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Paternidade e a gravidez solidária em casais homoafetivos masculinos
Reportagem Especial

Paternidade e a gravidez solidária em casais homoafetivos masculinos

Gravidez solidária ou por substituição é um tipo de reprodução que acontece quando há participação do útero de uma outra pessoa para receber o embrião de um casal ou pessoa que não pode gestar. O útero solidário é cedido temporariamente para que o bebê se desenvolva

Paternidade e a gravidez solidária em casais homoafetivos masculinos

Gravidez solidária ou por substituição é um tipo de reprodução que acontece quando há participação do útero de uma outra pessoa para receber o embrião de um casal ou pessoa que não pode gestar. O útero solidário é cedido temporariamente para que o bebê se desenvolva
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Rafael Moreira, 40 anos, professor de Inglês, e Valdi Barbosa, 39 anos, policial militar, são casados. Apesar de compartilharem uma década um ao lado do outro, este ano será a primeira vez que o casal celebra o Dia dos Pais, segundo domingo de agosto, de uma forma diferente. Há um mês eles estão se adaptando à nova rotina como pais da recém-nascida Sofia. A bebê é fruto de um procedimento nomeado de gravidez solidária ou por substituição. Este tipo de reprodução acontece quando há participação do útero de uma outra pessoa para receber o embrião de um casal ou pessoa que não pode gestar.

“Foram três tentativas através de gravidez por substituição. Minha irmã aceitou ser a barriga solidária. Entre a primeira e a segunda tentativa, nós precisamos juntar dinheiro para pagar todo o processo novamente. Foi uma montanha russa de emoções. Começamos o processo em maio de 2020. O resultado positivo chegou em outubro de 2021, no dia das crianças”, explica Valdi. 

O útero solidário é cedido temporariamente para que o bebê se desenvolva. Além disso, a pessoa que gesta a criança não terá nenhum tipo de responsabilidade sobre o bebê após o nascimento. O procedimento de gravidez por substituição pode custar em torno de R$ 20 a R$ 30 mil.

Evangelista Torquatto, médico especialista em reprodução humana. (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Evangelista Torquatto, médico especialista em reprodução humana.

O casal afirma que sofreu muitas pressões, porque as pessoas não entendiam o processo de reprodução assistida. “Muita gente não conseguia entender que o filho não era dela (irmã de Valdi), o material genético não era dela. Ela estava apenas gestando a bebê. Eu não sei se não entendem ou se não querem entender. Parece bobo, mas quando esse discurso se repete torna-se algo horrível”, conta Rafael.

Médico especializado em Reprodução Humana, Evangelista Torquato defende que a gravidez solidária, em caso de casais homoafetivos masculinos, representa um grande avanço em relação à construção de uma família moderna. “A família tem que estar balizada no amor, e não no sexo biológico. O preconceito não pode impedir que dois pais não possam ser casados, constituir família e ter um bebê.”

O processo vivido pelos pais Rafael e Valdi faz parte da reprodução humana assistida (RA). De acordo com a doutora em Biotecnologia da Reprodução e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ana Beatriz Duarte, a RA é um conjunto de técnicas empregadas no intuito de auxiliar os casais que apresentam algum tipo de infertilidade ou dificuldade de conceber filhos.

"Essas técnicas podem ser clínicas (intervenções médicas, condutas feitas no consultório ou via hormônios e outros medicamentos) e laboratoriais (necessitam de um conjunto de profissionais da área biológica ou médica para manipulação dos gametas)", diz Ana.

A gravidez solidária abriu caminhos para casais gays poderem formar suas famílias(Foto: liv bruce/unsplash)
Foto: liv bruce/unsplash A gravidez solidária abriu caminhos para casais gays poderem formar suas famílias

A pesquisadora detalha que diversas condutas estão disponíveis para ajudar os casais a conceber, incluindo coito programado e inseminação artificial (AI), tecnicamente conhecida como inseminação intrauterina (IIU), aliadas ou não às terapias hormonais, que são os procedimentos mais comuns e também mais simples. As técnicas in vitro (no laboratório) também podem ser usadas para ajudar na reprodução.

Segundo Evangelista, os casais homossexuais do sexo masculino procuram bem menos clínicas de reprodução do que os casais de mulheres. “Os casais masculinos possuem uma dificuldade maior. A doação do útero requer uma grandeza e experiência amorosa muito maior. Enquanto que o casal composto por mulheres já possui dois úteros. Ou seja, dois úteros, quatro ovários. Os sêmens podem ser muito facilmente adquiridos a nível nacional como a nível internacional.”

