Carros submersos, ruas alagadas, rios que transbordam, crateras que se abrem. Há décadas, notícias e capas de jornal chamam atenção para os mesmos problemas em Fortaleza: os impactos de grandes chuvas para a população, principalmente a parcela mais vulnerável.
Há 25 anos, em abril de 1997, a Cidade vivenciou a maior chuva do século XX: uma precipitação de 270,6 milímetros (mm) entre as 3 horas da madrugada e as 13 horas do dia 24 daquele mês. O leito dos rios Maranguapinho e Cocó transbordaram e inundaram residências, assim como o canal do bairro Jardim América.
Em um só dia, 403 pessoas ficaram desabrigadas, 2.830 casas foram alagadas e foram registrados 95 desabamentos. Além disso, um homem de 41 anos morreu e duas crianças ficaram desaparecidas. Além desses, diversos outros relatos desse dia compõem reportagem do O POVO publicada no dia 25 de abril de 1997, o dia seguinte à “chuva do século”.
Passados os quatro primeiros meses de 2022, Fortaleza já era, até 3 de maio, o município cearense com maior volume de chuvas desde o início do ano, de acordo com o Calendário de Chuvas da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme).
Entre março e abril, foram 58 dias de chuva na Capital, sendo 40 deles consecutivos — entre 3 de março e 11 de abril. Durante esse período, se considerarmos a média diária dos 12 postos da Funceme, choveu 324.8mm
Entre esses dois eventos — e antes de 1997 —, outras grandes chuvas ocorreram e deixaram vestígios de suas forças. Diferentes em intensidade e duração, esses momentos têm em comum o fato de causarem impactos no dia a dia, no bem-estar e na qualidade de vida dos fortalezenses.
É o que mostra o levantamento da Central de Jornalismo de Dados do O POVO (DATADOC), com base em séries históricas de índices pluviométricos dos últimos 25 anos e ocorrências da Defesa Civil para os períodos chuvosos.
Ao longo de março e abril deste ano, a Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (COPDC) de Fortaleza registrou 79 inundações na Cidade, sendo a maioria delas em abril (76% — ou 60 ocorrências). Foi no bairro Parque Genibaú, localizado às margens do Rio Maranguapinho, que ocorreram 11 dessas inundações de abril.
Nesses dois meses, a COPDC atendeu 709 ocorrências. A maioria delas (64,5%) estava relacionada a riscos de desabamento. Ao todo, foram 457. Além disso, foram registradas 60 ocorrências por alagamento e 68 por desabamento, entre outras tipologias, incluindo incêndio, solapamento e deslizamento.
As margens dos médios e baixos cursos tanto do rio Maranguapinho quanto do rio Cocó, em Fortaleza, são áreas planas sujeitas a inundações periódicas e, por isso, são consideradas de risco. Mesmo assim, são intensamente ocupadas, "contribuindo para a ocorrência de impactos socioambientais associados a episódios pluviométricos extremos", explicam os pesquisadores Jander Barbosa Monteiro e Maria Elisa Zanella em estudo sobre o tema.
Ao longo do processo de crescimento e expansão de Fortaleza, a Cidade foi perdendo sua área verde e vendo crescer a de solo impermeável. É justamente essa impermeabilização do solo, processo que reduz as condições de infiltração das águas pluviais, que o professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), Newton Becker, aponta como “o grande vilão das enchentes”.
Com a piora da infiltração e o aumento do escoamento superficial, incrementa-se a ocorrência de alagamentos. E um “forte indicador” de que a cidade tornou-se mais impermeável, segundo o professor, é a redução da cobertura vegetal.
Em Fortaleza, se no período de 1813 a 1986 mais da metade do território correspondia a cobertura vegetal, ela passou a representar cerca de 1/5 no período de 2004 a 2014, segundo o documento “Fortaleza hoje”, do Projeto Fortaleza 2040, produzido pelo Instituto de Planejamento de Fortaleza (IPLANFOR).
O docente afirma que essa redução da cobertura vegetal indica um aspecto cultural, uma vez que todas as construções são baseadas em uso de concreto, o que leva a esse problema. “Tudo isso contribui para agravar o problema, para o aumento da temperatura. Não estamos nos adaptando. Fortaleza não é diferente”, afirma.
E, para o futuro, a previsão é que os fenômenos extremos, tanto chuvas quanto secas, tornem-se ainda mais extremos e mais frequentes. É diferente de quando se trabalha “no meio” e se consegue ser mais assertivo.
