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Bode Ioiô rememora andanças por Fortaleza
Reportagem Especial

Bode Ioiô rememora andanças por Fortaleza

Há quanto tempo você, caro leitor, não se deixou levar pela cidade e andar a esmo, guiado apenas pela vontade de passear, tal qual o Bode Ioiô? Um dos mais controversos ícones de Fortaleza continua seus percursos pela cidade

Bode Ioiô rememora andanças por Fortaleza

Há quanto tempo você, caro leitor, não se deixou levar pela cidade e andar a esmo, guiado apenas pela vontade de passear, tal qual o Bode Ioiô? Um dos mais controversos ícones de Fortaleza continua seus percursos pela cidade
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Neste 13 de abril, aniversário de Fortaleza, O POVO entrevista o Bode Ioiô, animal que se transformou em espécie de mascote da cidade e cujas características, como a resiliência e a molecagem, foram tomadas de empréstimo para simbolizar algumas das características mais marcantes do fortalezense. Para cumprir essa missão nada convencional, contamos com o auxílio do historiador Sebastião Rogério Ponte, autor do livro “Fortaleza Belle Époque. Reforma urbana e controle social. 1860-1930” (Fundação Demócrito Rocha, 2014), da professora Patrícia Pimentel, do Departamento de Zootecnia do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da multiartista, historiadora e ativista trans Sy Gomes. As entrevistas com os três e a pesquisa bibliográfica assinalada no quadro interativo desta reportagem foram utilizadas como base para as respostas do matreiro.  

Bode Ioiô ganhou percurso itinerante pela cidade para comemorar 90 anos da eleição para vereador(Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Bode Ioiô ganhou percurso itinerante pela cidade para comemorar 90 anos da eleição para vereador

Nascido em data e local desconhecidos no Interior cearense, Ioiô chegou à capital cearense junto aos retirantes que fugiam de uma das piores secas do Ceará, a de 1915. Em vez de ter a pele vendida por uma das empresas de exportação que ficava no entorno do que hoje é o Centro Cultural Dragão do Mar, caiu nas graças dos proprietários e funcionários, provavelmente por ser um bode bonito e faceiro.

Ícone de uma Fortaleza irreverente, Bode Ioiô é personagem da história cultural da cidade (Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Ícone de uma Fortaleza irreverente, Bode Ioiô é personagem da história cultural da cidade

Foi assim que começou a usufruir da liberdade de passar os dias fazendo o percurso da Praia de Iracema (antiga Praia dos Peixes), onde morava, até a Praça do Ferreira, onde gostava de ver o movimento da Fortaleza que estava em plena transformação.

Por ser um andarilho e, à sua maneira, usufruir da cidade, seja pelas sensações que suas ruas, com seus cheiros, visões e sons poderiam transmitir, Ioiô é a personificação de um convite para o leitor que esteja disposto a fazer um passeio descompromissado e ao mesmo tempo atento às múltiplas nuances de uma Fortaleza que completa 296 anos sem deixar de lado a discussão sobre assuntos tão atuais quanto o descontentamento que teria levado a população a elegê-lo para ocupar uma das cadeiras do legislativo municipal. A arte também figura nesta entrevista como uma força questionadora de conceitos vigentes, inclusive da própria imagem do que seria o cearense, tão cristalizada até os dias atuais.

Como parte da programação do centenário da eleição do Bode Ioiô e os 90 anos do Museu do Ceará, o mais famoso caprino do estado continua com sua alma andarilha percorrendo os demais equipamentos culturais - neste mês de abril, o pouso do bode será na Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), onde ele ficará exposto e suscitará uma série de atividades como mesas-redondas, exposições, cortejo, oficinas, experimentações artísticas e palestras. O Sobrado Dr. José Lourenço e o Theatro José de Alencar também terá programação alusiva. Para saber mais, acesse o site da Secult.  

 

O POVO - Por que deram esse nome ao senhor, Ioiô?

Bode Ioiô - Na grafia da época, escrevia-se Yoyô, e o motivo do nome era porque eu andava sempre pelos mesmos lugares, indo e voltando da Praia de Iracema à Praça do Ferreira e vice-versa, tal qual o brinquedo que vai e volta cadenciado. É um comportamento muito comum nos caprinos, isso de seguir um mesmo percurso, principalmente se houver alguma coisa boa no caminho, e não estou falando da suposta cachaça que ofereciam-me (risos).

