Logo O POVO+
Atentados de extrema-direita: terrorismo no Ceará e no Brasil no fim da ditadura
Reportagem Especial

Atentados de extrema-direita: terrorismo no Ceará e no Brasil no fim da ditadura

Pesquisador faz levantamento inédito dos ataques cometidos por grupos anticomunistas e que se opunham à reabertura na década final da ditadura militar

Atentados de extrema-direita: terrorismo no Ceará e no Brasil no fim da ditadura

Pesquisador faz levantamento inédito dos ataques cometidos por grupos anticomunistas e que se opunham à reabertura na década final da ditadura militar
Tipo Notícia Por

 

 

No dia 7 de agosto de 1980, uma carta chegou à sede do O POVO, na Avenida Aguanambi, 282, assinada pelo Movimento de Renovação Nazista (MRN). "Endereçado a este jornal com um vago 'Senhor Redator', o bilhete pede 'todo apoio à Falange Pátria Nova'", registrou a edição do jornal no dia seguinte.

A Falange Pátria Nova era organização de extrema-direita que realizava atos criminosos em várias partes do Brasil. Naquele ano, já havia reivindicado ataques em Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. No começo daquele mês, fez ameaças em Minas Gerais e Pernambuco. Em Fortaleza, também fez ameaças a bancas de jornal.

A carta enviada ao O POVO trazia ainda frases como: "Abaixo a imprensa comunista" e "Soltem os presos políticos na União Soviética". No fim da carta havia uma suástica e a sigla MRN. Pelos meses que se seguiram, muros da cidade foram pichados com suásticas e frases de exaltação a Adolf Hitler.

Ameaças e ações terroristas praticadas por grupos de extrema-direita foram uma constante a partir do início da chamada distensão da ditadura militar, no governo Ernesto Geisel (1974-1979), até o fim do regime, no governo João Figueiredo (1979-1985).

Professor Airton de Farias(Foto: Rodrigo Carvalho 26/3/2015)
Foto: Rodrigo Carvalho 26/3/2015 Professor Airton de Farias

O historiador, pesquisador, professor e escritor Airton de Farias fez o levantamento dos atos terroristas cometidos na época. Tendo como ponto de partida informações do Serviço Nacional de Informações (SNI), Farias buscou informações em jornais sobre os ataques. O pesquisador confirmou a maioria deles e ainda localizou notícias sobre vários outros que não constam no documento do SNI. Assim, ele decidiu fazer a própria lista.

No levantamento, localizou até agora 412 ações, entre ataques e ameaças, ocorridos de 1976 a 1985. Farias manteve na relação todos os atentados do documento do SNI, mesmo alguns que não poderiam ser caracterizados como de autoria da extrema direita.

"Eles não se veem, lógico, como terroristas. Se veem como patriotas, homens conscientes, cristãos, que estão agindo pelo bem da pátria para barrar essa ameaça comunista. Eles entendem que estão tendo um comportamento reativo, estão reagindo à ameaça comunista", explica o pesquisador.

Houve casos como o fracassado atentado do Riocentro, tentado por setores do Exército e da Polícia Militar em 30 de abril de 1981. Ali a intenção era incriminar grupos de esquerda. Porém, Farias ressalta que há vários casos em que grupos de extrema direita efetivamente reivindicavam a autoria dos ataques.

"Assumiam os atentados de forma intimidatória, para gerar medo na sociedade, desestabilizar o governo, intimidar a oposição e barrar a abertura. Porque eles imaginavam que a abertura poderia dar espaço para a atuação dos comunistas e implantação do regime marxista, a posteriori, no País."

 

Made with Flourish

 

Todavia, quando atentados deixavam feridos — ou mortos, como o caso de Lyda Monteiro, em atentado à sede da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro — a autoria não era reconhecida. "Eles lançam manifestos em que assumem os atentados que não tiveram vítimas, mas negam que foram culpados pelos atentados em que pessoas morreram ou foram feridas. A preocupação de não ter vítimas para que não maculasse a causa que eles imaginavam representar", afirma o historiador.

Airton pesquisou os atentados no pós-doutorado em História, na Universidade Federal do Ceará (UFC). Ele planeja lançar um livro sobre o tema em 2023.

 

 

Imprensa como alvo

O jornalismo era um dos alvos recorrentes do terrorismo de extrema-direita no fim da ditadura. E não se restringia a ameaças, como a recebida pelo O POVO em 7 de agosto de 1980. Não foram poucas as situações em que as agressões se concretizavam.

No dia seguinte à chegada da carta do "Movimento de Renovação Nazista" ao O POVO, coquetéis molotov foram jogados contra bancas de jornais na Praça da Igreja Redonda, Parquelândia, e na Praça da Igreja da Parangaba. Os atentados teriam sido cometidos pelo Movimento Anticomunista (MAC). A população controlou os incêndios.

Jornaleiros ficaram com medo. Era período de efervescência da imprensa alternativa no Brasil e no Ceará, a exemplo do marcante Mutirão. Os ataques às bancas tiveram como um dos efeitos que muitos estabelecimentos deixassem de vendar jornais alternativos, ou pelo menos os retirassem de exposição.

Mas, não só veículos alternativos eram alvo. A partir da segunda semana de agosto e pelo mês de setembro, outros jornais de Fortaleza passaram a receber ameaças.

Em 15 de agosto, foi o jornal Meio-Dia. Em 1º de setembro, a Tribunal do Ceará recebeu ligação anônima, em função das matérias publicadas sobre os atentados. Correio do Ceará, Mutirão e também o Sindicato dos Jornalistas também receberam ameaças.

