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"Precisamos de mães humanas, não perfeitas"
Reportagem Especial

"Precisamos de mães humanas, não perfeitas"

A mãe perfeita é inexistente, mas a procura para atingir esse patamar é real — e pode machucar. Quais são os silêncios em volta da maternidade?

"Precisamos de mães humanas, não perfeitas"

A mãe perfeita é inexistente, mas a procura para atingir esse patamar é real — e pode machucar. Quais são os silêncios em volta da maternidade?
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Esta não é uma matéria contra as maternidades, mas sobre elas. Sobre as facetas que, por mais silenciadas que sejam, continuam a existir. E sobre o direito de questioná-las sem a falsa relação de ódio aos filhos e às crianças.

Achamos necessário destacar isso porque os relatos de mães que se sentem culpadas por se sentirem cansadas, por às vezes quererem um tempinho longe dos filhos são muitos. Mas também são facilmente transformados em um “eu não amo meu filho”. E a verdade é que a dificuldade não está na criança, mas nas exigências da sociedade sobre como as mães deveriam maternar.

O que pedem é a “mãe perfeita”. Incansável, indestrutível, capaz de trabalhar, cuidar de uma criança e cuidar de toda a gestão de uma casa com perfeição (e sem reclamar). A mãe perfeita nunca se irrita, nunca grita e o maior desejo dela é estar constantemente ao lado do filho. Ela está sempre linda, bem arrumada ― e milagrosamente recuperou o corpo anterior à gestação em algumas semanas.

Pela imagem idealizada da maternidade, mulheres se culpam por sentimentos de cansaço, frustração, medo e até arrependimento.(Foto: Ksenia Chernaya/Pexels)
Foto: Ksenia Chernaya/Pexels Pela imagem idealizada da maternidade, mulheres se culpam por sentimentos de cansaço, frustração, medo e até arrependimento.

“A vinda de um novo ser tem um impacto muito profundo”, comenta a psicóloga Maria Tereza Maldonado, autora dos livros Psicologia da Gravidez e Os primeiros anos de vida e pioneira da psicologia perinatal no Brasil. Segundo ela, as mães tendem a experienciar uma mescla de sentimentos: angústias, dúvidas, medo, arrependimento… Mas dificilmente encontram espaços acolhedores para falar sobre isso.

“É importante que isso seja falado, porque senão a mulher tem um sentimento de culpa muito grande”, reforça. “O amor materno também envolve momentos de impaciência, de irritação. No campo emocional não existe OU, existe E.”

Para a autônoma Michelle Lavor, 40, a culpa materna tem aparecido quando o assunto é trabalho. Vinte anos depois da primogênita Letícia, nasceu Maria Luísa, hoje com dois anos. A gestação foi planejada, mas não contou com a intensidade da pandemia de Covid-19 no Brasil. Michelle precisou fechar o escritório de empréstimo consignado e, desde então, ficou desempregada.

Agora, o objetivo é voltar ao mercado de trabalho em 2023. “A gente recebe cobrança da sociedade e até da gente mesma. Quando estou com a Maria Luísa, fico sentindo que deveria estar trabalhando. E quando eu for trabalhar, eu vou me cobrar de estar em casa com ela”, comenta.

Michelle Lavor e as filhas Letícia e Maria Luísa.(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Michelle Lavor e as filhas Letícia e Maria Luísa.

“É bem complicado dividir a sua vida. E o mercado de trabalho é o que mais exige da gente”, destaca. Ela relembra experiências de entrevista de emprego, quando perguntavam se ela era mãe ou tinha planos de ter filhos; e, ao receberem a resposta positiva da maternidade, questionarem a idade da criança. Quanto mais novo, menos chances a mulher tem de ocupar a vaga.

Mas as dificuldades começam bem mais cedo. Quando Michelle tinha 20 anos, ela teve Letícia, a filha mais velha. Cursava Marketing na faculdade, tinha o sonho de se formar, estava “concretizando sonhos”. Mas então engravidou. “Não foi uma gravidez planejada, mas desejada”, diz, já que tinha apoio total dos familiares, apesar da ausência do pai de Letícia.

A gravidez foi de risco e Michelle precisou ser hospitalizada. Por isso, trancou a faculdade no terceiro semestre. Três anos depois, ela tentou retomar o curso, mas não conseguiu concluir porque precisava trabalhar. Essa realidade atinge várias mães, em diferentes instâncias.

 


As mães estão cansadas

A psicóloga Maria Tereza Maldonado lembra que existem diferentes graus de disponibilidade, e que tudo depende da rede de apoio que as mães têm. No caso de Michelle, a primeira gestação foi muito acompanhada pela família, enquanto a segunda teve uma rede de apoio mais limitada ao pai de Maria Luísa.

Maria Tereza Maldonado, psicóloga e escritora.(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Maria Tereza Maldonado, psicóloga e escritora.

“Existem mães, mulheres, que não têm a quem recorrer. Ficam dias, semanas sozinhas com aquele bebê. E na maternidade real, existem altos e baixos. Os filhos não precisam de mães perfeitas, eles precisam de mães humanas”, afirma Maldonado. Na solidão física e emocional, sentimentos de frustração e culpa surgem facilmente, o que pode até prejudicar o relacionamento com o bebê.

Sentimentos aliados ao cansaço físico e mental, às responsabilidades domésticas e às demandas trabalhistas são todos fatores que podem influir em quadros de depressão e ansiedade materna. Durante a pandemia, quando recaiu a elas todo o compromisso com a educação dos filhos, além das outras demandas, os casos aumentaram muito.