“Estar preparado para chuva e para seca é mais complicado, porque exige uma preparação muito maior. E esse é o grande desafio das cidades do mundo inteiro: conquistar essa resiliência”, analisa Becker.
Maria Elisa Zanella, professora do departamento de Geografia da UFC e vice-coordenadora do mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade (Prodema), cita o aumento de áreas permeáveis com áreas verdes como um aspecto que pode ajudar na diminuição dos alagamentos e inundações.
“Também podem ser utilizados pavimentos mais permeáveis: pavimentos intertravados, por exemplo, são melhores que o asfalto”, acrescenta Zanella. Já Becker aponta a possibilidade do uso de espaços públicos — como calçadas, ruas e praças — para o armazenamento de água.
“Seriam as recomendações para um futuro que tem que começar a ser planejado agora. Quem tiver uma visão de futuro pensando em um bem comum vai partir na frente, porque, quando falamos de alagamento, por mais que você esteja na cobertura do seu prédio, um dia você vai ter que sair”, afirma.
Além de gerar um problema em relação à quantidade de água, a impermeabilização do solo também compromete a qualidade desse recurso. Isso porque, com o escoamento superficial, essa água leva toda a sujeira acumulada nas ruas da cidade, proveniente de diversas fontes, para os rios e para o mar. É a chamada poluição difusa.
Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, Newton Becker destaca o potencial da vegetação de filtrar a água da chuva. “Mas isso é pouco, a poluição urbana é muito desafiadora”, pondera. Ele indica a possibilidade de se utilizar os jardins filtrantes junto a estações de tratamento para essa água.
Cada lugar tem suas especificidades que devem ser consideradas. “No contexto de Fortaleza, em que 100% do território é urbano e passível de urbanização, esse vai ser um desafio que vamos enfrentar. Se quisermos praias limpas, lagoas limpas, a cidade inteira tem que ser pensada dentro desse projeto integrado de manejo de água”, complementa.
Em todo o último mês de abril, um único dia concentrou 13% do total de chamados recebidos pela Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil de Fortaleza. Foram 53 ocorrências registradas apenas no dia 30, das quais 70% foram devido a inundações, segundo os relatórios diários da pasta. É como se uma a cada oito ocorrências no mês tivesse sido naquele último dia.
A chuva daquele sábado desordenou memórias importantes para o professor de Filosofia Francisco Felipe Gomes Santiago, 29, morador do Parque Genibaú. A água tomou conta da casa e destruiu móveis e documentos. “O que mais me pesou foi ver o meu diploma de graduação encharcado de lama”, declara.
Primeiro da família a concluir uma graduação em uma universidade federal, Felipe lamenta a perda. Dezenas de outros certificados, “comprovantes de mais de 15 anos de estudos”, também ficaram para trás.
O professor mora no bairro há 25 anos e conta que já presenciou outras grandes chuvas. Viu comerciantes locais perderem mercadorias, jogarem fora alimentos, móveis, roupas e “toda espécie de aparelhos danificados”. Naquela de 30 de abril, diz ter percebido a água subir mais rapidamente.
Aquela madrugada também foi repleta de preocupação para Nerice Carioca, 28. Enquanto chovia e o nível da água aumentava na rua onde a assessora de comunicação mora, ela colocou panos de chão pela casa na tentativa de amenizar a entrada da água pela varanda.
“Deixei a madrugada rolar, tentei dormir o que pude. Você não consegue muito bem, gera uma ansiedade, gera medo, mas, enfim, só limpei pela manhã. A minha sorte é que tenho um aspirador de água e pó, e isso me ajuda bastante, mas a casa fica bem suja”, relata.
Nerice mora desde 2019 no Novo Mondubim e conta que é comum que, a cada temporada de chuva, a rua em que mora e as paralelas fiquem alagadas. “O final da minha rua é um afluente do rio Maranguapinho, um canal, e, como a rua é uma descida, a água sobe muito rápido. Desce muito rápido também, mas não tem escoamento suficiente para que não suba”, afirma.
O lixo nas ruas, a proximidade do rio e o terreno úmido da região são problemas que a assessora aponta como possíveis influências para a recorrência dos alagamentos.
Na avenida José Bastos, no bairro Couto Fernandes, a chuva também surpreendeu Carlos Eduardo de Freitas Melo, 39, proprietário da Kasa do Farol, próximo à Praça Dr. Juracy Magalhães. Há cinco anos no atual endereço, ele já sabia que a região sempre fica alagada quando chove, mas tem percebido diferença desde o início das obras de requalificação da avenida.
