Não foi em favelas que alguns dos principais chefes das facções criminosas que atuam no Ceará foram presos. Pelo contrário, foram em apartamentos caros, com carros avaliados em centenas de milhares de reais em suas garagens, entre outros bens de luxo.
Como no caso mais recente, de Jéssica Andrade da Silva, de 28 anos, presa em 22 de junho deste ano, que ostentava em suas redes sociais viagens de helicóptero, de lanchas e passeios em destinos badalados. Ela é apontada como ex-companheira de Vicente Antônio de Freitas Filho, o "Vicente Peru", condenado como liderança da facção Comando Vermelho (CV). Jéssica teria passado a exercer funções na organização após a prisão dele.
Jéssica não foi a primeira. Uma mostra disso é que, em quatro anos, de 2017 a 2021, a Polícia Civil sequestrou mais de R$ 187 milhões em bens de suspeitos de integrar grupos criminosos, conforme dados da própria corporação. Foram 432 veículos e 142 imóveis.
Além disso, entram na contabilidade valores sequestrados em contas bancárias, joias e pagamentos de previdência privada. O POVO solicitou o mesmo levantamento à Polícia Federal (PF), mas foi informado que não seria possível o repasse dos dados.
Para a Polícia Civil, o objetivo declarado é desidratar financeiramente esses grupos, “tirando deles poder de financiamento das atividades ilícitas”. Ainda de acordo com a corporação, esses bens são convertidos em benefício do Estado, não só a partir da arrecadação após leilões, como também com a utilização direta desses bens. Exemplo disso é a conversão dos veículos apreendidos em viaturas descaracterizadas.
Em julho de 2020, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) anunciou que um helicóptero apreendido passaria a integrar a frota da Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (Ciopaer). A aeronave havia sido apreendida durante a operação que investigou os assassinatos de Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Sousa, o Paca, chefes da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) mortos em fevereiro de 2018 em Aquiraz (Região Metropolitana de Fortaleza).
O helicóptero pertencia a Wagner Ferreira da Silva, o "Cabelo Duro", também apontado como chefe do PCC. Foi este o veículo usado no transporte das vítimas para o local onde seriam mortos. A aeronave é avaliada em R$ 5,5 milhões, conforme divulgou, à época, a SSPDS.
Já os valores arrecadados são encaminhados para o Fundo de Segurança Pública e Defesa Social (FSPDS).
A conversão do dinheiro obtido com o crime — sobretudo, com o tráfico de drogas — em bens tem sido uma das principais formas de lavagem de dinheiro utilizadas pelos grupos criminosos que agem no Estado. Essa constatação foi feita, por exemplo, pelo delegado Klever Farias, hoje titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco).
Em monografia apresentada em 2020 em sua pós-graduação, o delegado afirmou que as facções criminosas estavam “altamente estruturadas” e utilizavam terceiros para a lavagem de capitais, incluindo a aquisição dos bens. “O chefe da facção, que domina uma determinada área da cidade, determina quem pode inserir a droga na sua área de atuação, estipula o valor a ser vendido”, detalha o delegado.
“Após a venda, fornece contas bancárias de terceiros — que emprestam seus cartões para receber os depósitos e, em troca, recebem uma parte do dinheiro arrecadado — para então sacar tais valores e comprar bens móveis e imóveis — também em nome de terceiros — ou até mesmo depositar em outras contas de pessoas de sua confiança”. Dessa forma, prossegue o delegado, “mesmo as lideranças que são presas conseguem manter a arrecadação e circulação dos lucros oriundos dos crimes praticados”.
O mesmo modus operandi também seria utilizado para a criação de empresas de fachadas, “que são administradas em nome de interpostas pessoas, ou até mesmo com nomes falsos, para inserir esses valores e, posteriormente, fazer a retirada ou comprando bens”.
