa de Luxemburgo e Clara Zetkin não se consideravam feministas. A Heleieth Safiotti quando escreveu seu livro também disse que aquele não era um livro feminista, justamente por esses reducionismos do conceito da palavra feminismo pelos feminismos liberais.

 

 

Feminismo feito de todas as lutas 

Hoje, eu entendo que o feminismo são todas as lutas e todas as epistemologias e todas as feministas não liberais passaram a reivindicar essa terminologia. Então, nós que não somos liberais reivindicamos também um outro feminismo. E quando a gente tenta dissolver o choque que palavra causa, porque a gente tem movimentos muito reacionários acontecendo e são movimento reacionários muito identitários, a direita é muito identitarista e a identidade é eu sou o homem, branco, hétero e isso dá uma sensação de conforto para a pessoa de que ela está num lugar de poder. Ou ainda que seja gay, negro, mulher fala: “eu sou isso, mas não sou vitimista”.

Essas pessoas que alimentam a ultradireita são também muito identitaristas e estão tentando se apegar a algo de tradição de concreto para não se defrontar com as dores do nosso tempo de crise, de destruição do meio ambiente, dos seres humanos. Elas também estão em sofrimento. Mas o sofrimento delas gera ódio, violência, destruição e não tentativas de lutas para que a gente se emancipe desses horrores, infelizmente. Pra que nós disputemos as narrativas vem um contraponto e diz: “calma pessoa, o feminismo não é perigoso, porque feminismo é só as mulheres quererem ser iguais aos homens”.

Isso é um discurso do feminismo liberal de que nós queremos os mesmos direitos, reconhecimento, a mesma proteção do estado, os mesmos salários. E isso é verdade para o feminismo liberal. Mas quando ele é anticapitalista, o que nós queremos que todos os seres humanos se emancipem de todas as formas de opressão. Mas para que isso acontece é preciso que haja uma problematização das questões de gênero e do patriarcado. Existe essa diferença.

 

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