No último dia de abril, todo aquele ponto da avenida ficou tomada por água, de uma calçada à outra. Em um vídeo gravado pelo vizinho de Carlos Eduardo, é possível ver o cenário de dentro de uma das lojas da região, com a água passando da altura do tornozelo.
“Antes dificilmente entrava água dentro das lojas. Agora, depois da obra, (com) qualquer chuvinha entra água nas lojas. Da última vez, tive prejuízo de algumas máquinas em que a força da água derrubou de cima de uma mesa”, conta. Somado a isso, há o acúmulo de lixo. “Todo santo dia o caminhão vem recolher o lixo. Duas horas depois que ele sai, está do mesmo jeito”, relata.
O POVO procurou a Secretaria Municipal da Infraestrutura (Seinf) na quarta-feira, 4 de maio, por e-mail enviado à assessoria de comunicação da pasta. Foram enviados questionamentos sobre a obra de requalificação da avenida José Bastos, como quais pontos da avenida contam com galerias de drenagem e se há relatos e/ou reclamações da população sobre essa obra, entre outros, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem.
A problemática das enchentes está diretamente relacionada à forma como a Cidade foi ocupada ao longo do tempo e a questões culturais. Newton Becker, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, destaca que as enchentes são eventos naturais e que chuvas mais intensas sempre ocorreram.
“O problema é que ocupamos o lugar errado, lugares que já são naturalmente vulneráveis a enchentes. Todos os rios têm uma flutuação do nível da água quando chove, para cima e para baixo, e aí entra a questão do acesso à moradia, à terra, de uma política pública que não aborda essa questão de forma eficiente ao longo do tempo”, afirma o docente.
O professor aponta essa realidade como uma característica de cidades dos países em desenvolvimento, “que realmente têm um planejamento que não consegue essa inclusão totalmente” e acrescenta que, geralmente, esses lugares associados ao risco também estão associados à vulnerabilidade social.
Esses pontos também são citados por Maria Elisa Zanella, professora do departamento de Geografia da UFC, e a resolução das enchentes como um problema passa por também encará-los.
Sobre o que as gestões atuais e futuras podem ter como lição para que no futuro seja diferente, a docente cita dois aspectos: “prestar mais atenção nas áreas de risco — planejar mais o uso e ocupação do território — e estabelecer políticas públicas de diminuição da vulnerabilidade da população”.
No dia 9 de abril, a Prefeitura de Fortaleza realizou uma ação preventiva com quase 200 famílias da Ocupação Pacífica, no Vicente Pinzón, que foram retiradas e levadas para abrigos em duas escolas municipais, ou para casa de parentes e amigos, na modalidade de Abrigo Solidário.
Segundo informações concedidas pela Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (COPDC) de Fortaleza no dia 22 de abril, a maioria delas já havia sido cadastrada no Programa de Locação Social e nos programas habitacionais oficiais.
Por e-mail, a pasta afirmou que “as ações de prevenção para a quadra chuvosa, como a limpeza dos recursos hídricos e o monitoramento das áreas de risco, reduziram consideravelmente os riscos para a população”. Até aquele dia 22, não houve registro de óbitos ou desaparecidos em virtude das chuvas.
Também apontou que o monitoramento dos rios Cocó e Maranguapinho, feito em parceria com a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), permitiu a avaliação constante do nível da água e o acompanhamento da situação dos moradores das áreas ribeirinhas, "evitando maiores transtornos”. “Dois riachos, o Maceió (Varjota) e o Coaçu (Sabiaguaba) transbordaram e atingiram as comunidades do entorno, mas, sem prejuízos graves”, acrescentou.
No dia 21 daquele mês, moradores da comunidade Saporé, localizada no bairro Mucuripe, às margens do Maceió, realizaram um protesto para reivindicar moradia digna e assistência social às famílias após cheias do riacho.
Serviço
Em caso de qualquer risco, a Defesa Civil de Fortaleza deve ser acionada via Ciops, por meio do 190. Os agentes trabalham em regime de plantão 24 horas.
Para essa reportagem, a Central DATADOC consultou dados da Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (COPDC) de Fortaleza, da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) e documento do Projeto Fortaleza 2040, produzido pelo Instituto de Planejamento de Fortaleza (IPLANFOR).
Como forma garantir a integridade e confiabilidade deste material, disponibilizamos a metodologia detalhada do projeto, nossas análises e o conjunto de códigos desenvolvidos para essa reportagem no nosso perfil no GitHub. No repositório também é possível acessar as bases utilizadas na apuração de outras reportagens desenvolvidas pela Central de Jornalismo de Dados do O POVO.