Era cedo da manhã do dia 8 de junho de 1982 quando o jovem estudante de arquitetura Romeu Duarte, a caminho da aula, ouviu pelo rádio que durante a madrugada um avião havia se chocado contra a Serra de Aratanha, na cidade de Pacatuba, Região Metropolitana de Fortaleza.
As chances de existirem sobreviventes entre os 137 ocupantes da aeronave eram remotas, e os nomes das vítimas — que vinham de São Paulo e seguiam viagem até a capital cearense — começavam a ser divulgados.
“Morreram muitas pessoas conhecidas, como o professor Antonio Carlos Cysne, uma pessoa muito querida, e empresários importantes que voltavam de uma feira em São Paulo, dentre eles Edson Queiroz. A cidade entrou em uma comoção muito grande”, relembra Duarte, que hoje é professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Estavam a bordo do Boeing 727-200 dezessete dos quase 50 empresários do setor de indústria de confecções do Ceará que participaram, como expositores, da 27ª Feira Nacional da Indústria Têxtil (Fenit), em São Paulo.
Vinham no avião:
O então presidente da Associação das Indústrias de Confecções do Ceará, Vicente Paiva, declarou à época: “Isso é um duro golpe para um setor que crescia e que transformaria — como transformará — o Ceará, em cinco anos, no maior polo de confecções do Brasil.”
Em relato ao O POVO na reportagem da jornalista Luana Severo sobre os 35 anos do acidente, Antony Fernandes, então diretor do Museu Histórico de Pacatuba, mencionou que no dia seguinte ao acidente havia uma mulher que observava a mata. Segundo o historiador, o marido dela voltava para Fortaleza com a bagagem repleta de tecidos recém-comprados.
“No que o avião explodiu, jogou as malas pra cima e, quando elas voltaram, as fitas que vinham enroladinhas engancharam nas copas das árvores e ficaram voando. E ela (a mulher), chorando”, descreveu o Sr. Antony em seu depoimento.
Quase 40 anos depois da tragédia, que ficou marcada como o maior acidente da aviação brasileira na época, as lembranças também ainda estão vivas na memória da jornalista e colunista do O POVO, Lêda Maria, que participou da cobertura jornalística sobre o acidente.
A perda de pessoas importantes para a confecção no Ceará causou impactos, segundo Lêda, principalmente na Avenida Monsenhor Tabosa, grande vitrine da moda cearense que se consolidava como um polo comercial do Estado no período.
“O impacto para o setor de confecções com esse desastre bárbaro da Vasp foi incalculável. Pequenos e grandes empresários saíram daquela Fenit conjugando a prosperidade, venderam toda uma produção de seis meses com total êxito e penetrando nos mais diversos locais do Brasil. O desastre, que abateu um grande número destes de empreendedores, afetou principalmente a Monsenhor Tabosa, que na época era a avenida da moda”, conta.
Ela destaca que o corredor era onde estavam “os que cultivavam a esperança de dias melhores e os que faziam do setor de confecções um dos melhores setores para alavancar a economia do Estado. Eram homens e mulheres, maridos e esposas, filhos de pais unidos em torno do mesmo negócio, que faziam a história desse avanço da economia”.
“E até hoje isso tem reflexos. Muitos abandonaram o segmento marcados pela saudade, por não ter conseguido acompanhar seus amigos e seus familiares nessa trajetória de sucesso. O Ceará estava naquele momento sendo conhecido nacionalmente através da Fenit, e de repente passou a ser conhecido pelas lágrimas bordadas ao longo do caminho entre os compradores, os revendedores, e todo o mercado que a acompanhava essa evolução e desenvolvimento”, pontua a jornalista.
Essa história que ainda impacta depois de quatro décadas é contada no primeiro longa-metragem original da plataforma O POVO+, Voo 168: A Tragédia da Aratanha. A produção faz um resgate memorialístico, a partir das falas e arquivos, de detalhes do acidente. Parte dos materiais de arquivo utilizados no longa são do acervo do próprio O POVO, do departamento de Datadoc.