 

 

Requisitos para a gravidez solidária

Para realizar o procedimento, todos os envolvidos precisam seguir as normas do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre a gestação de substituição (cessão temporária do útero), conforme a resolução de nº 2.294, de 27 de maio de 2021. O documento informa que a pessoa responsável por gestar um feto precisa ter parentesco de até quarto grau com um dos pais e uma saúde produtiva conservada.

Caso a doadora do útero seja uma pessoa que não pertença à família do casal, os interessados no procedimento precisarão da autorização do CFM, que regula a atuação dos médicos. “O casal, médico, clínica e a paciente envolvidos vão ao Conselho, explicam a situação para obter o parecer a respeito do caso”, explica o médico Evangelista Torquato.

Maria Berenice Dias, especialista em direito da família(Foto: TALITA ROCHA - 25/8/2008)
Foto: TALITA ROCHA - 25/8/2008 Maria Berenice Dias, especialista em direito da família

Um ponto que pode despertar discordância em relação às normas do Conselho é o tópico 3.6, que determina a aprovação do cônjuge da pessoa que ceder o útero de forma temporária. “Caso a doadora seja casada, o parceiro precisa dar a anuência para que o processo possa ocorrer. Eu entendo que este ponto apresenta polêmicas e críticas, por cercear a liberdade da doadora. Mas acredito que o conselho tenha o intuito de reiterar um ato de amor”, avalia o médico.

Para Berenice Dias, advogada e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFam), o Conselho pode regular a prática médica, não necessariamente a escolha de outras pessoas. “Não se precisa ter relação para ter um filho. É um pouco absurdo, mas em casa de mulheres que não são parentes dos futuros pais, a clínica precisa solicitar ao Conselho Regional de Medicina para pedir autorização.”

Em situações que exigem a aprovação do Conselho, após o aval da entidade inicia-se a escolha de quem será o doador do sêmen. “Essa doadora pode ser anônima e não anônima. Vamos sugerir um casal fictício chamado de Pedro e Alberto. Se o Pedro tem uma irmã, o sêmen do Pedro não pode fecundar o óvulo da irmã, mas o sêmen do Alberto pode.”

Por fim, o Conselho determina que a cedente temporária do útero deve ter ao menos um filho vivo; a cessão temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo, e as clínicas de reprodução precisam ter um relatório médico atestando adequação clínica e emocional de todos os envolvidos.

 

 

Como funciona o procedimento?

Os pais que desejam ter filhos a partir da gravidez por substituição precisam garantir os procedimentos iniciais, que envolvem o útero solidário, seguindo as orientações determinadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), e a coleta material genético. Esse material é o sêmen de um dos pais e o ovário (anônimo ou não através do banco de doadores), para a formação do embrião.

 

 

 

Barriga solidária x Barriga de aluguel

 A barriga de aluguel, assim como a barriga solidária, é uma técnica complementar de reprodução humana assistida (RA). De acordo com a doutora em biotecnologia da reprodução, Ana Beatriz Duarte, tanto a barriga solidária como a de aluguel têm o objetivo de adquirir um útero “doador” que faça a gestação do bebê quando alguém estiver impossibilitada de fazê-lo.

O que difere uma da outra é a sua legalidade no Brasil. “Alugar” a barriga com fins comerciais é proibido no Brasil, por meio de resoluções elaboradas pelo Conselho Federal de Medicina, acompanhadas pelo Conselho Nacional de Justiça. “Na barriga de aluguel, a mulher aluga o próprio útero para gerar o bebê de outra pessoa, e faz isso mediante pagamento. No caso da barriga solidária ou útero de substituição, a mulher deve fazer isso de maneira voluntária, sem cobrar nada por isso”, explica.

A pesquisadora lembra que em outros países como nos Estados Unidos, as pessoas podem vender seus gametas para um banco ou também ganhar dinheiro alugando o útero para estes fins. “No Brasil, a participação de um útero doador deve ser feita voluntariamente e por alguém da família, conhecido como barriga solidária ou gestação de substituição, por isso, esse termo aluguel é erroneamente empregado no País.”

 

 

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Paternidade é um misto de emoções

Rafael e Valdi moram em Pernambuco, Recife, com a filha Sofia. Durante os dez anos de relacionamento, eles tiveram os primeiros encontros, namoro, noivado, casamento e agora a paternidade. “Eu sempre tive vontade de ser pai, desde a adolescência. A dúvida surgiu quando eu me descobri gay: ‘E agora, como vai ser isso?’ Eu não vou me casar com uma mulher para ter um filho, eu não quero enganar ninguém. Além disso, naquela época não existia a possibilidade de fertilização in vitro. Eu pensava em adotar”, diz Valdi.

Apesar do forte desejo de Valdi para exercer a paternidade, Rafael tinha dúvidas. “Eu tinha vontade de ser pai, mas foi algo que passou. Eu não tive exemplos positivos em relação à paternidade bem-sucedida na minha família. Com a terapia e com os anos, esse receio de repetir essa situação foi revertido. Nas análises, eu vi que se tratava de um trauma de repetir os erros das gerações passadas”, comenta Rafael.

