Tanto quanto qualquer outro lugar, Fortaleza é diversa. É a cidade do mar, do sol, do vento. Dos dias à Beira-Mar. Mas também é a Fortaleza da repressão e da violência, da economia solidária e da arte feita por todo lado — nas áreas centrais e fora delas. E toda essa pluralidade está expressa em músicas que cantam a Capital ao longo dos anos.
Pelo menos é isso que aponta a análise da Central de Jornalismo de Dados do O POVO (DATADOC), feita com base no levantamento do projeto Fortaleza em Música, desenvolvido pelo Grupo de Imagem, Consumo e Experiência Urbana (GICEU), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (ICA/UFC). A pesquisa é coordenada pela professora Silvia Helena Belmino.
Entre as 79 músicas já mapeadas, estão desde “Vive Seu Mané Chorando”, composta pelo pianista Luiz Assunção em 1946 e gravada pelo Trio Nagô em 1955, a “Prá Quebrar o Tabu”, de 2021, do compositor Aluízio Moisés de Medeiros, o Parahyba de Medeiros, um dos coordenadores da Companhia Bate Palmas, coletivo de jovens moradores do Conjunto Palmeiras.
Ao se analisar a amostra de músicas, é possível perceber que, entre as 73 canções com bairro identificado, os três mais cantados são Centro, Praia de Iracema e Mucuripe. Eles inspiram cerca de 40% das letras e estão presentes em composições das diferentes épocas que compõem a base de dados.
Fagner canta “Mucuripe” em composição com Belchior de 1970, e revisita a paisagem em “Hotel à Beira-Mar”, de 2003, com Zeca Baleiro. Em 2012, Erivan Produtos do Morro musicou a viagem de Manoel Jacaré, Tatá, Jerônimo e Manuel Preto a bordo da jangada São Pedro, partindo da mesma praia até o Rio de Janeiro, em 1941, para pedir que o ditador Getúlio Vargas incluísse os pescadores na reforma trabalhista. Em 2019, a banda Garotos da Capital referiu-se àquele mesmo cenário em “Beira do Mar da Morte”. São estilos musicais e momentos sociais diferentes retratando a região.
Ao mesmo tempo em que, por meio da arte, a sociedade é retratada, artistas propõem uma nova maneira de ver a realidade — seja na pintura, no teatro, na dança ou, nesse caso, na música. Apesar de essas duas ideias muitas vezes serem apontadas como opostas, segundo o doutor em Educação Pedro Rogério, professor do curso de Música da UFC, ambas estão corretas.
“O artista capta muitas coisas que ocorrem na sociedade e traduz isso na sua linguagem artística, e a arte também propõe novas linguagens. Como percebemos o mundo em grande medida pela linguagem, ao se propor novas linguagens, se propõe também novos pontos de vista, novas interpretações, novas maneiras de ver essa mesma realidade”, explica.
Um exemplo disso é a produção do
“Beira Mar”, faixa do disco
“(Era) realmente propor uma liberdade inclusive para o movimento estudantil, nesse sentido de que, apesar de todo o sofrimento, cantar o amor não significa estar alienado das questões políticas”, aponta o pesquisador.
Analisando o atual cenário musical da Cidade, o docente destaca que a diversidade na produção artística fortalezense sempre existiu, mas muitas vezes ficou invisibilizada. Além de características marcantes como o maracatu e os cantadores, Fortaleza também tem rock, funk, punk e hip hop. “Tem a voz do subúrbio, que muitas vezes não é ouvida pela classe média”, afirma.
Durante as entrevistas realizadas para inserir as músicas no aplicativo, a professora Silvia Belmino percebeu a existência tanto de artistas que “romantizam” os espaços da Cidade ao exaltar a beleza, o mar e Iracema, personagem do escritor José de Alencar, quanto daqueles que pertencem a uma geração mais nova e mostram “outra Fortaleza”.
“Eles mostram a desigualdade, a violência policial, a ausência de ações do Estado nas áreas em que eles moram. (Mostram) a dificuldade de transitar dentro da Cidade, os espaços públicos que não são tão públicos, porque eles não podem acessar esses espaços”, explica a pesquisadora.
Machismo e transfobia também foram alguns dos aspectos que Belmino identificou nas falas das entrevistadas, além de mais dificuldades enfrentadas por mulheres compositoras na cena musical de Fortaleza.
