São tempos difíceis no futebol brasileiro. Ao mesmo tempo em que vê uma movimentação pela criação de uma liga nacional de clubes e profissionalização da indústria, inclusive com criação de SAFs, uma rápida escalada de intolerância de uma parte dos torcedores culminou em casos graves de agressões e ameaças contra jogadores, técnicos e dirigentes país afora ao longo do primeiro semestre de 2022.
Antes sinônimo de lazer e festa nas arquibancadas, o esporte mais popular do Brasil virou sinônimo também de violência fora dos gramados — verbal e física. As rotineiras críticas dos estádios se transferiram com maior intensidade para as redes sociais e, em alguns casos, ultrapassaram a questão profissional, chegando ao âmbito pessoal, com vazamentos de números de celular, incômodo a familiares e ameaças de morte.
Os profissionais do futebol viraram alvo — e vítima — da intolerância. Ônibus apedrejados, machucando jogadores, agressão com capacete, invasão a centro de treinamento e protestos acima do tom em aeroportos, com delegações acuadas, compõem o triste cenário atual.
Na noite de 24 de fevereiro, a delegação do Bahia rumava para a Fonte Nova para enfrentar o Sampaio Corrêa-MA, pela Copa do Nordeste, quando um artefato explosivo foi jogado contra o ônibus, quebrando o vidro e acertando estilhaços nos passageiros. O carro de uma mulher que estava próximo ao veículo do Esquadrão também foi atingido.
O goleiro Danilo Fernandes foi a principal vítima do atentado, com lesão no rosto, em região próxima ao olho. O lateral-esquerdo Matheus Bahia também teve o braço ferido. Danilo foi submetido a uma cirurgia oftalmológica e voltou a treinar com bola na segunda quinzena de março.
"Não estava ouvindo e não percebi o que ocorreu. Senti uma porrada no meu rosto e depois vi alguém gritando que foi uma bomba. Quando me dei por conta, estava pingando um monte de sangue. Pediram para eu ir mais à frente para sair da zona de perigo. Estava aéreo, não sabia o que estava acontecendo. Fica estranho de entender o momento e tudo que aconteceu", relatou o arqueiro.
Na mesma noite, em Recife, o Náutico-PE desembarcou no aeroporto dos Guararapes sob protestos da torcida organizada em razão da eliminação na Copa do Brasil. Na saída do local, uma van que levava parte da delegação foi atingida e teve uma janela quebrada. Não houve registro de feridos.
"O Clube Náutico Capibaribe repudia veemente esse tipo de ação. A cobrança deve existir, mas não de forma violenta ou que afete a imagem de qualquer um dos nossos atletas e/ou familiares dos mesmos", diz a nota do Timbu.
Ainda em meio à repercussão dos casos no Nordeste, um novo episódio ocorreu dois depois no Sul, mais precisamente em Porto Alegre. O Grêmio chegava ao Beira-Rio pra o clássico contra o Internacional e teve o ônibus acertado por uma pedra, que estilhaçou o vidro e acertou a testa e o olho do jogador paraguaio Mathias Villasanti.
A cena do volante saindo de maca para a ambulância, com parte do rosto enfaixado, reforçou o momento dramático do futebol brasileiro, tanto pela semelhança entre os casos quanto pelo curto intervalo de tempo, além do fato de ter jogadores como vítimas. Villasanti teve traumatismo craniano, foi liberado no dia seguinte e voltou aos treinos dois dias depois do atentado.
A rotina de viagens pelo Brasil e pela América do Sul para jogos das mais diversas competições expõem os clubes ao constante contato com o público nos aeroportos, cenário muitas vezes aproveitado pelas torcidas para a realização de protestos. Em alguns casos, as cobranças não ocorrem de forma pacífica e geram violência.
No dia 17 de março, o Fluminense-RJ desembarcou no Rio de Janeiro após ser eliminado da fase prévia da Copa Libertadores pelo Olimpia, no Paraguai, com presença de torcedores. O então técnico Abel Braga e o presidente Mário Bittencourt foram os principais alvos, sendo cercados.
O dirigente chegou a ser encurralado e, mesmo cercado por seguranças, teve dificuldades para chegar ao carro, sofrendo tentativas de agressão até entrar no veículo para deixar o aeroporto.