Isabel Marinho e seu marido, Fernando Marinho, começaram a comprar mercadorias na Monsenhor Tabosa nos anos 1980, local onde abriram a loja Trama, em 1984. Entre uma venda e outra, acabaram ficando amigos de Angélica Catunda, diretora da Angélica Confecções, uma das vítimas do acidente. Isabel narra que estavam todos bastante empolgados com a feira.
“Eles estavam numa alegria, foi a primeira Fenit que eles foram. Angélica era muito amiga, antes de nos mudarmos nós ficávamos hospedados na casa dela. Foi um baque gigantesco, tanta gente, uma pena muito grande. Um outro amigo nosso perdeu a esposa, Gladys, e dizia que a coisa mais triste foi se despedir da mulher no aeroporto e nunca mais vê-la”, relata.
O amigo a que se refere Isabel trata-se do industrial Jeová Accioly, marido de Gladys Accioly, da GB’s Confecções. Uma das filhas do casal, Ana Liady Accioly, conta que o pai estaria no mesmo avião, mas permaneceu em São Paulo por problemas de saúde.
Ela recorda com orgulho da mãe, que era uma empreendedora pioneira no setor e teve papel importante na geração de renda de costureiras, principalmente próximo de onde funcionava a fábrica da confecção, no bairro Parangaba.
“Ela foi muito além da Monsenhor Tabosa. Era uma das maiores no segmento. Fora as confecções, empregava centenas de mulheres na empresa, criou as feiras de moda de Fortaleza, o Ceará Summer Fashion, era visionária”, ressalta.
"A moda do estado do Ceará teve alguns marcos históricos e sem dúvidas o acidente do 168 da Vasp foi uma grande tragédia para o setor da moda cearense. Acreditamos que a nossa moda hoje estaria mais forte se os pioneiros da moda cearense tivessem tido a oportunidade de continuar suas empresas, seus sonhos e suas famílias.""
Conhecida nacional e internacionalmente como um dos principais polos de moda do Brasil, Fortaleza se destaca pela concentração de indústrias têxteis e de confecções, o que atrai turistas e comerciantes de todos os cantos do mundo.
A criação e consolidação de centros de compras se unem aos atrativos turísticos que impulsionam o crescimento da cidade e colocam a capital na rota da moda e do turismo de negócios.
Consagrada como passarela da moda, a Avenida Monsenhor Tabosa se tornou um corredor famoso e durante anos foi o principal centro comercial do Ceará, referência na venda de artigos de moda.
Conforme explica o professor Romeu Duarte, que é especialista em História da Arquitetura e do Urbanismo, a alameda era uma expansão do Centro na direção do Leste e se iniciava no Outeiro da Prainha, um dos quatro morros importantes da Fortaleza antiga.
"Na década de 1970, num momento em que a cidade cresce economicamente e começa a se transformar em metrópole, passa a abrigar uma série de comércios relacionados ao artesanato, e vai se constituindo um núcleo de turismo.”
Na tentativa de sair de mais uma contexto difícil, após a pandemia, o local se reinventa para uma retomada — ainda carente de incentivos. Na avaliação de Daniel Gomes, presidente do Sindconfecções, “a indústria de confecção, mesmo com um cenário tão desfavorável, está de forma heroica buscando ser resiliente.”
Ele declara: “O polo da Monsenhor Tabosa já foi referência de moda em nosso Nordeste e nos últimos anos sofreu muito com a extrema demora do poder público em revitalizar aquele espaço tão rico para os lojistas. A proximidade com o centro da cidade e a região turística faz daquele local uma região favorável para a moda cearense. Acreditamos na retomada econômica do Polo da Monsenhor Tabosa e convidamos a todos os cearenses e turistas a visitarem a região.”
Ethel Whitehurst, conhecida artesã e empresária cearense, herdou da mãe, Yara Whitehurst, o amor pelo trabalho com bordados e rendas. Dona da Yamor da Ethel, teve lojas na Monsenhor Tabosa por 20 anos, mas mudou-se para a Aldeota exatamente por conta da crise que chegou na Avenida.
“Eu pagava um aluguel de R$ 4.500 há oito anos. A proprietária pediu a loja para aumentar o aluguel para R$ 20.000, e não conseguiu alugar. Depois baixou para R$ 12.000, mas veio a crise, antes mesmo da pandemia. Nunca alugaram, e a cada dia fica mais deteriorada. Minha loja era linda, muito bem decorada e com produtos feitos à mão com bordados e rendas”, rememora.
