Nos mais de dois anos de pandemia, a Covid-19 deixa um rastro de dor e sofrimento com mais de 670 mil mortes no Brasil. Somente no Ceará, 27 mil morreram em decorrência da contaminação pelo vírus. Deste total de mortes no Estado, 151 óbitos ocorreram entre crianças de 0 a 4 anos, no período de 2020 até 18 de julho de 2022.
A dor de enterrar um filho foi sentida por José Ferreira, 41, que perdeu um bebê de apenas três meses para a doença. O caso ocorreu no município de Iguatu, a 361 km de Fortaleza, em abril de 2020. Dois anos depois, ele conta que o vazio deixado pelo luto nunca será preenchido.
"Não restam dúvidas que ainda existe a lacuna, é inexplicável. Não há muito como explicar aquela fatalidade", lamenta. Mesmo diante da dor, o homem conta que a fé e a proximidade com seus pais, fizeram com que ele tivesse forças para seguir. "Eu me sustentei primeiramente em Deus, que está acima de todos, e também no apoio da família".
Dos 151 óbitos registrados no Estado até o momento, 138 (91,4%) ocorreram entre as crianças de 0 a 2 anos; já entre as de 3 e 4 anos, a cifra é de 13 (8,6%). Considerando o mesmo período (1º/1 a 11/7) nos anos de 2020, 2021 e 2022, o ano com mais óbitos nesta faixa etária foi o último. A faixa etária com maior mortalidade é a única para a qual ainda não existem vacinas liberadas, desde que a imunização de crianças de 3 a 5 anos foi liberada no Ceará.
O levantamento foi feito pela Central de Jornalismo de Dados do O POVO - DATADOC, a partir do Boletim Covid-19, disponível no IntegraSUS, plataforma da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa), com dados atualizados às 8h29min da segunda-feira, 18/7/2022.
Ainda de acordo com o levantamento, em 2021, dentro do período analisado, 74 crianças entre 0 e 2 anos morreram de Covid-19 no Estado. No mesmo intervalo, outras oito crianças entre 3 e 4 anos também faleceram em virtude da doença, totalizando 82 óbitos ocasionados pela Covid-19. Em 2020, levando em consideração a mesma época, foram registrados 21 óbitos de crianças entre 0 e 4 anos. Já em 2022, são 32.
Sobre a pandemia, José Ferreira, ainda relata que, durante os últimos dois anos de luto, em momento algum baixou a guarda em relação ao vírus. Ele afirma que nenhum outro familiar voltou a ter problemas com a doença e exalta a vacinação.
"Graças a Deus, ficamos bem, por conta da imunização. Estamos com saúde e sem problemas com a doença". José comenta que até pensa em ter uma outra filha no futuro, mas pretende esperar o fim da pandemia.
"Eu tenho as minhas duas filhas mais velhas, com mais de 13 anos. Eu até penso em ter outra, mas prefiro esperar mais. É preciso se precaver e estar sempre bem vacinado".
Mesmo que o número de mortes, neste ano, por Covid-19 em crianças de 0 a 4 anos apresente uma queda em relação ao que foi visto no primeiro semestre do último ano, é preciso atenção diante de um novo aumento do número de casos, com a chegada da quarta onda. (Levantamento de dados de Gabriela Custódio)
Com o avanço da vacinação da Covid-19 em adultos, idosos e parte do público infantil, a doença tem se manifestado de forma mais branda, em muitos casos, nos novos contaminados. Em Fortaleza, por exemplo, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), não houve o registro de mortes por Covid-19 em junho, é a primeira vez que isso ocorre desde o início da pandemia.
Entretanto, crianças menores de 3 anos ainda não tiveram a vacinação iniciada no país, e isso preocupa os especialistas da área da saúde, é o que explica Michelle Pinheiro, infectopediatra do Hospital Infantil Albert Sabin.
"As crianças, principalmente as que possuem alguma comorbidade, estão precisando de internamento. Porque elas já têm uma doença de base, se infectam com a Covid e acabam precisando desse cuidado hospitalar. O número de adultos que desenvolvem a forma grave da doença já não é tão alto em relação às outras ondas de contaminação", explica Michelle.
