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Uma flor que evoluiu para viver na cidade
Reportagem Especial

Uma flor que evoluiu para viver na cidade

Um estudo de escala mundial demonstra como o trevo-branco encontrado em cidades se adaptou às condições ambientais urbanas e abre espaço para se discutir ainda mais amplamente os impactos do ser humano na evolução (e extinção) das espécies

Uma flor que evoluiu para viver na cidade

Um estudo de escala mundial demonstra como o trevo-branco encontrado em cidades se adaptou às condições ambientais urbanas e abre espaço para se discutir ainda mais amplamente os impactos do ser humano na evolução (e extinção) das espécies
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No capítulo IV do livro A Origem das Espécies, Charles Darwin afirma sobre a seleção natural: “Não vemos nada dessas mudanças lentas em andamento, até que o ponteiro do tempo tenha marcado o decorrer das eras.”

Flores de trevo branco em Oostende, Bélgica.(Foto: Hans Hillewaert / Wikicommons)
Foto: Hans Hillewaert / Wikicommons Flores de trevo branco em Oostende, Bélgica.

Com isso, o naturalista quis demonstrar como a evolução das espécies leva milhares, às vezes milhões, de anos para ocorrer. E, na nossa condição de observadores, nos restava apenas analisar os resultados desta adaptação milenar. Mas Darwin não contava ― ou pelo menos não poderia, dado o contexto em que vivia ― com a força do impacto humano no ambiente.

E uma prova disso vem de uma planta pequenina de flores com pétalas esbranquiçadas e às vezes com a corola pintada de um leve rosa no interior: o trevo-branco (Trifolium repens). Essa espécie cosmopolita "Ou seja, presente em praticamente todo o mundo." conseguiu evoluir para se adaptar à vida urbana. O mais interessante, no entanto, é que essa evolução foi observada em várias cidades do globo, indicando duas coisas.

Primeiro que a mesma espécie de planta, em diferentes cidades, encontrou uma forma similar de se adaptar ao ambiente urbano. Segundo que essas cidades acabam tendo características ambientais muito semelhantes entre si. É dizer que São Paulo capital é mais parecida ambientalmente com Toronto (Canadá) do que com o entorno rural paulista.

Isso porque as cidades tendem a ter menos vegetação, serem mais quentes e mais poluídas. Essas condições ambientais, provocadas pelo cenário de concreto, cheio de prédios e recheado de seres humanos, impõem aos organismos uma série de desafios. E enquanto alguns conseguem (ou não) adaptar hábitos, outros indicam uma real evolução às urbes.

 

 

Termos importantes a partir de agora

 

 

O caso dos trevos-brancos

Apesar de serem plantas pequenas e aparentemente inofensivas, os trevos-brancos têm um mecanismo de defesa poderoso contra herbívoros. Elas produzem cianeto de hidrogênio (HCN), uma substância que, se ingerida em excesso, pode até intoxicar os animais que a comem.

Essa intoxicação pode causar uma doença chamada timpanismo bovino, um acúmulo anormal de gases nos bois. É claro que o timpanismo só é desenvolvido com o consumo exagerado de trevos-brancos ― a planta é muito utilizada para alimentação de gado no Brasil, com a recomendação de sempre ser ingerida com mais gramíneas.

Trevos-brancos em Maui, Pulehu.(Foto: Forest ENTITY_amp_ENTITYKim Starr / Wikicommons)
Foto: Forest ENTITY_amp_ENTITYKim Starr / Wikicommons Trevos-brancos em Maui, Pulehu.

O ácido cianídrico, outro nome para o HCN, também ajuda a planta a resistir melhor ao estresse hídrico (quando há muita demanda por água, mas pouco do recurso).

Mas os trevos-brancos das cidades não se deparam com vacas sedentas por pastar. Produzir HCN só por produzir, aos poucos, virou um gasto de energia desnecessário. Assim, aqueles trevos-brancos que geneticamente produziam menos ou nenhum HCN foram se dando muito melhor na vida na cidade, o que favoreceu a seleção natural e garantiram uma evolução da espécie urbanizada.

É aqui que entram em cena 288 cientistas do projeto Global Urban Evolution (GLUE). Reunidos em 2018 por uma simples postagem no Twitter, os pesquisadores coletaram amostras de trevos-brancos em 160 cidades e áreas rurais de 26 países. Entre eles, seis brasileiros, das universidades federais de Mato Grosso (UFMT), Santa Maria (UFSM) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Trevo-branco em Bhutan.(Foto: Vinayaraj / Wikicommons)
Foto: Vinayaraj / Wikicommons Trevo-branco em Bhutan.

Foram mais de 110 mil amostras de trevos, com o sequenciamento de 2.500 genomas das plantas. No Brasil, as cidades que cederam amostras foram Curitiba (PR) e Santa Maria (RS), já que a espécie da planta é mais presente nas regiões sul e sudeste do País.

Com isso, os pesquisadores identificaram que em 39% das cidades (62 das 160) a produção de HCN por trevos-brancos era menor que nas populações rurais da espécie. Ao mesmo tempo, 8% (13 de 160) encontraram justamente o contrário: nessas 13 localidades, os trevos-brancos estavam produzindo mais HCN. Os resultados foram publicados em março de 2022 na revista científica Science.