Pais e filhos: a busca de vínculos independentemente da forma de amar(Foto: pnw production/pexels)
Foto: pnw production/pexels Pais e filhos: a busca de vínculos independentemente da forma de amar

Estes meses têm sido muito agitados para o casal: “Durante o parto, foi muita emoção. A gente ficava olhando para aquela coisinha pequena e pensando, ‘Meu Deus, ela é minha filha’. Agora para o resto da vida será comigo. Vou cuidar e amar aquela pessoa para sempre”, diz Valdi. “Ela transformou a gente, hoje eu não imagino minha vida sem ela. A gente sofre porque dorme pouco, mas quando ela interage com a gente, tudo vale a pena. É algo que preenche a vida da gente de uma forma que não dá para mensurar em palavras. A paternidade é a melhor coisa que já aconteceu na minha vida. Isso me mudou como pessoa”, relatou Rafael.

Mas esse misto de sentimentos já era esperado, de acordo com Vandi: "Na hora do parto, em que ela foi entregue nos meus braços, eu queria ter o contato corpo a corpo. O que eu não chorei durante todo o processo, eu chorei naquele momento. Com o sonho de ter a criança, eu fiquei completamente impactado. Era tudo o que eu esperava. Uma vez eu fui limpar a fralda dela e vi um melado, eu comecei a rir. Eu esperava que fosse isso mesmo. É um misto de emoções".

 

 

Casal de influenciadores Gustavo Catunda e Robert Roselló são os pais de Marc e Maia(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Casal de influenciadores Gustavo Catunda e Robert Roselló são os pais de Marc e Maia

Pioneiros no Brasil

Gustavo Catunda, 30 anos e Robert Roselló, 31 anos, foram os primeiros a passar pelo processo de reprodução assistida no Brasil. Os dois se tornaram pais de Maia e Marc logo após a gravidez solidária bem-sucedida por causa de autorização por meio da resolução do Conselho Federal de Medicina, que veio no dia 15 de junho de 2021. Os bebês nasceram em fevereiro deste ano.

Antes da resolução, os dois brasilienses que vivem em São Paulo já planejavam conseguir legalmente o direito de gestar pela gravidez de substituição. “Nosso plano era unir o óvulo da minha irmã ao sêmen do Robert. Nós conseguiríamos uma misturinha de nós dois. Nada era possível naquela época, tudo ficava no âmbito da fantasia”, diz Gustavo.

Ser pai sempre foi o sonho do casal, que está junto há dez anos. “A gente sempre quis ter filhos. Queríamos ter filhos desde quando éramos somente amigos, mas cada um com sua respectiva esposa. Naquele momento não havia representatividade. Era algo impensável admitir uma relação estável homoafetiva. O casamento civil não era possível, adoção também não”, conta Gustavo.

Para realizar o sonho, os dois estavam decididos a buscar um tratamento legal fora do Brasil, mas a medida não foi necessária. “Nas vésperas para assinar o contrato, nós recebemos uma mensagem da advogada com a permissão para a doação de óvulo de parente até quarto grau. No último segundo conseguimos fazer como tínhamos sonhado”, relata Gustavo.

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Gustavo descreve o sentimento de ser pai como uma realização surreal: "Nós sofremos muita homofobia, tanto na vida pessoal quanto profissional. Nós tínhamos muitos sonhos, e para conquistar tudo isso nós precisávamos lutar muito. Com os bebês não foi diferente, mas é a realização do nosso maior sonho. A paternidade é o resultado do nosso amor. Esse amor se somou para se multiplicar”.

Ter um filho e estar casado com outro homem parecia impossível para os dois há uma década atrás. Hoje o casal conta que se sente em um conto de fadas, que a família construída se tornou um verdadeiro abrigo para os quatro. “Eu acho maravilhoso estar casado com outro homem. Eu sempre lutei contra [minha orientação sexual], principalmente durante minha adolescência. Então, depois que eu decidi viver esse relacionamento, sair do armário e me assumir, isso na minha vida foi um momento de extrema felicidade, realização e plenitude. Agora eu não precisava mais esconder nada”, conta Robert.

“Eu estou muito feliz e muito satisfeito. A paternidade veio paralelamente a isso. Eu sempre quis ser pai, eu só não entendia que poderia construir isso com um homem naquela época. O dia que meus filhos nasceram foi o melhor dia da minha vida. Tudo aquilo era uma vitória para nós. Mesmo com todo o cansaço da rotina, a sensação que eu tenho é que a gente segue vivendo um conto de fadas”, diz Robert.

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