É por isso que, em 2021, surgiu a campanha Maio Furta-cor, dedicada à sensibilização para a causa da saúde mental materna.

“Assistimos a um alarmante crescimento dos casos de depressão, ansiedade e, infelizmente, suicídio entre as mães. A pandemia tem deixado um pesado fardo para as mães: a precarização da vida recai sobre elas. Escolas fechadas por mais de um ano, famílias fragmentadas, tripla jornada de trabalho, reduções salariais, desemprego, informalidade, aumento dos índices de violência doméstica e feminicídio são apenas alguns dos fatores que impactam na saúde mental materna”, destaca a campanha em seu site oficial.

“É a romantização da maternidade: a maternidade é sacrifício. A partir do momento que aquela mulher engravida, esse corpo nem é mais dela”, aponta a socióloga e feminista Thais França, pesquisadora do CIEES-ISCTE Portugal. Ela explica como a sociedade santifica a imagem da mãe ― pois seria a principal e única função da mulher na sociedade ―, mas ao mesmo tempo desvaloriza o trabalho de maternar.

“Você tem que estar plena, achar que é a melhor coisa do mundo e que é um amor que você nunca conheceu antes. Mas não falam sobre os seis meses sem dormir, os dois anos sem beber (álcool), a falta de tempo… É a expectativa de que a maternidade é um amor tão incondicional que não se pode criticar.”

Aliás, há outro problema. A imagem da mãe perfeita geralmente é branca, de classe média, cisgênero e vive um relacionamento heterossexual. O que se pede dela, portanto, desconsidera inclusive as múltiplas realidades de mulheres de diferentes cores, classes sociais, identidade de gênero e orientações sexuais. Como essas mulheres vão se encaixar no ideal de “mãe perfeita”?

 

 

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Não-maternidade

Tão silenciadas quanto as mães cansadas, estão as mulheres que não querem ser mães. “(A sociedade entende que) ser mulher é ser mãe. Existe quase essa relação direta”, afirma Thais França. Durante uma pesquisa sobre a experiência das mulheres na pandemia, a socióloga pode ouvir relatos das que não são mães.

Daí, percebeu a carga negativa com que essas são vistas. “Mulheres que não tinham filhos eram discriminadas. Nada importava, porque ela não sabia o que era ter crianças em casa durante a pandemia. As mulheres que não têm filhos são silenciadas. Elas não podem reclamar de nada. Elas não podem estar cansadas”, descreve.

Thais França, socióloga e feminista.(Foto: Hugo Alexandre Cruz)
Foto: Hugo Alexandre Cruz Thais França, socióloga e feminista.

Acima de tudo, elas são vistas como egoístas, afinal, a contribuição que a sociedade vê nas mulheres é maternar. E quem opta por não maternar, por qualquer motivo que seja, vira egoístas, louca, incapaz de perceber os próprios desejos.

Quem explica é a advogada Patrícia Marx, criadora da rede Laqueadura Sem Filhos, que luta pelo acesso a métodos contraceptivos como laqueadura e salpingectomia para mulheres sem filhos a partir de 25 anos ― tal qual é permitido por lei.

Patrícia nunca sentiu vontade de ser mãe e isso ela percebeu desde pequena. “Sempre fui das meninas que gostavam de brincar de boneca. Mas não gostava de carregar a boneca de um lado pro outro…”, relembra, destacando que o carregar é uma das principais mudanças na vida de uma mulher-mãe.

Patrícia Marx, advogada.(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Patrícia Marx, advogada.

Irmã mais velha de quatro irmãs, a advogada cresceu ouvindo que seria uma ótima mãe. E quando descobriu como os bebês eram feitos, adiou ao máximo o início da vida sexual por medo da maternidade. “Eu namorava as pessoas e terminava. Era o medo, ou melhor, a certeza de que não queria ser mãe.”

Desde então, Patrícia já ouviu de tudo: que se arrependeria, que morreria sozinha, que o esposo iria querer um filho e procuraria outra pessoa, até que ela odiava crianças. “Eu não odeio crianças. Odeia criança quem maltrata criança”, rebate.

Pela experiência, ela se aprofundou na pesquisa dos direitos reprodutivos e criou Laqueadura Sem Filhos. Com 75,2 mil seguidoras, a advogada já recebeu diversos relatos. Um foi de uma mulher de 20 anos, que casou cedo e o esposo e a sogra sonhavam com um filho/neto. Já ela sonhava em fazer faculdade. Pressionada, teve o bebê muito nova e não conseguiu seguir seu plano de vida. Patrícia lembra com dor da pergunta que a seguidora a enviou: “Eu estou vivendo o sonho de outras pessoas. Quando eu vou viver o meu?”

Outra seguidora, com 26 anos, contou da vez em que foi em cinco médicos para conseguir a autorização para uma laqueadura. E não só recebeu negativas seguidas, como ouviu de um dos profissionais: “Vamos fazer bebê!”. Houve outro relato, ainda, de uma mulher que saiu do consultório pedindo laqueadura com guia para o psiquiatra, porque o médico a chamou de doida.

“A maternidade não é ruim. O ruim é como a sociedade enxerga e coloca a maternidade”, lamenta Patrícia. Casada e sem filhos, Patrícia encontra felicidade e satisfação como pesquisadora e mobilizadora. O que o futuro reserva para ela é uma incógnita, mas a verdade é a seguinte: isso importa somente a ela.

 

 

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