O que define a importância de um patrimônio histórico e cultural? As respostas são múltiplas e passam pelo tempo em que ele segue de pé, resistindo às intempéries da vida urbana, pelos usos que ele adquiriu, pelos papéis que cumpre na dinâmica de uma cidade. O ano de 2022 marca os 64 anos do Cine São Luiz e, no próximo dia 25, serão comemorados os sete anos da reabertura do equipamento como ele existe atualmente, enquanto Cineteatro. Na data, o espaço receberá o lançamento do livro "Cineteatro São Luiz", produção da Terra da Luz Editorial com apoio institucional do equipamento, acompanhada de performance cênico-musical da atriz Christiane de Lavor e do pianista Rafael Maia. Com uma trajetória de altos e baixos e desequilíbrios entre progresso e preservação, o São Luiz, hoje, assume o papel de ser um espaço crucial para a cultura cearense.
A história da construção do São Luiz guarda em si a parte contraditória do importante equipamento. Apesar de ter sido um imóvel, ele mesmo, ameaçado por esvaziamentos de função e descontinuidades ao longo das décadas, o cinema nasceu com a intenção de ser um marco da “modernidade” e do “progresso” alencarinos na primeira metade do século XX.
Para tanto, o Grupo Severiano Ribeiro, responsável pela construção do equipamento, decidiu por demolir o imóvel que anteriormente ocupava o terreno: o Cineteatro Polytheama, um cinema dos anos 1910 que era de propriedade da empresa. Aberto em 1916, o local funcionou até 1938.
“O Polytheama, na verdade, não nasceu no grupo Severiano Ribeiro, este adquiriu o cine depois e o manteve porque existiam pessoas (passadistas) que gostavam da arte da mímica e o Polytheama só passava filmes mudos”, contextualiza o jornalista e memorialista Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez. “Quando ficou resolvido que iria ser construído o São Luiz, o melhor local seria aquele no qual estava instalado, além de outros equipamentos, o Polytheama”, segue.
Apesar da gênese do projeto do Cine São Luiz ser datada de 1938, a inauguração do equipamento só ocorreu 20 anos depois. Há uma série de motivos apontados por pesquisadores para a demora. O pesquisador e especialista em cinema Ary Bezerra Leite, por exemplo, defendia que o Grupo Severiano Ribeiro “freou” o projeto por conta da inauguração de outro cinema, o Cine Diogo.
Nirez lembra, também, do contexto mundial que assolava o período dos anos 1940: a Segunda Guerra Mundial. “A demora na construção do Edifício e cinema São Luiz deve-se à guerra, iniciada em 1939 e que durou até 1945”, avalia.
No O POVO de 10 de setembro de 1948, a obra já decenária era alvo de cobranças diretas. “A inauguração recente do Edifício Jangada, cujo início data de setembro de 1945, ensejou motivos aos fortalezenses para estabelecer um contraste entre a sua rápida construção e a morosidade ou paralisação dos serviços do cine São Luís”, afirmava texto da época. “Há quase dez anos que afronta os zelos municipais e a paciência do público, na Praça do Ferreira, a nova casa de diversões do sr. Luís Severiano Ribeiro. (...) O São Luís precisa ser concluído. E a Prefeitura tem obrigação de forçar pelos meios que dispõe, o acabamento do mesmo. Não há mais por que esperar”, ressaltava.
A inauguração oficial ocorreu em 26 de março de 1958. "Até que, afinal, inaugura-se o São Luís" foi a frase de abertura da notícia sobre o fato no O POVO. “Não se sabe, sequer, o motivo real de tão inexplicável retardamento. Mas o povo cearense há-de sentir-se compensado da prolongada espera, diante dos requintes de bom gosto e distinção do seu maior e melhor cinema que é também um dos mais belos e imponentes do Brasil", segue o texto.
O “passadismo” do antigo cinema que somente exibia os ultrapassados filmes mudos, enfim, deu lugar à beleza, elegância e bom gosto do “maior e melhor cinema” do Estado. “O Cine São Luiz é o registro histórico de permanência de um desejo de ser moderno, mas também de pertencer a um determinado grupo político e econômico de uma época”, avalia Adson Pinheiro, pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM) da Universidade Federal do Ceará.
“Ao longo dos anos, nos grandes centros urbanos, foram sendo preservadas edificações que tratam muito mais de grupos que dialogam mais com a perspectiva de uma ideia de moderno em contraposição ao popular ou mesmo o constituído para atender grupos sociais mais populares. Esse desejo de se modernizar ainda é bem presente, e o desejo de se espelhar pelo novo, e pelo que se relaciona com uma ideia capitalista de moderno é cada vez uma constância”, segue Adson.
Quando: quarta, 25, às 19 horas
Onde: Cineteatro São Luiz (R. Major Facundo, 500, Centro)
Compreendendo as contradições de um equipamento hoje histórico e preservado ter sido construído somente com a demolição de outro ainda mais antigo, o professor Sebastião Ponte, do curso de História da Universidade Federal do Ceará, ressalta a importância do São Luiz a longo prazo.
“Em que pese o Polytheama ter sido demolido, este o foi para dar lugar a um outro cine de maior expressão arquitetônica e artística e que, com o tempo, também se tornou um dos maiores bens culturais e históricos de Fortaleza”, avalia o professor. “Hoje ele é um dos poucos equipamentos históricos da cidade que estão a salvo do ultrajante descaso para com a memória histórica da Cidade”, segue.