Patrícia Pimentel é professora no Departamento de Zootecnia da UFC e explica alguns comportamentos do Bode Ioiô(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Patrícia Pimentel é professora no Departamento de Zootecnia da UFC e explica alguns comportamentos do Bode Ioiô

Patrícia Pimentel - Isso é verdade, os bodes costumam mesmo criar e manter um percurso, principalmente quando ele é benéfico para ele. Já em relação ao álcool, tenho cá minhas dúvidas se seria possível ele manter um consumo regular, como tanto falavam. Ele aceitar bebericar um gole aqui e ali, no entanto, não seria impossível [lembrando que hoje em dia, oferecer álcool a animais se enquadra em situações de maus-tratos, passível de punição]. Para quem não sabe, os caprinos possuem uma série de comportamentos que os assemelham aos dos cachorros, como a docilidade e a fácil convivência com os humanos. No Interior é comum criar os filhotes rejeitados pelas mães dentro de casa — inclusive, eles são ótimos guardiões das propriedades, além de adorar brincadeiras, assim como os cães. Na rua, eles reconhecem e vão de encontro às pessoas para socialização, principalmente aquelas que os alimentam.

O POVO - O senhor tem ideia dos motivos que te levaram a conquistar tanta simpatia do fortalezense, passados mais de 100 anos de sua chegada aqui?

Bode Ioiô - A minha beleza e personalidade, é claro. Foi por causa dessas qualidades que escapei da faca, quando eu ainda era quase um cabrito e fui vendido por um retirante para a Rossbach Brazil Company, firma que exportava peles e couros. Como diria Eduardo Campos no seu “Capítulos de história da Fortaleza do século XIX” (Edições UFC, 1985), a minha vida de boêmio era perambular com minha barbicha descuidada e cheirinho acentuadamente característico…Nem os fiscais da prefeitura me molestavam, viu? E olha que eles costumavam tanger qualquer outro animal que andasse por aí, principalmente perto das praças mais ajeitadinhas. Mas de nada adiantaria ter tanta beleza e simpatia se eu não fosse, antes de tudo, um forte, assim como os homens, mulheres e crianças que andaram comigo do sertão para cá, todos iguais, tangidos pela mesma seca. Só mesmo quando envelheci e perdi aquela agilidade dos movimentos, senti que minha mocidade começou a declinar e passei a andar menos por aí. Ainda mais porque a capital cearense crescia, o tráfego de veículos aumentava e a tal civilização, chegava…

Sebastião Ponte, historiador, professor da UFC, autor de Fortaleza Belle Èpoque(Foto: Yasmin Ponte. Divulgação )
Foto: Yasmin Ponte. Divulgação Sebastião Ponte, historiador, professor da UFC, autor de Fortaleza Belle Èpoque

Sebastião Ponte - O Ioiô atraiu a curiosidade por ser muito independente e fazer aquele percurso sozinho, quase todos os dias. E sim, ele deveria ser mesmo muito simpático, porque logo caiu nas graças da população, que o adotou como mascote da Praça do Ferreira, sobretudo dos mais boêmios, além dos literatos e artistas. Desde o final do século 19 era notório o comportamento irreverente da população, e isso era algo que irritava profundamente as elites. Logo ele ficou famoso e começaram a aparecer histórias do que ele teria feito, como a que dizia que ele era, na verdade, a encarnação de um poeta que se estrebuchava sobre os cascos ao ouvir o seu nome de humano.

São histórias saborosas, ainda que careçam de qualquer documentação. Essas presepadas do bode nasciam na praça e reverberavam pela cidade, que na época não tinha mais de 110 mil pessoas. E a praça era o lugar de onde saíam e se espalhavam as notícias, piadas e tudo o mais. Alguns bichos se tornaram especialmente queridos e populares, como a ema no Parque da Liberdade. Uma das hipóteses seria a saudade do sertão, ainda muito presente em Fortaleza, por onde circulavam muitos animais. Mas as elites queriam se afastar o máximo possível do sertão, que era símbolo do provincialismo, e uma cidade que queria ser moderna não comportaria esses traços que remontavam a um passado rudimentar, tosco e selvagem. Só que nem sempre isso era possível, e assim temos a foto da inauguração da Estação João Felipe, no Centro: os engenheiros, todos elegantes, vestindo preto, cartola e bengala, e logo atrás deles, uma vaca (risos).