A médica destaca que há uma preocupação maior com os lactantes, já que esse grupo não tem como usar máscaras e precisa sempre de um adulto por perto, correndo o risco de se contaminar. Ela explica que, nessa fase da vida, qualquer agravo respiratório pode desencadear uma situação mais grave.
Daniele Lima, 39, conta sobre a aflição que passou ao ver os seus dois filhos com Covid-19, o pequeno João Miguel, de apenas 1 ano, e Maria Rita, de 3. "Em janeiro, a minha família toda teve Covid-19. Foram três dias de febre muito alta e depois passou. Porém, algumas semanas depois, a minha filha começou a apresentar sintomas de uma virose", relata Daniele.
Com o passar dos dias, os sintomas de Maria Rita se agravaram, com vômitos frequentes, diarreia e febre. Após um período de avaliação, parte da equipe médica concluiu que o caso se tratava de uma consequência da contaminação pelo coronavírus.
"A pediatra dela, um pneumologista, um infectologista e o gastro estavam acompanhando o caso. A conclusão é de que o quadro dela esteve relacionado à Covid-19".
A mãe conta que o período foi de bastante aflição, mas que sempre confiou na recuperação da filha com a ajuda dos médicos. "Foram 19 dias internada, foi horrível, desesperador. Ela não se alimentava, foi muito difícil. Mas ficou tudo bem, até hoje ela segue sendo acompanhada", finaliza.
De acordo com a obstetra Liduina Rocha, integrante do Coletivo Rebento/Médicos em Defesa da Vida, da Ciência e do SUS, em maio de 2022, 49% dos casos diagnosticados foram de crianças de até 5 anos de idade, o que, segundo a médica, representa cerca de 425 diagnósticos positivos.
"Desse número, 30,7% tinham menos de 1 ano de idade, isso chama a atenção. É preciso desmistificar que crianças não pegam Covid e que ela não pode complicar, ela complica e o que preocupa mais são as crianças de 0 a 1 ano de idade".
A declaração de Liduina se reflete nos números do levantamento realizado pela Central de Jornalismo de Dados do O POVO - DATADOC, que apontou que 138 dos 151 óbitos de crianças entre 0 e 4 anos, ocorreram nos dois primeiros anos de vida.
Ainda de acordo com a médica, uma análise nacional do cenário mostra o quão preocupante é a situação da incidência da Covid-19 em crianças. Segundo dados do reservatório obstétrico do Brasil, desde o início da pandemia, no País, foram registrados 18.616 casos de síndrome respiratória aguda grave por Covid em crianças de até 2 anos de idade.
Dos mais de 18 mil casos registrados, pelo menos 1.269 crianças morreram em decorrência de complicações da doença. "52% deles foram em crianças de até 3 meses de vida. Quase 30% dessas crianças não tiveram acesso à UTI e 36% não tiveram acesso à intubação. O que mostra que temos uma rede de atendimento a essas crianças extremamente tensionada", lamenta.
A obstetra ainda alerta sobre possíveis problemas de saúde após o período de contaminação, como a Síndrome Inflamatória Multissistêmica. De acordo com a médica, crianças menores de seis meses são as mais suscetíveis.
Uma das crianças acometidas pela síndrome foi Maitê Peter, quando tinha apenas seis anos de idade, é o que conta a mãe Mayra Peter, 33. "Ela começou a apresentar um quadro parecido com uma virose. Tinha febre, indisposição e reclamava muito de dor de cabeça".
A mãe conta que o caso aconteceu em agosto de 2020, e que levou a filha ao hospital. Entretanto, Maitê foi encaminhada para casa duas vezes antes de ficar internada. Mayra conta que foram momentos de muito sofrimento.
"Eu perdi meu chão, eu olhava para o pai dela e a gente chorava muito vendo a situação que ela tava. Deitada em uma cama, não podia ter nem claridade, porque ela não aguentava", relata.
A mãe conta que a filha chegou a ficar sete dias internada. Dois anos após o ocorrido, Maitê é uma criança saudável, mas carrega consigo alguns traumas, como o medo de hospitais e ao som da sirene de ambulâncias.