A Polícia Civil do Ceará criou um Departamento de Recuperação de Ativos para a operação de descapitalizar o crime organizado e desenhou uma estrutura que conta com o apoio da Delegacia de Combate aos Crimes de Lavagem de Dinheiro, parte integrante da rede. Também integra esse sistema a Delegacia de Combate a Corrupção (Decor), a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e o Departamento de Inteligência Policial (DIP), que ainda contam com o apoio das demais delegacias.
“Mais do que prender, estamos empenhados em quebrar esse mecanismo que alimenta os grupos criminosos”, afirma o delegado-geral Sérgio Pereira dos Santos, em entrevista ao O POVO. “Então, quando se prende um criminoso de alto escalão e tira dele o poderio econômico que o permitia a compra de armas e de drogas, por exemplo, a Polícia Civil aplica um duro golpe nessas organizações". É uma forma, diz ele, de mitigar os prejuízos financeiros das vítimas, mas também “retroalimentar” o sistema de segurança que combate esses crimes.
Conforme o delegado, dos R$ 187 milhões em bens sequestrados pela Polícia Civil nos últimos quatros anos, a maior parte vem de casos de corrupção e de fraudes. Mas parte desse montante também é proveniente dos bens apreendidos com os chefes das facções criminosas. “Eles tentam maquiar o que conseguiram de forma criminosa tentando mostrar para todos, ostentar que conseguiram de forma lícita”, diz Sérgio. Conforme ele, principalmente, a cúpula dessas facções já possui expertise para a lavagem de dinheiro.
Exemplo desse trabalho pode ser visto na operação Continuum, deflagrada pelo Núcleo de Combate ao Tráfico de Drogas (NCTD) do Cariri. Na ação, foi solicitado o bloqueio de R$ 100 milhões em valores que eram movimentados por integrantes de uma organização criminosa que atuava no Cariri Cearense e que tinha ramificações em São Paulo. Como o pedido foi feito já neste ano, o montante não entra no total de valores sequestrados judicialmente nos últimos quatro anos.
Além do bloqueio, nos dois anos em que a operação foi conduzida, foram confiscados sete carros, um reboque, duas motos, três veículos não especificados e uma propriedade rural no município de Caririaçu (Cariri Cearense). Também foram apreendidos 15 armas de fogo, mais de mil munições e mais de 600 quilos de drogas (557kg de maconha, 42kg de cocaína, 22kg de crack, 4kg de
Conforme as investigações, a organização criminosa era liderada por um homem identificado como Carlos Gledson Lima dos Santos, o "Carlim", preso ainda em 2021. Na ocasião, ele foi preso com um revólver e 70 quilos de entorpecentes, entre crack, cocaína, maconha e skunk. Os policiais civis estimaram que a droga valia aproximadamente R$ 500 mil.
Dois meses mais tarde, viria a ser preso um homem apontado como aquele que teria substituído Carlos na liderança do esquema criminoso. Com Pedro Lucas Oliveira Silva, a Polícia apreendeu 163 quilos de maconha e dois de cocaína. Tanto Carlos, quanto Lucas foram condenados em primeira instância por tráfico de drogas. O primeiro recebeu 10 anos e seis meses de prisão e o segundo, 5 anos.
Além disso, eles ainda são réus pelo crime de integrar organização criminosa. Também respondem por este crime: Ronaldo Pereira da Silva, Francisca Lima dos Santos, Davi Paiva Ribeiro, Jadson Ventura da Silva, Pedro Neto Batista da Silva, Camila Garcia Dantas, Jocélio Santos da Cunha, Larisse Cavalcante Sousa, José Flávio Silva dos Santos, Mayck Ramerson de Sousa Nascimento, Francisco José da Silva Pereira, Sandoval Saldanha Correia, Cícero de Lima Fernandes, Marla Lima Santos, Robério Moreno dos Santos, Willians Pereira da Silva, Josilene Lima de Oliveira, Edson Estrogildo do Nascimento, José Manoel Silva dos Santos, Ana Paula Bau da Silva e Ismael Alves Rodrigues.