Ethel participou de reuniões sobre o futuro do lugar e explica que muitas ideias surgiram, como polo de gastronomia, incentivo a lojas de artesanato, galerias de arte e cafés, “mas não soube de ações”.
“Como eu sou muito otimista, acredito sim que a Monsenhor Tabosa pode ser um polo de lazer e compras. A Prefeitura deve dar incentivo, como por exemplo não cobrar o IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana) por 10 anos, não cobrar estacionamento Zona Azul e até financiamento com algum tempo de carência e juros baixos para os lojistas iniciarem ou reiniciarem seus negócios”, sugere.
“É preciso ter algum tipo de inteligência movida à sensibilidade para ver aquele espaço, porque durante muitas décadas foi referência. Arquitetura e economia respondem a estímulos e são socialmente determinados, e para essa retomada é necessário haver uma valorização fundamentada numa divulgação importante do que ali se faz, de apoio aos públicos e privados, de atividades econômicas que tenham sustentabilidade”, acrescenta o professor Romeu Duarte.
Sobre o declínio da Avenida como polo comercial nos últimos anos, Isabel Marinho, proprietária da loja Trama, acredita que a alameda vai se recuperar.
“A gente pegou uma época boa, depois foi ficando difícil, muita inflação, mudança de Plano Cruzado, Real. A pandemia veio para coroar uma coisa que já vinha declinando. Mas ainda mantenho na confecção metade das minhas vendas. Nós temos pelejado, e eu tenho impressão que vamos viver um bom momento”, diz.
Márcia Oliveira, presidente da Associação dos Lojistas da Monsenhor Tabosa (Almont), comenta que o local vem em uma crescente, com lojas reabrindo, mas ainda carece de incentivos.
“Em 2021 não tivemos fechamento de nenhuma loja, mas a abertura de cerca de 15. Atualmente são 162 lojas abertas e todo mês recebendo novos lojistas. Era muita loja, comércio, moda, e agora não é mais. 70% de quem procura a avenida hoje é serviço, então docerias, barbearias, salão de beleza, escritórios”, elenca.
“É um local estrategicamente bom, tem segurança, e os aluguéis hoje estão de acordo com o mercado, um preço mais baixo. Em relação ao fluxo de pessoas, a abertura do supermercado Pinheiro, a inauguração do hotel Ibis e de outros hotéis e pousadas aqui perto fazem com que mantenha esse movimento. Embora ainda seja um fluxo pequeno, porque a gente está em baixa estação, mas a gente já vê essa diferença com essas empresas âncora que vieram pra avenida”, reforça Márcia.
Na pandemia, com exceção das lojas que fecharam em virtude da morte dos donos por Covid, segundo a presidente da Almont “todo mundo se reinventou, já vem no digital, trabalhando com delivery. A gente sabe que esse ano é um ano complicado, inflação, política, copa, mas estamos muito na expectativa do fim da pandemia para que o turismo retorne com força”, reforça.
Uma história que se estende no tempo em memórias e marcas ainda presentes. O acidente aéreo do voo 168 da Vasp ocorrido há 40 anos é tema central de Voo 168 - A Tragédia da Aratanha, primeiro longa-metragem do O POVO+, plataforma digital multistreaming do O POVO.
Com direção dos jornalistas Arthur Gadelha, Cinthia Medeiros e Demitri Túlio, o filme traz depoimentos de familiares e amigos de algumas das 137 vítimas, de moradores de Pacatuba e, também, de profissionais de imprensa que cobriram o trágico evento. São, no total, 13 entrevistados no longa.
A produção faz um resgate memorialístico, a partir das falas e arquivos, de detalhes do acidente que ocorreu com o avião da Vasp que colidiu, em 1982, com a Serra da Aratanha, no município de Pacatuba. Parte dos materiais de arquivo utilizados no longa são do acervo do próprio O POVO, O POVO Data Doc.
Voo 168: A Tragédia da Aratanha
Já disponível
Onde: Seção “Séries e Docs” do O POVO+
PODCAST VOO 168 BASTIDORES