Patrícia Pimentel - Uma outra característica dos bodes que é bastante interessante e pode despertar simpatia é o instinto de sobrevivência, que neles é muito forte. Por exemplo, os hábitos alimentares se modificam com a escassez. Na falta de vegetação arbustiva, eles saem à procura de vegetações mais altas, diferentemente dos ovinos, como as ovelhas, que costumam pastar de cabeça baixa. Eles se ajustam a condições adversas para sobreviver desde quando filhotes, pois na falta das mães, os filhotes até mamam em fêmeas de outras espécies, tamanha a adaptação.

Bode Ioiô em percurso itinerante pela cidade (Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Bode Ioiô em percurso itinerante pela cidade

O POVO - Estamos comemorando os 296 anos de Fortaleza, mas também é preciso falar com o senhor a respeito de política, já que neste ano temos eleições.

Bode Ioiô - Imagino que o motivo da pergunta seja porque eu teria sido eleito para ocupar uma das cadeiras do legislativo municipal. Corria o ano de 1922 quando os amigos da Praça do Ferreira fizeram uma campanha para alçar a minha figura ao posto de vereador. Era uma campanha mas também protesto, porque a insatisfação com os desmandos e corrupções do universo da política eram generalizadas. Naquele tempo, a eleição era em cédula de papel, não tinha essa benesse de hoje, a urna eletrônica. Pois bem, na votação para vereador, escrevia-se o nome do escolhido. O que é contado é que muita gente escreveu o meu nome e tive assim uma enormidade de votos, mais do que qualquer outro candidato. Obviamente, esses votos nunca foram de fato apurados. Teria havido até um movimento para que dessem posse a mim, mas como não foi atendido, segui despachando mesmo na praça. Fui precursor de outros votos de protesto no Brasil: em 1959, com o rinoceronte Cacareco, em São Paulo e em 1988, no Rio de Janeiro, com o macaco Tião, que levou 400 mil votos para prefeito.

A historiadora Sy Gomes apresentou em 2021 o projeto artístico "Ioiô não vai votar", pelo  Laboratório Experimental da Rede Cuca (Lacre) (Foto: David Felicio Araujo / Divulgação)
Foto: David Felicio Araujo / Divulgação A historiadora Sy Gomes apresentou em 2021 o projeto artístico "Ioiô não vai votar", pelo Laboratório Experimental da Rede Cuca (Lacre)

Sy Gomes - Engraçado que Fortaleza já chegou a quase eleger um bode para a vereança, mas nunca elegeu uma travesti. As semelhanças entre um bode e uma travesti são inúmeras. Para muitos, sequer somos humanas. Hoje em dia, em quem a cidade, revoltada, votaria? Num bode ou numa travesti?

Bode Ioiô - A senhorita poderia explicar, por gentileza?

Sy Gomes - Quando eu pesquisei o arquétipo do bode e o que ele significava para Fortaleza, percebi que você segue sendo falado e colocado como ícone por conta desse protesto que o elegeu para vereador, mas me dei conta também de outras coisas: quais as histórias que fazem você ser conhecido? A de que você era boêmio, tomava cachaça, levantava a saia das meninas, andava pela região mais famosa de Fortaleza…você se relacionava muito com a imagem do macho cearense, do cabra macho. Por isso que sempre esteve em alta e ficou marcado na história política e mitológica da cidade. Se você for pensar, até o humor cearense é questionável.

É comum essas características do cearense serem vangloriadas através dessa ótica do Ceará moleque, da irreverência. Essas características, que parecem tão próprias do cearense, foram, em determinado momento, inventadas e construídas por quem veio antes. No livro “A invenção do Nordeste”, Durval Muniz debate a ideia de uma característica própria que se relaciona com o lugar, ou seja, o cearencismo, o nordestinismo. Quando se pensa nas características do cearense, se pensa em povo forte, em terra onde há verão o ano inteiro, no povo simpático…essas características foram selecionadas e bem escritas para se instituírem enquanto verdade enquanto coletivas do cearense. Essa é uma postura da história contemporânea. E claro, sou uma outsider neste processo, já que estou problematizando a sua figura, a qual está engessada na historiografia do Ceará. O bode como símbolo da irreverência cearense. Prefiro não fazer um resgate da memória e sim, uma problematização. É uma boa reflexão para todos, não acha? Especialmente nesta data.

 

 

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