A trajetória do equipamento, porém, foi atravessada por períodos que ameaçaram a sua principal função, a cultural. “Ele foi inaugurado em 1958 e, em 1960, chega em Fortaleza a televisão. Era muito mais cômodo assistir em casa a TV do que ter de se vestir para sair à noite para ir ao cinema”, exemplifica Nirez.
Sebastião, por sua vez, lembra dos rumores de que a venda do imóvel para uma igreja evangélica estaria sendo cogitada. Boatos do tipo ocorreram tanto na década de 1990 quanto nos anos 2010. Um movimento relevante de salvaguarda foi dado em 1991, quando o prédio do São Luiz foi tombado como patrimônio histórico e cultural pelo governo do estado do Ceará na gestão Tasso Jereissati. Na mesma década em que ele foi oficialmente preservado, cinemas contemporâneos a ele, como o Cine Diogo e o Cine Jangada, foram fechados, o que ocorreu entre 1996 e 1997.
“No período de 1990, houve na cidade de Fortaleza, acompanhando um movimento político e cultural brasileiro, a reforma dos centros urbanos. Podemos acompanhar ao longo dessa história, um processo que se chamou de ‘requalificação de espaços públicos’. O São Luiz de certa forma foi beneficiado por essa conjuntura, sobretudo pelo potencial cultural e turístico, desenvolvido pelas apropriações realizadas pelas pessoas”, contextualiza o pesquisador Adson Pinheiro.
O tombamento foi fruto de uma articulação entre profissionais do cinema, cinéfilos e interessados na arte e atores públicos. Apesar da movimentação em prol do São Luiz, ele sofreu com a queda de público, fruto do esvaziamento do Centro da Cidade ao longo dos anos 2000 apesar da “requalificação”.
Em 2003, houve possibilidade de compra do imóvel pelo Centro Cultural Banco do Nordeste, mas isso não se cumpriu. Em 2005, o São Luiz chegou a anunciar fechamento por inviabilidade comercial, mas no mesmo ano o equipamento foi arrendado pela Fecomércio e pelo Sesc.
A previsão era um contrato de 10 anos, mas ele acabou na metade. Nos cinco anos de gestão Fecomércio/Sesc, o São Luiz teve processo de desapropriação por interesse público autorizado pelo então governador Lúcio Alcântara (em 2005) e teve os andares de 5 a 13 do prédio anexo ao cinema comprados para instalação da Secult no local (2008).
Os gestos de interesse público pelo equipamento culminaram na compra oficial dele pelo Governo, em abril de 2011. “Foi um alívio quando realmente se efetivou a compra e a promessa de que o mesmo continuaria como um cineteatro após ampla reforma e restauração”, afirma Sebastião. A reinauguração oficial foi em 22 de dezembro de 2014, um ano após o início do restauro, e o filme escolhido para a sessão especial foi “Anastácia, A Princesa Esquecida”, o mesmo da abertura ao público geral em 1958.
“A família garantiu a venda ao Estado pois havia o desejo de que o funcionamento do prédio fosse destinado para fins culturais. O tombamento foi responsável pela sua permanência física, mas sua vitalidade só foi e é garantida pelo seu uso. Só os usos garantem a sobrevivência e os sentidos de qualquer patrimônio cultural”, aponta Adson.
“Não podemos deixar de destacar que, para a permanência do Cine São Luiz, foi determinante o desenvolvimento de políticas culturais voltadas ao uso do espaço pela população. Ao contrário do que acontece em alguns casos, o espaço não foi somente restaurado, foi pensado como um lugar relevante dentro da programação cultural da cidade, diurnas e noturnas, no Centro da cidade, isso reforça o papel do poder público na preservação desses bens”, segue o especialista.
Pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM) da Universidade Federal do Ceará, Adson Pinheiro, defende mais diálogo entre o cineteatro e demais equipamentos do Estado.
O POVO - O São Luiz é, hoje, consolidado, com programação de múltiplas linguagens majoritariamente promovida a preços acessíveis, sendo um dos "pólos" de movimentação no Centro em meio a constantes tentativas de "requalificação" do espaço. Que desafios você observa que atravessam o equipamento neste atual contexto?
Adson Pinheiro - A necessidade de investimentos mais efetivos na preservação do patrimônio é indiscutível, e o Cine Teatro mostra como essas aplicações ao patrimônio são importantes. Um dos desafios é a manutenção dos recursos humanos e financeiros na mudança de gestão e de governos, sobretudo possuir um orçamento próprio e continuar o diálogo com os mais variados fóruns da cultura, principalmente com o audiovisual e o teatro cearense, devido a atual natureza do equipamento.
Ademais, é essencial um maior diálogo com o entorno formado por comércios e outros equipamentos culturais, e uma maior compreensão do prédio enquanto patrimônio da cidade, sendo necessário também chegar aos lugares mais periféricos, como a realização de projetos de educação patrimonial do cine teatro até os bairros. Ainda, para quem visita o edifício, sente falta de informações da história do lugar construída ao longo do tempo. Por fim, deixar mais claro e definir o papel social do Cine Teatro São Luiz com as populações em situação de rua, como pode, por exemplo, desenvolver um programa que abrace esse grupo social.
Como integrar também suas memórias junto ao equipamento e como pensar uma programação que os integre à política cultural de direito à memória, à cultura e à cidade. Como o equipamento poderia se integrar a uma política pública que pense esta população de uma forma inclusiva, e não com uma perspectiva eugenista ou atenda uma construção de uma ideia de “revitalização” que apaga memórias e identidades? Qual o papel do São Luiz neste cenário? Qual o papel do patrimônio neste contexto?