Enquanto só recentemente torcedores cearenses passaram a viajar para acompanhar seus times nas competições sul-americanas, os irmãos uruguaios Alejandro e Daniel, moradores de Montevidéu, já rodaram incontável quilometragem para acompanhar os jogos do Nacional do Uruguai. E é sobre essa experiência de amor incondicional por estádios do continente que você vai ler nesta reportagem.
Vamos começar contando como nasceu esse amor imenso dos dois torcedores pelo time. Na gênese, estão o amor do pai pelo Nacional do Uruguai e as narrações de jogos inesquecíveis no rádio por Carlos Muñoz, que ajudaram a construí essa paixão para toda a vida.
Das recordações dos tempos de criança sob as cores do Nacional — as mesmas do Fortaleza — até a Copa do Mundo de 1994, a primeira que viram pela TV, o futebol chegou como um chamado definitivo. E motivou uma história tecida entre aeroportos, estradas, fronteiras, bloqueios, perrengues e em muitas presenças nos pequenos espaços das arquibancadas reservados aos visitantes. Ante as vaias hostis de torcidas rivais, de grandes e nem tão expressivos clubes de vários países da América do Sul.
O primeiro jogo visto no estádio foi Nacional 3x1 Huracán Buceo, pelo torneio Apertura, em abril de 2000. Um alumbramento! Apesar da experiências transformadora, por muitos anos ir ao estádio seguiu sendo coisa rara, diante de desafios familiares e financeiros.
"Eis que em 2006 me surge a inquietude de assistir a um jogo da Libertadores. Depois de uma vitória do Nacional sobre o Pumas no Gran Parque Central, decidi fazer o impossível para ir assistir a um jogo contra o Maracaibo", relata Alejandro, 31 anos, contador, irmão de Daniel, 34, analista de mídias sociais.
"Essa paixão foi retomada em 2007, no jogo que acabou por marcar a presença obrigatória em partidas do Nacional pela Libertadores. Foi muito especial! Vencemos de virada o então campeão do mundo, o Internacional-RS, com um jogador a menos e em um momento terrível, em que não ganhávamos de ninguém. Foi 3 a 1 e gritamos nos gols como se não houvesse amanhã", recorda.
Desde 2010, Alejandro e Daniel se dedicam a ver o maior número de jogos do Nacional, seja nos torneios nacionais, marcando presença em quase todas as partidas em casa e fora desde 2009, na Libertadores da América (a Copa Sul-Americana fica, para eles, em um patamar inferior, uma vez que o tricolor de Montevidéu costuma sempre se classificar para a "Liberta").
Ainda no início da experiência de viajeros, um momento difícil: depois de se preparar para ir a La Plata, na Argentina, para Nacional x Estudiantes, pela semifinal da Libertadores 2009, divergências entre as diretorias acabaram fazendo com que aquela eliminatória fosse disputada sem público. Alejandro e Daniel já haviam pago pela viagem! Para eles, o clima negativo acabou contribuindo para que o Nacional ficasse fora da final. "Nos roubaram esportivamente, mas jogamos péssimo", reconhecem.
Já em março de 2010, não houve cartola que estragasse a viagem. Os irmãos fizeram as malas para um jogo contra o Banfield. "Juntamos peso a peso para pagar o pacote mais barato. A ida foi extenuante! Saímos tarde e demorávamos em várias revistas policiais. Chegamos a cinco minutos do jogo e ficamos imprensados na grade de proteção, na bandeira de escanteio, de onde se via muito pouco. Cada gol foi gritado de forma inacreditável, corridas, abraços. Inesquecível!".
"Em 2016, tomamos a decisão de fazer o possível do impossível para assistir a todos os jogos em que o Nacional fosse visitante. Até hoje conseguimos"
Sempre economizando no dia a dia para custear as viagens a países mais próximos, vieram as partidas contra o Argentinos Juniors em 2011, o Libertad, do Paraguai, em 2012, o Boca em 2013.
"Começamos a trabalhar em 2012 e, a partir de 2014, passamos a ir a mais de um jogo fora de casa por ano. Naquele ano foram três. Em 2016, tomamos a decisão de fazer o possível do impossível para assistir a todos os jogos em que o Nacional fosse visitante. Até hoje conseguimos, mas é muito difícil haver tabelas que permitam isso, com três rivais próximos".
