Modelo, policial civil, youtuber e ativista de causas LGBTQIA +, Paulo Vaz foi encontrado morto em um apartamento de São Paulo na segunda-feira, 14. No mesmo dia, ele havia publicado dois stories curtos nos quais falava de virar a noite dando plantão e como isso fazia mal para a saúde mental. Na outra publicação, ele dava o endereço para onde a perícia deveria ir.
Um dia antes de virar notícia por causa de sua morte repentina, o nome de Paulo já estava sendo massivamente citado na internet por causa de um vídeo publicado nos stories do marido, o também youtuber e ativista Pedro HMC, com o qual era casado há dois anos e mantinha um relacionamento publicamente aberto. O ato sexual mostrado no vídeo de poucos segundos foi o suficiente para uma onda de comentários fóbicos sobre Paulo, que era um homem trans (pessoas trans são aquelas que não se identificam mais com o gênero atribuído ao nascer). Alguns comentários e postagens mais curtidas falavam que por não ter uma genitália masculina, ele não seria “homem suficiente” para o esposo.
A morte de Paulo, chamado carinhosamente de Popo para os mais chegados, causou comoção entre artistas, políticos, ativistas e o público em geral, levantando uma série de questões que refletem diversos aspectos da sociedade atual mas que permanecem guardados a sete chaves e categorizados como tabus.
Mas afinal, quem matou Paulo Vaz?
Uma dupla é a principal suspeita: a ignorância e o preconceito. Eles são os principais mantenedores das ondas de ódio que de tempos em tempos varrem a superfície das redes sociais e não raramente causam fatalidades no mundo real, principalmente quando o assunto é comportamento sexual.
“A não-monogamia desperta comentários pejorativos, e este é o primeiro ponto. Segundo, eles eram pessoas públicas, com muitos seguidores, especialmente no nicho LGBTQIA +, e quem os acompanhava acabava se sentindo próximo demais, a ponto de comentar qualquer coisa, sem pensar no poder e consequências das palavras. Terceiro, e aqui penso ser o principal gatilho para o que aconteceu, há a transfobia. Como se não bastasse vivenciar a transexualidade em uma sociedade estruturada na heterosexualidade e cisgenaridade, ele era um policial trans e trabalhava em uma instituição rígida, de não-exposição de fragilidade emocional, com uma rotina de trabalho extenuante”, enumera Priscilla Vieira, psicoterapeuta especialista em relacionamentos não-monogâmicos e LGBTQIA +.
“Voltando à questão da não-monogamia, talvez a publicação do vídeo sexual estivesse fora do acordo que Paulo e Pedro tinham e isso o tenha afetado. Importante ressaltar que ao contrário do que as pessoas pensam, o relacionamento aberto não é uma bagunça, pode haver regras. Por exemplo, o casal pode combinar de não dizer para o outro ou terceiros o que foi feito com outro parceiro. Cada casal tem seus acordos, seus limites”, acrescenta. “Fica um alerta: é muito difícil lidar com as consequências da exposição do conteúdo íntimo, prática que já era comum, mas aumentou muito no pós-pandemia. A maioria das pessoas não tem estrutura para lidar com vazamentos públicos”, alerta.
O ativista Dominy Martins conheceu Paulo pessoalmente quando foi competir no concurso Mister Trans Brasil. "Ele falava de coisas que eu tinha vontade de falar mas acaba não falando porque não queria ter uma super exposição. Estou muito receoso após o que aconteceu porque além de ser homem trans, sou pansexual. Estou em um relacionamento e um dos meus maiores medos é receber os mesmos 'hates' [comentários de ódio] que Paulo recebeu", afirma.
"Já passei por algumas situações bem desagradáveis e que são comuns a homens trans, que é termos nossos corpos procurados por fetiche ou experimento. Ou /quando temos que ouvir a frase 'o que eu quero você não tem'. E se o homem trans não é hetero, parece que o preconceito é maior. Me diz, como é que uma pessoa está na causa lgbt, quer que as pessoas respeitem, mas ela mesma não respeita o próximo?", questiona. "Mais uma vez estou sofrendo pela morte de um dos meus. Estou cheio de desesperança, mas acho que o jeito é, como homens trans, contarmos com o apoio uns dos outros", conclui.