 

 

A evolução debaixo dos nossos narizes

Em setembro de 2020, o biólogo evolucionista Menno Schilthuizen "Autor do livro "Darwin Comes to Town" (Darwin vem à cidade, em tradução livre)." apresentou um TED Talk (vídeo abaixo, com legenda em português) sobre como animais e plantas têm evoluído para sobreviver às cidades. “Os biólogos hoje em dia estão começando a perceber que as cidades são, atualmente, as ‘panelas de pressão’ da evolução. Esses são os lugares onde animais e plantas selvagens estão evoluindo sob o nosso olhar muito rapidamente para se adequar a essas novas condições urbanas”, descreve.

O caso dos trevos-brancos, assim como de outras plantas e animais, mostra o quão intensa é a influência humana na vida terrestre. Desde os impactos drásticos das cidades no ambiente, até as transformações climáticas ― o aquecimento global ―, tudo em questão de dois séculos.

As cidades viraram um habitat, sendo muito mais similares entre si ao redor do globo do que com os respectivos entornos rurais. E assim como elas cresceram velozmente, alguns seres vivos precisaram se adaptar tão rápido quanto. Vários falharam e entraram em extinção; outros seguem resistindo e tentando a sobrevivência.

O coordenador do projeto GLUE e da pesquisa sobre os trevos-brancos, doutor Marc Johnson, dá alguns exemplos de espécies que evoluíram para o habitat urbano:

 

Ao O POVO+, Marc explica que estudos sobre evolução urbana são essenciais para desenvolvermos ações de proteção mais efetivas. Ao saber quais espécies conseguem responder ao ambiente urbano, é possível focar naquelas que não se adaptam tão bem.

Ao mesmo tempo, pesquisas do tipo identificam espécies "perigosas" para a saúde humana. Os mosquitos como o Aedes aegypti, por exemplo, são vetores de doenças fatais para os humanos: dengue, zika, chikungunya… E estudos já têm demonstrado a adaptação desses insetos para o ambiente urbano.

Responder como eles se adaptam é dar um passo a mais para conter a proliferação deles e evitar epidemias.

 

 

Trevo-branco e aquecimento global

Por falar em emergência climática, a planta consegue se destacar em outra pesquisa, dessa vez brasileiríssima. A bióloga Amanda Alencar, doutoranda na Escola Nacional de Botânica Tropical (do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro), propõe usar o trevo-branco como um modelo para identificar os efeitos do aquecimento global em herbáceas.

A caixa preta é a estação climática. Dentro das câmaras acrílicas (utilizadas para induzir alterações climáticas) estão os sensores (copo branco) que fazem as medições a cada 15 minutos, gravando os dados de temperatura e umidade.(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal A caixa preta é a estação climática. Dentro das câmaras acrílicas (utilizadas para induzir alterações climáticas) estão os sensores (copo branco) que fazem as medições a cada 15 minutos, gravando os dados de temperatura e umidade.

Para isso, a bióloga está monitorando como os trevos-brancos têm reagido a variações de temperatura e umidade do ar por um ano. Ela usa um chip, mais ou menos do tamanho de uma mão espalmada, alimentado com um código específico. Ele é responsável por registrar os dados, que então serão comparados com a observação em campo.

"Nós temos grupos de trevos nas câmaras (grupos tratados) e grupos de trevo fora das câmaras (grupos controle). Dessa forma, conseguimos comparar o crescimento, alterações morfológicas (área foliar, comprimento de pecíolo) e fenológicas (número de folhas por mês, fases reprodutivas e vegetativa) dos dois grupos. Além de cruzar com os dados climáticos, para tentar obter uma correlação entre eles", especifica a pesquisadora.

Pesquisadora Amanda Alencar em trabalho de campo.(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Pesquisadora Amanda Alencar em trabalho de campo.

Com essas informações em mãos, ela verificará se o trevo-branco responde às variações. O próximo passo, caso essas respostas existam, será validar a espécie como um modelo de fato, em outras situações ambientais e estatísticas. “Esse modelo é dentro do quadrado de herbáceas tropicais e temperadas”, reforça.

Até chegar lá, o caminho é longo. Talvez o ele não seja suficiente para entender como as herbáceas tropicais reagem ao aquecimento global; mas talvez sim. Seja qual for a resposta, é um avanço para a ciência, também graças a uma pequena plantinha.

“O trevo-branco é um exemplo de livro para o estudo da evolução”, comenta Amanda. “E as plantas são organismos muito plásticos. Elas têm uma capacidade de resposta ao ambiente muito grande”, afirma. Quem nunca viu uma planta esticadinha para pegar mais sombra ou mais sol? Ou flores resistentes, germinando entre as frestas de concreto?

Da mesma forma que é incrível ver a evolução agindo, é triste compreender que os impactos humanos sejam os motivadores do sufocamento da biodiversidade. Está em nossas mãos agir pelo sucesso de todas as espécies, não apenas a nossa ― convenhamos, também está bem mal com as consequências dos próprios atos.

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