Apesar dos vários desafios, a dupla já soma 33 viagens ao exterior para ver partidas oficiais. E mais de 500 jogos vistos em estádio. "A pandemia nos tomou dois anos de arquibancada", ressalta Alejandro, que já esteve em Fortaleza, visitando amigos, após acompanhar um jogo da seleção celeste em Recife, e também na Copa de 2014. Mais pontos marcados no mapa dessa grande paixão.
Um dos raros jogos do Nacional no Uruguai ao qual os irmãos Alejandro e Daniel Cabrera não puderam comparecer foi o confronto com o Boston River, em setembro de 2019. O motivo? A dupla não conseguia sair da Venezuela, aonde fora acompanhar o Nacional pela Libertadores. Com o país em instabilidade, o aeroporto sofreu um apagão e os irmãos uruguaios passaram dias de incerteza.
"Já havíamos passado por perigos em uma viagem anterior à Venezuela, mas em 2019 foi diferente. Foi mais desesperador e triste do que perigoso", revela Alejandro. "Passava o tempo e o apagão não acabava. Chegou a noite e ficamos no escuro esperando o voo, sem ninguém da companhia aérea para falar nada. Os passageiros entraram em desespero", relata.
A falta de luz era em todo o País, sem se saber o motivo. O voo acabou reagendado para o dia seguinte, e a companhia custeou uma noite de hotel, que tinha luz de gerador. A dupla deparou com voos ainda paralisados, pela persistente falta de energia. Foi preciso reagendar novamente, para dias depois, desta vez pagando o próprio hotel. "Perdemos os ingressos para o jogo contra o Boston River, que sequer conseguimos acompanhar pelo rádio, devido aos apagões e à falta de Internet".
"Depois de voltar ao aeroporto inúmeras vezes e de tentar várias alternativas para sair da Venezuela por ar ou por terra, fui de madrugada ao aeroporto e encontrei os jogadores do Zamora dormindo no chão, no escuro. Até que, meio-dia, a companhia responsável pelo nosso voo voltou a liberar aviões para decolar. Graças a um garoto que tinha internet no celular, conseguimos fazer o check-in. O voo até a Cidade do Panamá foi lotado de pessoas, malas, cantos de emoção, diante da ansiedade gerada por toda aquela situação".
A pergunta de um milhão de dólares — ou de pesos: como bancar, planejar, pesquisar e encaixar na agenda tantas viagens para torcedores que estão longe de ter tempo ou dinheiro de sobra? Como viabilizar esse sonho "viajero" de acompanhar o time América afora, desafio que os cearenses estão sentindo nos últimos anos?
"Viajar para ver o Nacional jogar não é um fardo. É uma obrigação sentimental. Além de ser ruim ver jogos pela TV, com propaganda, cortes de imagens... Sempre prefiro assistir no estádio, mesmo sofrendo com furacões, problemas com torcidas adversárias", diz Alejandro Cabrera.
"Trabalhando e com apoio da família, tentamos ir a todos os jogos. Procuramos os menores preços para passagens, hospedagem, refeições, as rotas mais baratas... Geralmente eu sou o encarregado desse controle e planejamento. Acredite: é muito, muito difícil!", completa.
"Viajar para ver o Nacional jogar não é um fardo. É uma obrigação sentimental"
Pesquisar bastante e planejar a viagem, comprando diretamente passagens e hospedagem são caminhos para economizar, aponta Alejandro, que não recorre a agências e brinca com a realidade do Uruguai: "Os preços em qualquer país da América são mais baixos que no nosso".
A persistência com que seguem o Nacional pelos estádios da América trouxe reconhecimento aos irmãos Alejandro e Daniel Cabrera em meio à torcida tricolor. Em 2017, o amigo Fabián Bonilla publicou no Twitter os impressionantes números das viagens da dupla.
O jornal El Observador, do Uruguai, publicou matéria sobre os irmãos torcedores, que dias depois foram convidados pelo Nacional para gravar um vídeo, no estádio do clube, o Gran Parque Central, saudando a torcida ao final daquela temporada em que o time não foi bem.
Os irmãos torcedores não diminuem o entusiasmo mesmo com o futebol uruguaio hoje em uma realidade distante dos altos investimentos feitos por equipes como Flamengo, Palmeiras, Atlético-MG, River Plate e Boca Juniors.