Sobre a doença, em nota publicada pelo Instituto Butantan, é informado que mais de 1.500 crianças e adolescentes, de 0 a 19 anos, já foram acometidos pela síndrome no Brasil. O quadro requer hospitalização e levou 6,2% dos infectados à morte.
Os sintomas da doença vão de febre persistente por mais de três dias, sintomas gastrointestinais, sinais de inflamação mucocutânea, além de problemas cardiovasculares, como miocardite e hipotensão. A síndrome é causada por uma resposta inflamatória exacerbada do organismo, que ocorre de forma tardia, de duas a quatro semanas após a infecção.
Até o início de julho de 2022, crianças entre 0 e 4 anos de vida ainda não estavam incluídas em nenhum dos grupos que já podem receber imunizantes contra a Covid-19. A situação mudou com a autorização para uso da vacina da CoronaVac para aquelas de 3 e 4 anos, o que ainda não cobre a faixa mais exposta. Especialistas da área de saúde, entretanto, estão confiantes que o processo seja ampliado em breve.
"As duas vacinas, Pfizer e Moderna, já estão com seus estudos prontos e aprovados nos EUA. Vamos ver se elas submetem aqui também no Brasil", comenta o médico Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Kfouri acredita que os imunizantes para os mais novos ficarão disponíveis a partir do mês de agosto no Brasil. Nos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), órgão de função similar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), aprovou o uso emergencial das vacinas Pfizer e Moderna para bebês a partir dos seis meses de vida.
Para a obstetra Liduina Rocha, a liberação da FDA traz "mais conforto" para que outras agências reguladoras possam liberar os imunizantes, como no caso da Anvisa. "Ainda não há uma liberação no Brasil, o Ministério da Saúde não deu nenhuma sinalização nesse sentido, mas entendo que a vacina será fundamental para salvar vidas", explica. A entrevista foi dias antes da liberação da CoronaVac pra o grupo de 3 a 5 anos.
A especialista esclarece que, mesmo sem imunizantes disponíveis para os recém-nascidos, durante o pré-natal, as mães podem fortalecer a imunidade de seus bebês contra a doença, ao serem vacinadas contra a Covid-19.
"Quanto mais doses durante a gravidez, maior a possibilidade de proteção da criança. Recentemente, foi publicada na Lancet (revista científica) uma pesquisa que mostra que os filhos das mulheres que receberam as três doses estavam bem mais protegidos até os seis meses de vida", completa.
Já a pediatra Olivia Bessa, diretora de Educação e Extensão da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE), explica que nos primeiros quatro anos de vida, os seres humanos são vulneráveis por natureza, já que não possuem uma maturidade imunológica.
Sem imunizantes disponíveis para os mais jovens, Bessa aconselha os pais que acompanhem com atenção o desenvolvimento dos sintomas nas crianças. "É preciso manter a alimentação adequada, hidratação, é importante uma avaliação do médico para saber se existe alguma gravidade, além de notar o tempo dos sintomas, assim mais facilmente se evita uma evolução grave", explica.
A médica relata que o vírus segue circulando e tende a buscar aquelas pessoas que possuem menos capacidade de reação, como as crianças. Diante deste cenário, ela destaca a importância de se manter os cuidados para evitar a contaminação. "É preciso manter todos os cuidados não farmacológicos, como uso de máscara, uso de álcool, lavar as mãos, evitar ambientes aglomerados".
Os dados sobre óbitos por Covid-19, por faixa etária, no Estado foram coletados do Boletim Covid-19 do IntegraSUS, plataforma da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), e analisados pela Central de Jornalismo de Dados do O POVO — DATADOC. A partir do filtro por idade, selecionando as mortes provocadas pela doença entre crianças de 0 a 2 anos e de 3 a 4 anos, foram calculados os óbitos nessas idades por ano e no período de 1º de janeiro a 18 de julho de cada um desses anos. Como forma garantir a integridade e confiabilidade do material, as bases utilizadas e o conjunto de códigos desenvolvidos serão disponibilizados no perfil do Github da Central. Conheça também o canal da DATADOC no Telegram.