A imprensa era alvo em todo o Brasil. Em 4 de outubro de 1979, por exemplo, uma bomba destruiu completamente o carro do jornalista Hélio Fernandes, diretor da Tribuna da Imprensa (RJ).

Alvos preferenciais Brasil afora, desde o primeiro momento, eram entidades estudantis, como centros acadêmicos e diretórios de estudantes. Eram vistos como espaços de oposição ao regime e de organização dos grupos de esquerda.

Sequestros, que tinham como alvo desde artistas até religiosos, eram outra prática.

 

 

O que pretendiam os atentados

O professor e historiador Airton de Farias explica que os atentados partiam, principalmente, de grupos que resistiam à reabertura política — um processo que durou aproximadamente uma década, iniciado no governo Ernesto Geisel (1974-1979) e concluído com a saída do poder de João Figueiredo (1979-1985).

Golbery do Couto e Silva(Foto: TCU / reprodução)
Foto: TCU / reprodução Golbery do Couto e Silva

A "distensão" foi "lenta, gradual e segura", na definição de Geisel. Mas, não deixou de incomodar e provocar reações violentas dos que não queriam que a ditadura cedesse. Faziam crítica a personagens como Golbery do Couto e Silva, então ministro-chefe da Casa Civil e ideólogo da reabertura.

O anticomunismo era outro motor dos grupos de extrema-direita. Havia um forte discurso de que haveria doutrinação política. Essa era uma das justificativas para ameaças e ataques a escolas e faculdades. Embora igrejas também tenham sido alvo de ameaças e mesmo de explosões. Caso da Igreja de Nossa Senhora do Nazaré, alvo de um molotov jogado contra a porta em 1º de setembro de 1980.

 

 

Atentados de extrema-direita e a guerrilha de esquerda

Um dos discursos recorrentes no Brasil de hoje em defesa da ditadura militar (1964-1985) aponta que a repressão naquela época teria como alvos não opositores, mas terroristas de esquerda e extrema-esquerda. O levantamento do professor Airton de Farias mostra, por sua vez, as práticas terroristas no extremo oposto do espectro ideológico. Mas, qual a diferença entre a luta armada de esquerda contra a ditadura e os atentados da extrema-direita?

"É a diferença entre guerrilha e terrorismo, e esses conceitos são fluidos ao longo da história", aponta Airton de Farias. O professor destaca entre as diferenças que os grupos da luta armada de esquerda não pretendiam atacar civis, embora acabassem atingindo. "A intenção era conquistar o poder". Esse era o objetivo da luta armada e tudo mais era instrumental: assaltar bancos para conseguir dinheiro para o projeto político, cometer sequestros para negociar soltura de presos políticos, por exemplo. Já nos atentados da extrema-direita, aponta Farias, os civis eram alvos e eram atingidos.

No período do levantamento, de 1976 a 1985, a luta armada de esquerda já estava derrotada. Grupos tinham sido desbaratados, líderes presos, mortos ou na clandestinidade. Naquilo que restava da esquerda, era realizada uma conflituosa autocrítica sobre o porque de a luta armada ter fracassado, explica Farias.

Made with Flourish

 

 

Civis envolvidos nos atentados

O pesquisador Airton de Farias destaca que muitos dos agentes terroristas da extrema-direita tinham vinculação direta com órgãos de repressão da ditadura militar brasileira. "Órgãos de repressão eram uma quarta força armada. Há intercessão desses agentes", explica o historiador. Mas havia exceção. Um dos grupos mais atuantes no terrorismo naqueles anos era composto por civis. E recebeu tratamento diferente do Estado.

Um dos atentados foi o já citado, envolvendo a Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, no bairro Montese, em Fortaleza, em 1º de setembro de 1980. Um molotov foi atirado contra a porta do templo e foram feitas pichações. Uma dizia: "Abaixo os padres comunistas". Outra reivindicava a autoria: "MAC -Movimento Anticomunista".

O MAC foi responsável por atentados em São Paulo e Minas Gerais, que envolveram invasão de entidades estudantis, jornal e colocar bomba em igreja. Em Fortaleza, além do ataque à Igreja de Nazaré, jogaram molotovs contra bancas de jornal, provocaram explosão no Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e colocaram bomba na Praça do Ferreira. Mas, Farias aponta que essas organizações não costumavam ter uma organização central. É possível que pessoas que viam esses atentados em outros lugares e se identificavam com as ideias decidissem agir de forma parecida e usando o mesmo nome. Não significa que havia uma articulação entre eles.

Tribuna do Ceará, em 6 de novembro de 1980, noticiou atentado na véspera na Praça do Ferreira(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Tribuna do Ceará, em 6 de novembro de 1980, noticiou atentado na véspera na Praça do Ferreira

Fato raro nesse histórico de atentados, o MAC do Ceará foi desarticulado. Foi o único daqueles a que Airton de Farias teve acesso. "O único grupo que teve pessoas processadas, expostas à mídia que, de fato, de forma explícita, estavam envolvidas em atentados foi o MAC do Ceará", afirma.

Membros do MAC foram apresentados à imprensa e usados pelas autoridades para mostrar que não protegiam grupos de extrema direita, conforme o historiador. Airton acredita que pesou o fato de se tratarem de civis. Segundo ele, mesmo da parte de militares que não se envolveram com atentados ou prática de tortura, havia resistência a punir membros das Forças Armadas.

O que você achou desse conteúdo?