"Para nós, o Nacional é muito mais do que se joga nas competições. Criamos um entorno familiar, conhecemos muito mais pessoas com quem compartilhamos o dia a dia. Fazemos amigos, jogamos futebol de cinco e temos várias atividades", aponta Alejandro.
"'La Barra de la Delgado' é o nosso entorno e manter essa vida social é o que nos acende dia a dia essa paixão, que se estende às viagens. Amamos conhecer o mundo, e a tabela de jogos do Nacional é o nosso calendário anual de viagem, nosso veículo para conhecer pessoas, costumes, paisagens maravilhosas, que só víamos nos livros ou na TV e que quando crianças jamais acreditávamos que conheceríamos".
A esperança se renova a cada Libertadores, acrescenta, pela forte tradição do Nacional, vencedor da competição e de mundiais. "Mas claro que a distância hoje é enorme. Nem tanto com os argentinos, mas eles sempre são favorecidos pela arbitragem, com ou sem VAR", avalia.
"Já as diferenças econômicas são incontornáveis, uma questão de mercado. O Brasil é enorme e tem uma economia muito maior, inalcançável", ressalta, considerando impraticável um fair play financeiro que desse maior equilíbrio à Libertadores, mas defendendo mudanças para que ao menos a arbitragem não prejudique os clubes de menor poderio econômico.
"Mesmo se eliminamos um Corinthians, ainda restam quatro ou cinco grandes do Brasileirão para enfrentar"
Ele também critica a Conmebol por elaborar o calendário de forma favorável aos argentinos e brasileiros e dar a ambos muitas vagas na competição. "Mesmo se eliminamos um Corinthians, ainda restam quatro ou cinco grandes do Brasileirão para enfrentar", enfatiza.
"Também é preciso admitir erros no Uruguai, onde o campeonato não favorece os clubes classificados para as competições internacionais. Falta um calendário regular e se joga poucas vezes, geralmente em datas concentradas, com jogos importantes na mesma semana de partidas da Libertadores", aponta, indicando que o resultado são jogadores lesionados e clubes priorizando o campeonato nacional.
Os irmãos Cabrera também têm presença frequente nos jogos do Nacional em praças como Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Chapecó. Pela proximidade, a capital gaúcha já os recebeu mais vezes; estiveram presentes inclusive em um GreNal, com 5 a 0 para os tricolores.
De Fortaleza, aonde vieram para a Copa de 2014, recordações de comer bem e desfrutar as praias "magníficas", mas de se preocupar com a segurança na Praia do Futuro. "Os cearenses são muito atenciosos", diz Alejandro, lembrando ter passado muito calor no ônibus rumo ao Castelão na Copa, em um lento e longo percurso, ainda mais lotado na volta.
"No geral, temos sido muito bem tratados no Brasil, até compartilhando fotos e bebidas com algumas torcidas, como a do Palmeiras", conta Alejandro. "Já andamos no metrô cheio de torcedores do Corinthians, e nós de camisa do Nacional, caminhando entre os churrasquinhos de Itaquera. Tiramos fotos com torcedores do Atlético-MG e um torcedor do Bragantino já nos deu carona", ilustra.
Já da torcida do Fluminense, no Rio, más recordações. "A polícia nos levou por um caminho cheio de torcedores. Incrivelmente não nos banharam de cerveja e recebi algumas pancadas".
"A pobreza e a desigualdade social são pontos negativos, mas isso não é diferente de outros países sul-americanos"
"O Brasil tem uma cultura ocidental similar ao Uruguai e à Argentina, mas tem muitas diferenças, a começar pelo idioma. Em muitas capitais brasileiras a gente entende bem o que se diz. No interior, nem tanto", revela.
"O brasileiro é, em geral, mais alegre que o resto da América do Sul, mas claro que há de tudo. As paisagens são muito diferentes, com morros, favelas em qualquer ponto de algumas cidades, não só na periferia, como no Uruguai. A pobreza e a desigualdade social são pontos negativos, mas isso não é diferente de outros países sul-americanos".
Para ele, a música, o samba, são diferenças chamativas aos estrangeiros. "As pessoas nos tratam com gentileza e tranquilidade, e as cidades são melhor estruturadas quanto ao transporte. A gastronomia é magnífica e muito variada", destaca o experiente viajero, já se preparando para uma nova viagem. "Amo o Brasil e já quero estar lá outra vez", avisa.