Mas e se tiver sido outro o culpado? Um que tenha vindo não do seio familiar ou da internet mas do ambiente profissional, que afinal é o lugar onde passamos a maior parte do nosso dia consciente? Em São Paulo, estado onde Popo trabalhava como policial, o número de suicídios entre policiais civis é três vezes maior do que o de mortes em serviço da categoria, segundo a Associação de Delegados de Polícia do estado (Adepesp). De acordo com o levantamento, feito com base na Lei de Acesso à Informação, entre 2015 e setembro de 2021, 61 policiais civis tiraram a própria vida, enquanto 21 agentes morreram em serviço. A Polícia Civil de São Paulo tem cerca de 28 mil agentes na ativa atualmente.
Sônia Amaral, gerente do Departamento de Assistência Médica e Psicossocial (Damps) da Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE), aponta alguns elementos do serviço do policial que são desencadeadores de situações extremas: “O policial tem as situações de conflito como objeto de trabalho. Quando eles saem para uma operação, vão conscientes que podem não retornar. É uma rotina de insegurança”. Segundo a gestora, o Ceará tem índices muito baixos de suicídios na Polícia Civil e nos últimos cinco anos quatro mortes foram registradas. No entanto, os casos seriam maiores na Polícia Militar.
“Temos uma equipe multidisciplinar com médicos, psicólogos, fisioterapeutas e educadores físicos. Quando o policial apresenta qualquer característica de problema psicológico, a chefia dele encaminha para uma avaliação e pode ser afastado das atividades para fazer o tratamento. Esse trabalho tem diminuído os índices”, explica. No entanto, apenas 20% dos policiais aceitam iniciar o tratamento. Nos casos de negativa, o departamento conversa com o policial e faz visitas domiciliares para obter o apoio da família.
“O homem com depressão, principalmente na esfera policial, não aceita se ver mais como um homem forte, e busca ignorar que está adoecido pela ansiedade e estresse. Infelizmente, ainda há uma resistência para o tratamento da saúde mental”, destaca.
Quem matou Paulo Vaz?
De acordo com o guia “Suicídio: saber agir e prevenir”, do Ministério da Saúde, não se deve resumir a morte de uma pessoa em virtude de uma única causa, porque o suicídio é sempre multifatorial. Ou seja, não há um único culpado pela morte de Paulo Vaz e sim, uma conjunção de fatos. Dizer que alguém se matou por causa do emprego ou do casamento, além de ser errôneo, ainda joga o peso da culpa em quem faz parte desses vínculos.
Para quem está passando por algum momento muito difícil, há alguns serviços totalmente gratuitos. Há o @CVVoficial, com serviço 24h, via telefone (188), email ou chat no site. Para saber onde tem mais atendimentos gratuitos psicológicos ou psiquiátricos, online ou presencial em todo o Brasil, tem o http://mapasaudemental.com.br/ e o www.podefalar.org.br, este último um serviço da Unicef exclusivo para jovens de 13 a 24 anos.
PONTO DE VISTA
Por Flávia Oliveira, repórter do OP+
Conheci Paulo Vaz em 2017, quando estava no mestrado em Antropologia. Meu projeto de pesquisa era sobre homens trans no Youtube e ele foi um dos primeiros a responder o meu pedido de entrevista feito por mensagem mandada em rede social.
Eu queria saber dele o motivo para criar um canal para falar de coisas tão íntimas quanto a transformação do próprio corpo e o que aquilo tudo significava para ele e o público. Ele já era conhecido, pois era modelo, e suas fotos de sunga tomando banho de bica circularam em alguns portais de notícias porque ele era um dos poucos e, quem sabe, um dos únicos modelos trans à época.
Por causa dessas fotos, cheguei a alguns vídeos dele, mal gravados e com edição ruim, mas havia algo especial ali e o jeito sereno com que ele contava as histórias me tocou profundamente. Depois desse primeiro contato, ele passou a me marcar em publicações e a me convidar para entrar em grupos, e foi assim que falamos até 2018, quando a amizade à distância arrefeceu, ainda que eu ainda assistisse aos seus vídeos de tempos em tempos.
Rest in Power, Popo.