Para o doutor em linguística e pesquisador do departamento de Letras da UFC José Américo Bezerra Saraiva, essas manifestações musicais recentes que falam de outros lugares da Cidade têm como característica compositores que vivem uma Fortaleza fora das “idealizações”. Além disso, evidenciam a difusão da cultura para outros eixos e classes sociais.
“Quero crer que as gerações que sucedem devem ter uma visão mais crítica por viverem aqui. O Pessoal do Ceará, por exemplo, cantava uma Fortaleza cheia de saudade e de aspectos aprazíveis, pois estavam fora da Capital”, argumenta o pesquisador.
Nessa primeira etapa da pesquisa para o projeto Fortaleza em Música, o foco do grupo foi mapear as músicas. A próxima é analisar os dados coletados e lançar publicações acadêmicas. "Agora demos um espaço, porque o artista mostra o trabalho. Também é um ato mais ‘político’, digamos, porque mostra não só a região turística da Cidade, mas a produção artística de vários bairros periféricos."
Mesmo em menor número, outros bairros da Capital também estão presentes nas canções coletadas. Barra do Ceará, Castelo Encantado, Vicente Pinzón, Sapiranga, Sabiaguaba, Messejana e Jangurussu são alguns deles.
“A Fortaleza das décadas de 1970 e 1990 era outra, muito provinciana e menor do que é hoje. Atualmente, percebe-se que não há mais uma concentração de produção musical nos bairros idealizados nas canções. A periferia se mostra e difunde seu modo de viver”, complementa Bezerra.
A Sapiranga é o tema central de “Zarea”, do rapper Bakkari, de 25 anos. Por falar do bairro onde nasceu e vive até hoje, a canção “já é essencialmente muito importante” para ele. Além disso, por ter sido feita no começo da pandemia de Covid-19 e produzida por Lucas Frugiuele, o Frugi, o artista diz que essa é a música mais importante que já fez até agora.
Ele conta que, ao fazer contato para trabalharem juntos, Frugi enviou três batidas. Uma delas tinha a melodia mais “tensa” e “obscura” que o levou a imaginar o cenário de violência e de pandemia. “Comecei a brincar com a melodia, a fazer essa sonoridade de ‘sapi’. Foi quando eu fiz o refrão: ‘Eles dizem que é fácil, mas nunca chegaram aqui. Sabem nada da Sapi’, lembra.
"Saber ter a minha personalidade dentro do geral e da cena nacional, principalmente, e trazer essa personalidade, mostrando a cidade de Fortaleza e os pontos daqui com orgulho, para mim, é essencial para poder chegar lá fora e poder mostrar para o Sudeste ou para fora do Brasil que aqui a gente tem cultura sobrando e a gente não deve nesse quesito para ninguém"
“Zarea” também foi uma oportunidade para Bakkari desabafar. “Muita gente não prestava atenção pela Sapiranga ter sido sempre um bairro somente marginalizado e nunca visto como arte”, afirma.
Ele destaca a cena cultural do bairro promovida principalmente pelos jovens nos anos de 2018 e 2019, com a formação de coletivos. Foi nesse período em que foram realizadas quatro edições do Sapiranga Sound System, festival que promovia shows com diferentes estilos musicais.
“Tem muita gente envolvida em audiovisual, dança. Por aqui é uma cena muito movimentada. Porém, por ser um bairro do lado extremo da cidade, ocorre que não tem muita visibilidade dentro do geral”, aponta. O artista destaca a necessidade de mais investimento por parte do poder público e “mais atenção com a cultura da favela”.
As ações realizadas por coletivos, segundo Bakkari, foram feitas com o engajamento dos moradores. “Tudo foi feito com as pessoas da comunidade, os jovens que quiseram investir, as pessoas que cederam energia, uma tomada ou uma água.”
Ele aponta ainda que as letras das músicas, que muitas vezes trazem a temática da violência, não são uma apologia aos assuntos abordados. “É somente o que a gente vê no nosso cotidiano”, afirma.
Bakkari começou na música quando fez parte de uma banda da igreja. Foi quando aprendeu a cantar e tocar bateria, na adolescência. Teve contato com o rap por influência de um tio e se aprofundou no gênero mais tarde, quando tinha cerca de 17 anos.
Desde então, percebe uma cena local mais forte. Apesar de a disparidade em relação ao Sudeste ainda ser visível, diz que é possível enxergar grandes referências dentro da Cidade e do Estado: cita Don L, Nego Gallo e Mautê como algumas delas.