Cerca de um mês depois, em 21 de abril, foi a vez do Vasco da Gama encarar momento tenso no mesmo local. O meia Nenê e o então treinador Zé Ricardo foram os mais cobrados no Galeão. O técnico, inclusive, tentou conversar com os torcedores, mas não teve muito êxito e acabou hostilizado pelo grupo, que o cercou na porta do ônibus da delegação.
No último dia 17 de junho, o futebol cearense foi palco de cenas lamentáveis no aeroporto. A delegação do Fortaleza retornou de Santa Catarina após derrota para o Avaí com dezenas de torcedores à espera para protestar. Houve empurra-empurra com alguns atletas, como o zagueiro Marcelo Benevenuto e o meia Lucas Crispim.
O atacante Robson, porém, foi a principal vítima da intolerância. O jogador já se dirigia para um táxi para deixar o local quando foi abordado por um pequeno grupo de torcedores, em meio a bate-boca, foi agredido com um capacete de moto. O caso repercutiu Brasil afora, com diversos clubes se solidarizando ao atleta e ao time do Pici.
O presidente do Tricolor, Marcelo Paz, repudiou o ocorrido, a exemplo do capitão Tinga e do próprio Robson. Em nota oficial, o Leão do Pici informou que se disponibilizou a prestar toda a assistência necessária ao atleta após a agressão.
Dentro do próprio ambiente de trabalho, os atletas também sofreram com a intolerância. Em 26 de fevereiro, o Paraná foi rebaixado no Estadual e, nos minutos finais do jogo, um grupo de torcedores derrubou a divisória da arquibancada para o campo e invadiu o gramado, causando uma confusão generalizada. Houve trocas de agressões entre torcedores e jogadores.
O clube acabou punido pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) com a perda de cinco mandos de campo, além de multa de R$ 35 mil.
Já no dia 15 de junho, uma torcida organizada invadiu o CT do Botafogo-RJ para protestar. O grupo chegou a abrir as portas dos dormitórios e entrou no setor de fisioterapia, onde alguns jogadores faziam tratamento. O atacante Victor Sá foi abordado de forma hostil. Na chegada ao local, o técnico português Luís Castro conversou com os torcedores.
"Protestos são válidos e aceitos, mas desde que não extrapolem o ambiente de civilidade. Os torcedores têm todo direito de se manifestarem, mas atitudes como essa, com invasão e ameaças, prejudicam a equipe e os projetos que estão em curso", disse o clube em nota. O Glorioso se tornou SAF este ano, sob comando do norte-americano John Textor.
A internet, por meio das redes sociais, também se tornou ambiente hostil para os jogadores em momento ruim das equipes. Em um período de três meses, três jogadores do Corinthians foram vítimas de ameaças de morte, além do presidente Duílio Monteiro Alves.
O goleiro Cássio, o zagueiro Gil e o meia Willian, ídolos do clube, receberam mensagens e procuraram a polícia. Familiares dos atletas também foram ameaçados. Um homem de 20 anos foi preso pelo crime contra Willian e postou uma retratação nas redes sociais.
Ainda em abril, após os primeiros casos, a Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf) do Brasil se manifestou para repudiar os episódios de violência e cobrar atitudes das autoridades, destacando que não se pode esperar uma tragédia para " encontrarmos uma solução para o problema". Leia a nota na íntegra:.
"A Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol – FENAPAF, repudia todos os atos de violência que estão sendo cometidos contra atletas de futebol nas últimas semanas.
Pessoas travestidas de torcedores estão, em nome de um suposto amor por seus clubes, se dando ao direito de agredir e ameaçar os profissionais de futebol.
Não aceitaremos mais esses atos!
O principal esporte do país e seus protagonistas estão sob ataque e precisamos agir antes que uma tragédia aconteça. Infelizmente, são atos que não são novidades no cenário nacional e do futebol.
Governo Federal, CBF, Federações, Entidades de Classe, Imprensa, Clubes e Tribunais Esportivos, devem se unir para punir e rechaçar, de forma exemplar, esses vândalos e bani-los de vez do ambiente do futebol.
Temos que dar um basta nesses atos covardes e absurdos!
TNão podemos esperar uma tragédia acontecer para encontrarmos uma solução para o problema."