“A diferença é até de estrutura, de praticamente toda semana a gente ver shows de artistas daqui com artistas de fora, público maior consumindo rap. Vemos as pessoas tocando rap no carro, tocando na academia — que era um ambiente em que a gente não via tocando”, complementa.
Assim como Bakkari, Lidia Maria, 33, teve contato com a música na igreja, aos 10 anos. E desde mais nova já cultivava o desejo de tocar um instrumento por ver a avó tocar um violão, que a artista herdou aos 12. Desde então, não largou a música.
Toda essa história começou na Barra do Ceará, que Lidia Maria quis homenagear em “Canção Barra Mar”, de 2016. Como Ednardo, Fagner e Fausto Nilo fizeram para a Praia de Iracema e para o Mucuripe, ela queria cantar as belezas do bairro e ressaltar a identidade dele e das pessoas que o habitam.
“Acho que a Barra do Ceará tem uma importância para a Cidade que ainda não é tão reconhecida e valorizada. Lá nós temos o Marco Zero, a Cidade nasceu lá e existe uma contradição de que Fortaleza tem 296 anos, e a Barra do Ceará tem mais de 400”, defende a artista.
Ao compor “Canção Barra Mar”, ela também buscou vencer o “estereótipo ruim” que se criou nas últimas décadas por conta de aspectos como violência e prostituição, além de tentar aproximar-se, ela mesma, dessa Barra do Ceará que queria retratar.
“Eu morava na Barra do Ceará, mas não na avenida da praia nem tão próximo à praia assim. Então até mesmo para mim existia um distanciamento e eu queria me aproximar do lugar que tem esse encontro do rio com o mar maravilhoso”, explica.
"Temos sempre que celebrar a nossa cultura, as pessoas que fazem arte, os nossos artistas, compositores, artesãos, cientistas, pesquisadores, escritores. Acho que uma cidade é feita de pessoas, de lugares. Também temos que nos atentar mais para nosso patrimônio histórico. Acho que quando fazemos tudo isso, estamos contribuindo para fortalecer a nossa identidade"
Fortaleza, como um todo, está presente em outras composições de Lídia Maria por meio de elementos como o mar e o vento. É o caso de “Alma Leve”, de 2015. A música não faz referência direta à Capital e não está no banco de dados do projeto da UFC, mas tem influência da vida em uma cidade litorânea.
“Acho que vem muito disso de ter esse contato, de morar em uma cidade litorânea e estar sempre vendo o mar, tendo essa possibilidade do mar mais próximo. E de ter uma tradição de músicas daqui que exaltam o mar, que contemplam essa paisagem”, afirma a compositora.
Dar continuidade ao trabalho de artistas da década de 1970 e disseminar a música deles artistas é quase uma missão para Lidia Maria. Ao mesmo tempo, ela percebe e reconhece a importância de se romper uma “concentração de narrativas” que existia.
Também defende um encontro entre essas visões às quais se refere como “poética” e “contemporânea” da Capital. “Acho que é importante um encontro com as várias perspectivas, para entendermos que tudo isso compõe Fortaleza. Acho que a gente ainda está caminhando. É um processo, justamente pelo fato de a gente não se conhecer tão bem.”
O Fortaleza em Música está disponível para Android e só pode ser acessado no Brasil. Até agosto de 2022, os pesquisadores pretendem lançar um novo formato que possa ser acessado por pessoas que estejam em qualquer parte do mundo e, até o final deste ano, o objetivo é disponibilizar o aplicativo também para IOS.
As primeiras músicas que foram inseridas no mapa do aplicativo também constam em um álbum de figurinhas, que pode ser adquirido em troca de 1 kg de alimento. Já o aplicativo, por ser um banco de dados, pode ser constantemente atualizado. Na própria plataforma é possível colaborar com sugestões de músicas novas ou antigas que tenham referências sobre Fortaleza e ainda não tenham sido catalogadas.
Para a análise desta matéria, a Central DATADOC estruturou e analisou os dados do projeto Fortaleza em Música, do Grupo de Imagem, Consumo e Experiência Urbana (GICEU), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (ICA/UFC).
Como forma garantir a integridade e confiabilidade deste material, disponibilizamos a metodologia detalhada do projeto, nossas análises e o conjunto de códigos desenvolvidos para essa reportagem no nosso perfil no GitHub. No repositório também é possível acessar as bases utilizadas na apuração de outras reportagens desenvolvidas pela Central de Jornalismo de Dados do O POVO.